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A solidariedade por trás do anonimato

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Só por hoje, vamos publicar depoimentos sem identificar seus autores. Na verdade, o único personagem que identificaremos aqui é um norte-americano chamado Bill Wilson, que se embriagou durante 17 anos, destruindo a vida e a carreira de corretor da Bolsa de Valores, até conseguir parar, com a ajuda de um grupo evangélico. Tempos depois, ainda procurando resistir à tentação da bebida, convenceu-se de que o caminho para a abstinência era ajudar outras pessoas na mesma situação. Criou, então, um receituário – os chamados ”12 passos” – que serviu de base para a fundação dos Alcóolicos Anônimos e, mais tarde, também para os principais grupos de ajuda mútua, como os Narcóticos Anônimos e os Neuróticos Anônimos. Todos, sem exceção, referem-se ao próprio grupo como uma irmandade. Mas negam qualquer vínculo com religiões, crenças ou dogmas. São pessoas comuns que assumem suas fraquezas sem medo e acreditam que juntas podem se superar. Uma gente anônima, sem rosto, solidária.


“Estou há 13 anos no AA. Comecei a beber aos 12, parei aos 42. Cheguei a ser internado. Hoje eu sei que é alcóolatra quem é, não quem quer. É uma doença incurável e progressiva. Por isso é que a gente diz que não é ex-alcóolatra. Eu sou ex-bêbado, mas não ex-alcóolatra.”


É desnecessário descrever, um a um, o funcionamento de cada organização. O modelo é o mesmo, a origem é a mesma. Os 12 passos se aplicam a todos. As reuniões duram cerca de duas horas, com palestras e depoimentos dos membros sobre suas experiências. Nas chamadas reuniões abertas, das quais participam visitantes e curiosos, a abordagem é mais superficial. “Na reunião aberta, corre-se o risco de vazar alguma coisa, pois nem todos que estão ali são membros da irmandade”, diz um membro do AA. Eles garantem que não há segredos, não há o que esconder. Trata-se apenas de respeito à privacidade. Ali, todos se reconhecem, mas nem sempre conhecem os companheiros. Na convivência em grupo, usa-se apenas o primeiro nome de cada pessoa. Ninguém precisa contar o que faz, onde mora ou de onde veio. O foco está no problema que leva as pessoas a procurarem ajuda – e é isso o que as une.


Os Alcóolicos Anônimos formam, hoje, a entidade mais numerosa, com quase um milhão de membros em cerca de 5 mil grupos. O AA mantém 87 escritórios, com o objetivo de divulgar suas atividades. E no âmbito dos grupos de ajuda mútua, propaganda tem um significado ainda modesto. Panfletagem, divulgação em igrejas, participação em seminários e palestras – não muito mais do que isso. O AA, particularmente, conta com três membros especiais não-alcóolicos. Eles são os únicos que podem mostrar os rostos e aparecer na mídia. Essa, aliás, é a norma em todos os grupos: conversar com a imprensa, sim; divulgar o nome, nem pensar. A idéia é não inflar egos e não estimular vaidades, privilegiando a força das entidades.


“A gente entende que a adicção nasce com a pessoa. É uma roleta russa: um pode atirar e nada acontecer, porque o tambor estava vazio; mas o outro dispara e acerta a cabeça. Sou um adicto em recuperação há 13 anos, nove meses e sete dias. Eu usava todas as drogas. Quando resolvi procurar ajuda, já estava magro, com delirium tremens, no limite. E tenho certeza de que, se não estivesse nesse programa, já estaria morto, no hospício ou na sarjeta.”


Irmão mais novo da turma, o Narcóticos Anônimos chegou ao Brasil em 1988. Em outubro, nos dias 25 a 28, a entidade realiza em Cabo Frio (RJ) a sua 12ª convenção regional e espera promover uma grande e saudável confraternização. Segundo um dos membros, o objetivo é conversar sobre diversos temas e se enriquecer com as experiências de cada um. “A nossa vida não é igual à de uma pessoa comum. A gente tenta não olhar para o passado e nem se preocupa com o futuro. Nós estamos cercados de álcool e drogas por todos os lados, e resistir a isso é um desafio permanente. Então a essência da felicidade está em viver bem o dia de hoje”, explica.


Participar de uma organização como Narcóticos Anônimos, Alcóolicos Anônimos ou Neuróticos Anônimos não custa nada. Fazer parte do grupo é uma decisão voluntária. Só é necessário que a pessoa tenha vontade de mudar a sua vida. Os grupos se mantêm graças à colaboração espontânea de seus membros. Durante as reuniões, freqüentemente realizadas em espaços cedidos por igrejas, sindicatos ou escolas, são recolhidas contribuições. Ninguém, entretanto, é obrigado a doar. Por outro lado, os Alcóolicos Anônimos chegaram a estabelecer um teto para as doações: US$ 2 mil. “Fazemos isso para que não nos desviemos do nosso propósito primordial. Vivemos com o suficiente para manter nossas portas abertas, não temos propriedades”, garante o membro do AA.


Manter as organizações funcionando é outro exercício de solidariedade. Os próprios membros se revezam voluntariamente nas funções burocráticas e de atendimento ao público. Outros colaboram, por exemplo, na confeção de material de divulgação ou na diagramação e tradução de livros. A literatura específica, aliás, é vasta. Todas as entidades têm o seu livro de preceitos e uma biblioteca de apoio ao dependente, além de publicações próprias.


” Eu vivia cheio de problemas financeiros. Não dormia, tinha gastrite, falta de concentração. Já fazia uns quatro meses que não conseguia dormir mais de três horas por noite. Comecei a tomar uns comprimidos, só que os sintomas desaparecem na hora, mas acabam voltando depois. Uma senhora que eu conhecia falava muito bem desses grupos anônimos, então fui no escritório deles e conheci como funcionava. Comecei a participar e já estou aqui há 17 anos.”


Os Neuróticos Anônimos estão no Brasil há 31 anos e contam com aproximadamente 280 grupos espalhados pelo país. Um de seus membros diz que eles diferem dos demais grupos porque trabalham “com os sintomas, não com os vícios”. A classificação de “neurótico” não tem necessariamente o significado da doença. Para eles, neurótica pode ser qualquer pessoa cujas emoções interfiram no seu comportamento – isso, naturalmente, desde que a própria pessoa assim o considere. Geralmente, esse entendimento não ocorre durante as crises depressivas. Aceitar que é chegada a hora de pedir ajuda é um momento difícil – e a decisão, às vezes, vem amparada no conselho de amigos ou parentes, que também sofrem com o problema.


“O que nos traz às reuniões é a dor, o sofrimento. Se alguém nos procura dizendo que quer parar, essa pessoa passa a ser a mais importante naquele momento”, diz um membro dos Narcóticos Anônomos. Alguns se juntam ao grupo durante pouco tempo, outros assumem o trabalho como uma missão e há quem se afaste temporariamente para voltar mais adiante. Fundamental, porém, é permanecer fiel à filosofia, aos 12 passos e às tradições do grupo. Não existe punição, a não ser a possibilidade de uma recaída.


“Na vida, a gente fica sempre procurando o melhor, mas esquece que o melhor está dentro de nós”.

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