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E, no entanto, outro mundo é possível

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

* Cândido Grzybowski

O espírito guerreiro e revanchista, como uma névoa preta, está querendo se impor sobre todos os seres humanos deste nosso já sofrido planeta. Ainda perplexos diante da surpresa e da radicalidade do ato terrorista que atingiu em cheio os EUA, assistimos meio impotentes à armação de uma gigantesca e criminosa ação terrorista do governo Bush em represália. Decididamente, assim não dá! Precisamos tomar a iniciativa, se não queremos ser tragados exatamente por tudo aquilo que estamos combatendo. Ao terror globalizado precisamos dar uma resposta de cidadania globalizada no rumo da paz, com coragem e ousadia.

Afinal, até outro dia, antes do atentado a Nova York, era visível a franca  expansão de um poderoso movimento de opinião em oposição aos processos, estruturas econômicas, poder e políticas da globalização econômico-financeira em curso. Na sua base, alianças, coalizões, redes e campanhas de movimentos e organizações das sociedades civis, com propostas e plataformas de ação cada vez mais globais. Como trincheira cidadã de resistência e afirmação, múltipla e diversa, diante do pensamento único neoliberal, dos mercados e corporações excludentes e concentradores, do poder e dos Estados subservientes, emergia a sociedade civil mundial. Com ela, um sentido novo de luta pela liberdade e dignidade humanas para todos, de igualdade na diversidade, de consciência da comum Humanidade e dos limites e possibilidades do planeta que compartimos. Num ascendendo, o movimento de contestação da globalização parecia irresistível.

Pois bem, com a conjuntura  que se abre com os atos terroristas, tudo parece perder o rumo. Como membros ativos da  nascente sociedade civil e militantes de um humanismo planetário fundado nos valores da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação, precisamos com urgência rever e adaptar estratégias. A perplexidade inicial deve dar lugar à iniciativa. Mais do que isto, temos uma responsabilidade histórica de afirmar, aqui e agora, o primado dos valores, da ética, dos direitos humanos e das leis diante da força bruta, assassina. Depois do fundamentalismo dos mercados, não podemos deixar-nos dominar pelo fundamentalismo e pela agenda dos guerreiros, sejam quem forem, terroristas ou Estados. A conjuntura não é fácil, mas é nela que precisamos demonstrar ousadia de idéias, generosidade na ação e grandeza de espírito cidadão e ético.

Uma agenda concreta se impõe para que a emergente sociedade civil planetária incida com todo o seu potencial democratizador de processos e, assim, contribua para que o mundo não seja presa fácil de uma pura lógica destrutiva do terror e da guerra:

1. Opor-se a todas as formas de terror e trabalhar pela paz – não podemos titubear na condenação dos atos terroristas. Ao mesmo tempo, temos que ser intransigentes com o terrorismo de Estado, como o que vem armando o governo Bush. Não se trata de pôr na balança as atrocidades de uns e outros, pois ambos matam igualmente e brutalmente inocentes. Acima de tudo, precisamos ter posição clara de condenação e oposição a tais formas de ação que, além de atentatórias aos direitos humanos, só geram mais terror. Isto é uma condição para entender as suas causas e lutar contra o terror, na forma que for, pondo no centro os seres humanos na sua qualidade de cidadãs e cidadãos portadores de direitos. Construir a paz é transformar os conflitos em forças construtivas de sociedades democráticas, livres e justas, que dêem lugar ativo, equânime e solidário a todas as mulheres e homens, em sua diversidade de culturas, estilos, desejos e possibilidades. O convívio de opostos e diferentes, regido pela ética dos direitos humanos, é o que dá substractum às sociedades civis e é condição de um desenvolvimento humano democrático e sustentável, de um mundo de paz.

2. Praticar e fortalecer o internacionalismo solidário – a conjuntura é particularmente danosa a redes, alianças, coalizões e campanhas que se forjaram nos países do Norte desenvolvido contra a globalização neoliberal. Na visão dos guerreiros, não há lugar para pacifistas, para os que clamam por justiça com base na lei, para todas e todos que se engajam na condenação de processos, estruturas e políticas que excluem e destroem.  Mais: eles aproveitam o momento para atacar os portadores de projetos que defendem valores de igualdade e participação, respeitando e valorizando a diversidade que construímos como seres humanos. No momento, cabe a redes civis do Sul um protagonismo portador de valores universais. Não deixemos que se instaure, ao nível da emergente sociedade civil planetária, uma ruptura entre Norte e Sul. Cabe a nós, abaixo do Equador e fora do epicentro em que opera a lógica do terror e da guerra, uma responsabilidade maior no sentido de juntar, aglutinar, condensar força política propositiva, construtiva de alternativas para o mundo. Devemos fazer isto cooperando e praticando a solidariedade com os movimentos, organizações, redes e coalizões do Norte, ao mesmo tempo em que fortalecemos o tecido organizativo e participativo no Sul.

3. Construir projetos de poder mundial radicalmente democráticos – em face da crise do sistema multilateral existente e da opção isolacionista do governo Bush, o mundo corre o risco de perder a possibilidade de estabelecer um mínimo de regulação democrática das relações entre os povos. A hegemonia bruta de um Estado Nacional, como os EUA, ou do G7, todos fortes econômica e militarmente, só pode gerar mais exclusão, pobreza, concentração de riqueza e destruição ambiental, aguçando as causas geradoras do terror e da guerra. A emergente sociedade civil mundial se defronta aqui com um desafio de monta: ter ousadia e radicalidade para que sobre a economia e os mercados globalizados volte a se instaurar o primado do bem público e da democracia. Precisamos ser muito inventivos nas propostas e demonstrar muita capacidade de pressão. Talvez, é chegada a hora de trabalhar firmemente no sentido de criar um movimento de opinião pública mundial favorável a instâncias multilaterais radicalmente democráticas, como um Parlamento Mundial democraticamente eleito como base da ONU, BM, FMI e OMC.


4. Valer-se da plataforma do Fórum Social Mundial – o Fórum Social Mundial, como encruzilhada de redes civis para pensar e propor alternativas, é uma iniciativa que pode catalisar e aglutinar as diferentes forças da emergente sociedade civil mundial, neste momento. A realização do segundo Fórum, em Porto Alegre, de 31 de janeiro a 5 de fevereiro de 2002, é uma oportunidade ímpar para recolocar as questões da sociedade civil no centro dos debates. Precisamos alimentar a esperança de que um outro mundo é possível. Tal idéia é a que atrai tanta gente para o Fórum. O eco que provoca na mídia pode ser um efetivo contraponto ao fundamentalismo econômico e ao espírito vingativo e guerreiro reinante. Pela sua visibilidade, o Fórum Social Mundial pode ajudar a reconstruir o sonho de justiça e liberdade, irradiando-se pelo mundo e animando muita gente a se engajar em iniciativas de cidadania e na pressão por mudanças de rumo nas políticas e processos que sustentam o atual estado de coisas. O importante é que o Fórum Social Mundial depende basicamente de nós, movimentos, organizações e redes civis, particularmente dos países pobres e em desenvolvimento do Sul. A hora exige de nós muita responsabilidade e coragem, mostrando que um outro mundo de paz é possível. Mais ainda, a paz se constrói construindo outro mundo. Mãos à obra, antes que o terror e a guerra tornem a situação irreversível!


* Cândido Grzybowski é sociólogo e diretor do Ibase

A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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