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Liberdade vigiada

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






As asas que se abrem sobre a América não são as da liberdade, mas as da incerteza. O presidente dos EUA, George W. Bush pretende alterar a Constituição norte-americana para aumentar a vigilância sobre as comunicações – particularmente a telefonia e a Internet – e o rigor em relação aos imigrantes. Apesar de um desconforto inicial, republicanos e democratas já chegaram a um acordo para aprovação das medidas, apresentadas em um projeto de lei intitulado Provide Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism (Concessão de Ferramentas Apropriadas para Interceptar e Obstruir o Terrorismo). Não por acaso, o título compõe o acrônimo Patriot. O Patriot Act, como ficou conhecido, pode ser aprovado durante esta semana. O projeto prevê a detenção, por até sete dias, de estrangeiros suspeitos – sem necessidade de abertura de processo – e o direito de, mediante autorização judicial, reter mensagens de correio eletrônico e outras comunicações. Essas medidas, a princípio, seriam temporárias – válidas apenas até dezembro de 2003. O prazo, porém, pode ser estendido dependendo das circunstâncias.


As organizações que defendem as liberdades civis estão preocupadas. O temor é de que a “paranóia terrorista” leve a um aumento das violações dos direitos humanos e da privacidade e torne-se uma ameaça a uma mídia essencialmente livre e democrática – a Internet. As medidas propostas por Bush eram, na verdade, ainda mais severas do que essas. De acordo com a mensagem inicialmente enviada ao Congresso, confissões obtidas por meio de práticas ilegais (até mesmo sob tortura) seriam aceitas como provas, desde que obtidas fora do território norte-americano.


O que se observa no momento, particularmente diante das incertezas geradas por um conflito de proporções mundiais – e mais ainda quando não há uma declaração de guerra formal e um inimigo com identidade definida –, é uma enorme intranqüilidade. Especula-se qual seria o próximo alvo, que nova ação ousada poderiam empreender os terroristas, que armas usariam dessa vez. E em torno disso erguem-se propostas as mais diversas. Vários estados norte-americanos consideram idéias para combater o terror que vão desde a adoção da pena de morte até a presença de oficiais armados em navios e aeronaves e a verificação de antecedentes criminais de pessoas que desejem utilizar simuladores de vôo. Ou, como ocorreu no estado de Wisconsin, sugerir que as pessoas estejam armadas para ajudar a combater um possível ataque terrorista. Em síntese: o campo é fértil para a propagação do arbítrio. Sally Burch, diretora executiva da ALAI (Agência Latino-Americana de Informação), acha que as autoridades norte-americanas se aproveitaram da perplexidade da população para submeter propostas que, em outras circunstâncias, teriam enfrentado forte oposição. “Claramente, essa situação beneficia aqueles que defendem um modelo autoritário de sociedade”, diz ela.


Na Inglaterra, onde idéias semelhantes têm obtido uma recepção favorável em alguns setores, o secretário do Interior, David Blunkett, afirmou que “há certos momentos na história em que a maioria precisa ser protegida da minoria”. O jornalista Stephen Robinson, em artigo publicado no diário londrino “Daily Telegraph”, rebateu: “Esse argumento simplista ignora que é precisamente em tempos de crise – quando a opinião pública está unida pelo medo – que se deve proteger os direitos de cada indivíduo”.


Glen Tarman, relações públicas da OneWorld International, organização que aproveita o potencial democrático da Internet para promover os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável, acredita que algumas medidas contra o terrorismo poderão exigir a formulação de leis específicas. Em certos casos, considera, elas poderão ser positivas, desde que aplicadas apropriadamente. “Por exemplo: reduzir a lavagem de dinheiro deve requerer certos controles que vão beneficiar a sociedade, garantindo transparência”, afirma. Tarman, por outro lado, teme que medidas menos sóbrias se propaguem. “Muitos dos parceiros da OneWorld, em uma rede de mais de mil organizações da sociedade civil em todo o mundo, freqüentemente comentam que as leis tendem a ‘migrar’ de uma nação para outra. Isso pode funcionar de duas maneiras – às vezes de forma negativa, às vezes de forma positiva. Se as autoridades agirem para prevenir novos ataques no futuro, é preciso que os governos preservem as liberdades civis fundamentais à participação democrática. Nós acreditamos que – em um mundo que sofre com a vasta desigualdade – governos e cidadãos, juntos, têm a responsabilidade de trabalhar pelo desenvolvimento sustentável e pela inclusão social. Essa causa não terá qualquer benefício em caso de um efeito-dominó de restrição de liberdades e direitos humanos – seja na Internet ou no mundo fora do ambiente digital”.


Carlos Afonso, diretor de Desenvolvimento Tecnológico da RITS e um dos pioneiros da Internet no Brasil, analisa a situação de forma bastante equilibrada. Ele considera fundamental saber se as mudanças da lei norte-americana vão permitir a violação de direitos básicos dos cidadãos. “Em tese, o que eles pretendem aprovar não feriria a Constituição. Parece que seriam necessárias condições especiais e evidências muito fortes para que os caras sejam detidos. O grande problema vai ocorrer com quem está lá em situação ilegal ou semilegal. Mas essa prática de violar os direitos humanos lato sensu de imigrantes ilegais nos Estados Unidos ou mesmo no Canadá vem de longa data, de muito antes desse atentado. Pode ser que passe a acontecer mais com os caras de origem árabe. Mas não acredito que a lei vá afetar isso, a menos que aconteça um outro desastre”, pondera.


Para Carlos Afonso, é importante que as organizações de defesa dos direitos humanos prestem atenção à violação dos direitos dos imigrantes. “Ninguém pode ser apontado como suspeito a priori só por causa de raça, cor ou situação legal no país. O ilegal nem sempre é criminoso, por isso é que existe o Código Civil e o Código Penal. Antes levavam um ano para deportar alguém. Agora estão deportando em 12 horas um sujeito da Europa para os Estados Unidos. Pode ser que haja realmente provas muito concretas contra essa pessoa, mas tem alguma instituição monitorando isso?”, indaga.


Uma das primeiras signatárias do Joint Civil Society Statement on the Tragedy in the United States (Declaração da Sociedade Civil Organizada sobre a Tragédia nos Estados Unidos, que reuniu centenas de outras organizações da sociedade civil), a OneWorld se manifesta por uma ação moderada por parte dos líderes políticos mundiais. “Pedimos a eles que reajam com sabedoria. Os líderes não devem agir movidos pela afobação, mas sim considerando o impacto a longo prazo. É fundamental que haja um forte compromisso com os direitos humanos, a lei e as preocupações humanitárias em qualquer atitude que for tomada”, diz Glen Tarman.


Como afirma Carlos Afonso, qualquer iniciativa, nesse momento, deve ser tomada com a devida prudência. “A questão é muito delicada, mas você não pode ser ‘branco ou preto’. Os terroristas são, mas a Constituição, em um regime democrático, não é – de jeito nenhum. Ela dá margem a que você tenha mecanismos de segurança que não violem os direitos humanos”.

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