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A tenda do circo é uma rede no mundo

Autor original: Felipe Frisch

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Severiano Ribeiro que nos desculpe, mas rir é a maior diversão, e o circo, além de viver para o sorriso, é capaz de reinserir e educar jovens social e historicamente excluídos. Essa é uma das maiores nobrezas da arte, convertida hoje em “arteducação”, uma estratégia presente em projetos como Se Essa Rua Fosse Minha e AfroReggae, do Rio, Arricirco e Escola Pernambucana de Circo, de Recife, e Associação Serras Esporte Clube Social, de Belo Horizonte.


Essas organizações têm algo em comum, além de utilizarem o circo social como ferramenta: fazem parte da Rede Circo do Mundo, uma rede que ainda abriga instituições canadenses fomentadas pelo Cirque du Soleil. Aqui no Brasil, essa rede é articulada e fomentada pela FASE, por meio do seu Serviço de Análise e Assessoria a Projetos (SAAP). No ritmo das comemorações dos seus 40 anos, a FASE lançou no mês passado o livro “Circo: Educando com Arte” junto com o site de apoio à rede. O livro traz artigos transcritos de conferências que aconteceram durante o seminário de mesmo nome, em Belo Horizonte, no ano passado.


Em entrevista exclusiva para a Rets, a organizadora da publicação, Cleia Silveira, fala de circo – logicamente – e de outros mecanismos artísticos de inclusão. Cita o artista popular conhecido como Profeta Gentileza, compara a vida dos jovens que vivem nas ruas com a vida no circo, no que ambas têm de mais nômade e de arriscado, e se surpreende com o movimento que está fazendo o circo brotar, ressurgir quase que naturalmente nas ruas das grandes cidades, fazendo o caminho inverso do que o Se Essa Rua Fosse Minha fez, com a Intrépida Trupe, em 1991.


Rets - Como a organização das propostas de “arteducação” em livro pode fortalecer os laços da Rede Circo no Mundo?


Cleia Silveira - O registro e a divulgação destas referências, que já vínhamos construindo processualmente desde 98, não só contribui para dar identidade à Rede como também contribui para a sua visibilidade. Consideramos isso da maior importância, pois hoje nosso principal objetivo é que a rede se amplie, que outros se agreguem a ela, e o livro é um dos instrumentos que irão contribuir para isso. Outro aspecto fundamental é que, frente à dificuldade de recursos que está imposta a todos que atuam neste setor, este tipo de iniciativa acaba sendo um mecanismo que permite a manutenção da qualidade e densidade do trabalho e a otimização de recursos.


Rets - Como o circo contribui para a educação de jovens?


Cleia Silveira - Para responder a esta pergunta, vou me valer de Hamilton Farias quando diz que “a arte sempre foi e continuará sendo a criação da beleza, o enriquecimento e o aprimoramento da consciência humana. Desenvolver-se com arte pode tornar nossa vida mais alegre e o nosso olhar mais sensível à realidade cotidiana”. O Circo é uma arte, é mágico, possibilita o sonho e a utopia e, segundo Paulo Freire, a perda da utopia acaba por despolitizar a prática educativa.


Rets - E quais as vantagens que o trabalho em rede oferece para esse tipo de atividade?


Cleia Silveira - São muitas, mas destaco a principal, do meu ponto de vista, que é o fortalecimento dos diferentes atores e de um campo de atuação.


Rets - O Brasil tem talento para o circo?


Cleia Silveira - Piolin, Dudu das Neves, Benjamim e o Teatro de Anônimos são provas deste talento. No capítulo "Circo Brasileiro" do livro, Verônica Tamyoki faz uma analogia de que eu gosto muito. Diz que “os mais pobres, assim como o circo, foram empurrados para a periferia das grandes cidades, que não param de crescer”. Já Márcio Libar nos lembra: “O circo, pela sua própria natureza, é um espaço de resistência cultural. O circo também é um espaço popular, e quem concretiza a resistência cultural é o povo.”


Rets - Além do circo, que outras atividades artísticas você considera inclusoras de jovens socialmente reprimidos?


Cleia Silveira - Todas. O que inclui é o acesso às diferentes atividades artísticas e não os diferentes tipos. Legal do circo é isso: ele incorpora a dança, o teatro, a música, e o artesanato.


Rets - Até que nível de educação o circo pode contribuir?


Cleia Silveira - A educação a qual nos referimos não é a educação formal, não pode ser hierarquizada ou classificada. Trata-se de um processo amplo, complexo, de apreensão e leitura do mundo, de experiências e comportamentos, procedimentos éticos. Não substitui a educação formal, mas soma-se a ela. Verônica Tamayoki, ilustra um pouco isso no trecho que lembra Gentileza [artista popular que viveu durante anos nas ruas do Rio, escrevendo suas mensagens de amor e protesto nos pilares de viadutos do Centro da cidade], que após o incêndio do circo em Niterói, escreveu: “Diz que o mundo ia se acabar pois o mundo se acabou. A derrota de um circo queimado em Niterói é o mundo representado. Porque o mundo é redondo e o circo é arredondado. Por esse motivo, então, Gentileza não tenha sossegado. O profeta do lado de lá passou pro lado de cá. Para consolar os irmãos que eram desconsolados. É isso que acontece. E o mundo é redondo e o circo é arredondado. Por esse motivo, então, o mundo foi acabado”. Gentileza não soube apenas perceber o colapso do mundo moderno como também traduzi-lo de maneira simples e confrontá-lo com uma alternativa melhor. Que nível é este de educação?


Rets - Como a vida dos jovens em situação de risco é semelhante à vida no circo (que, por exemplo, também lida a todo o tempo com o risco)?


Cleia Silveira - Com esta pergunta, tenho que fazer um convite a todos para lerem o meu texto em "Circo: educando com arte". O apaixonante é descobrir esta semelhança com a vida, não só com a vida dos jovens em situação de risco – foi isto que me encantou e que tentei contar. O risco é de todos nós, é da sociedade. Como disse Gentileza, “o mundo é redondo e o circo é arredondado”.


Rets - O livro é uma forma de compartilhar as experiências do evento realizado em outubro de 2000 em Belo Horizonte. Como ele pode ajudar as diversas organizações por aí que já desenvolvem esse trabalho sem a pretensão de estarem ligadas à rede?


Cleia Silveira - Acho que o livro é um convite à reflexão de todos que estão desenvolvendo este trabalho. Com a proliferação dos projetos sociais que anunciam que trabalham com arte, estamos correndo um grande risco. Não podemos perder de vista o verdadeiro sentido da arte. E educar para cidadania? Essa, então, virou um fetiche, como aponta o Lorenzo Zanetti. Desta forma, o livro, como eu disse na primeira pergunta, tem a função de não deixar estas referências se perderem, e nesse sentido ele é reflexivo e provocador.


Rets - Mas, justamente em vista desses trabalhos que “anunciam que trabalham com arte”, surge uma dúvida. O Coordenador Pedagógico do Programa de Formação de Formadores do Cirque du Soleil, Michel Lafortune, sublinhou, na conferência transcrita no livro, a função do "circo social" com o objetivo de permitir aos jovens "desenvolverem sua auto-estima e encontrarem um papel valorizado na sociedade, o papel de cidadão". Isso contrasta bastante com o trabalho dito artístico pura e simplesmente como fonte de sobrevivência, o que não é o objetivo do "circo social". Os jovens que estão nas ruas do Rio fazendo malabarismos nos sinais se inserem no universo artístico desenvolvendo seus movimentos quase que autonomamente? Isso os reinsere em algum nível, ou os exclui mais ainda?


Cleia Silveira - Não sei se concordo com esta afirmação, acho que o contraste não é este. [O cineasta] Walter Salles trabalha com arte, dela sobrevive e cumpre um enorme papel social. Só procuramos enfatizar que a escolha que fazemos é a da educação, é educar para a cidadania. A prioridade não é a profissionalização. Michel, inclusive, cita que alguns jovens acabam por se definir profissionalmente pelo circo, estes terão nosso apoio e incentivo, entretanto essa não é nossa primeira preocupação. Nossa preocupação é que ele possa fazer escolhas, que as oportunidades lhe sejam garantidas para isso. Quanto aos jovens e crianças que se encontram nos sinais jogando bolinhas, ou melhor, fazendo malabarismo, é um assunto polêmico. Criamos até um grupo para debater sobre este fenômeno. É claro que não incentivamos isso, pois somos contra o trabalho infantil e muitos ali estão sendo explorados. Depois, o que queremos é que eles estejam na escola, que tenham atividades, que tenham lazer, que seus diretos sejam garantidos. Mas o interessante, o mágico da coisa, é o seguinte: o Se Essa Rua Fosse Minha, no início de seu trabalho, utilizou o circo como metodologia de abordagem nas ruas, ou seja, colocou o circo na rua e, com ele, conseguiu se relacionar com os meninos que lá se encontravam. Hoje, sem que o circo tenha ido intencionalmente para a rua, ele ressurge na própria rua. Não é interessante? Evidentemente, jogar as bolinhas não os insere, mas os transforma. Eles deixam de ser simples pedintes, passam a oferecer algo e se esforçam para isso. Tenho observado também que os olhares para eles deixam de ser de medo e passam a ser de curiosidade, de simpatia. Isso foi provocado por eles, não é curioso?


Rets - A professora de Educação Artística Maria Cecília César destaca a importância de o desenvolvimento artístico e lúdico não ser interrompido, mesmo após a infância. Essa estratégia é também amplamente utilizada pelo Teatro do Oprimido, do Boal. Que tipo de relação podemos fazer entre esses métodos?


Cleia Silveira - Vou citar o próprio Boal para responder essa pergunta. “A atividade artística é natural a todos os homens e a todas as mulheres. Todos podem fazer teatro. Todos podem se tornar atores. E todos podem se tornar atores de sua própria vida.”


Rets - Pela mesma palestra, a gente vê a importância da educação artística em todos os níveis, não só para os meninos que vivem nas ruas. Como as escolas de ensino fundamental tradicionais atualmente trabalham isso? Eu, particularmente, guardo um trauma das minhas aulas de Artes e de Música, que eram os espaços onde a liberade estava menos disponível.


Cleia Silveira - Adorei a participação da Maria Cecília César, pois ela trouxe para o nosso debate exatamente essa dimensão. Mesmo nos novos tempos de democracia e de liberdade de expressão, parece que a arte ainda é pouco valorizada. Mesmo as escolas que contam com professoras e professores iguais à Maria Cecília, com essa visão, mudaram pouco. O material continua sendo escasso e preferencialmente usado para as outras matérias, o tempo para as artes continua sendo pouco, as salas de artes sendo confundidas com depósitos. Daí a importância desses projetos, pois fazem exatamente o contrário, consideram que a arte é que estimula a criatividade, a interpretação, a crítica, a autoconfiança e é isto que possibilita um melhor aprendizado.


Rets - Como o site, lançado junto com o livro, vai fortalecer a difusão dessas idéias e a articulação da rede? A Internet teria esse potencial libertador e lúdico do circo e dos jovens?


Cleia Silveira - Aproveito para convidar os leitores a uma visita ao site www.circonomundo.com.br.tf. Ele vai ser o nosso canal de diálogo mais permanente. Não queremos só a comunicação entre os educadores, queremos a comunicação entre os próprios jovens. No ano passado, conseguimos juntar os jovens de Recife com os do Rio e os de Belo Horizonte no Fantástico Mundo da Criança, que é um evento produzido anualmente pelo Parque das Mangabeiras, e foi muito bom. Houve uma sintonia entre eles que não pode ficar perdida pela distância. Então criamos o site. Por isso, ele tem sala de jogos, chats, tradutores, e-mails personalizados para os segredinhos, links sobre circo e muita informação. O espírito tem que ser o mesmo, o lúdico e o mágico devem ser preservados. Nosso desafio é conseguirmos equipamentos suficientes e conectividade adequada para ampliarmos a comunicação.,Já temos projeto, informação e relações estabelecidas. Esperamos conseguir os meios necessários com o Projeto Telecomunidades-Bibliotecas.

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