Autor original: Graciela Baroni Selaimen
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Por iniciativa de entidades da sociedade civil, e graças ao apoio do Presidente da Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câmara de Deputados, deputado Marcos Cintra (PFL), realizou-se no dia 26 de setembro um seminário sobre o Terceiro Setor, no qual se tratou da possibilidade de elaboração de um Estatuto para o mesmo. A iniciativa foi precedida de uma reunião preparatória entre o GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas – e a ABONG.
A opção pela realização de um seminário – ao invés de uma sessão mais formal - respondeu à necessidade de iniciar o diálogo com o Legislativo pela caracterização do chamado Terceiro Setor e da complexidade das questões cujo prévio equacionamento é imprescindível para a elaboração de um marco regulatório para as atividades desenvolvidas pelas organizações da sociedade civil sem fins lucrativos. Um Estatuto seria uma espécie de lei orgânica, um conjunto de dispositivos legais destinados a regular de forma ampla a matéria em pauta, no caso o Terceiro Setor, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata desde a definição de direitos fundamentais até formas de atendimento e de proteção, etc.
O seminário chegou a contar com a participação de cerca de 70 pessoas, entre as quais deputados de diferentes partidos membros da comissão (entre outros Jacques Wagner, vice-presidente, Emerson Kapaz, Aloísio Mercadante, Delfim Neto, Elcione Barbalho), e representantes de várias fundações e entidades da sociedade civil. De acordo com os procedimentos usuais da Câmara de Deputados, os debates foram registrados e serão divulgados oficialmente, o que amplificará o alcance da iniciativa.
Os debates foram realizados a partir de um conjunto de 5 exposições iniciais de representantes de entidades do setor, a saber: João Roncati, vice-presidente do GIFE; Jorge Eduardo S. Durão, secretário da ABONG; Maria Helena Johannpeter, da entidade Parceiros Voluntários (RS); Rubens Naves, vice-presidente da Fundação ABRINQ pelos Direitos da Criança; Eduardo Szazi, consultor jurídico do GIFE e um dos maiores conhecedores da regulação do Terceiro Setor no Brasil.
João Roncati, após destacar a importância econômica do Terceiro Setor para a própria estrutura econômica do país e relacionar a evolução do seu papel em relação com a redefinição do papel do Estado, caracterizando a constituição do Terceiro Setor como parte da expansão da esfera pública, fez uma caracterização do setor, e dos seus componentes: associações comunitárias, movimentos sociais, ONG’s temáticas, entidades filantrópicas tradicionais e fundações e institutos de base empresarial. Destacou o potencial de crescimento do setor e discutiu a composição do segmento de base empresarial, esclarecendo os conceitos de responsabilidade social (uma forma de conduzir os negócios da empresa) e investimento social. Na conclusão, apontou três desafios: 1. a construção de um novo acordo ético-político; 2. a ampliação do financiamento nacional ao terceiro setor; 3. a melhoria do ambiente fiscal e tributário.
Representado a ABONG, destaquei os seguintes pontos:
• Importância da iniciativa da Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câmara de Deputados, tendo em vista a ausência de um debate em profundidade no Congresso Nacional e as incompreensões sobre o papel das ONG’s;
• Dificuldade inerente à noção de Terceiro Setor enquanto conceito pouco rigoroso e de pouco valor explicativo, que envolve interpretações distintas e polêmicas acerca das relações entre sociedade civil, Estado e mercado. Ressalvei o reconhecimento das oportunidades abertas na prática a partir da constituição, no Brasil, do chamado Terceiro Setor e as novas interlocuções entre diferentes tipos de organizações, com histórias e compromissos éticos-políticos diferenciados;
Destaquei o avanço que representou a Lei das OSCIP’s no tocante ao reconhecimento da existência de entidades da sociedade civil de interesse público e resgatei a questão da autonomia das ONG’s, cuja atuação se reveste de interesse público independentemente de ter ou não um caráter complementar em relação à ação do Estado, já que no próprio diálogo político no qual se gestou a futura Lei 9790/99 (Lei das OSCIP’s)[1], este entendimento foi incorporado através de um Documento-Base que o formulou nos seguintes termos: “É necessário incluir também as chamadas ONGs (organizações não-governamentais) cuja atuação não configura nenhum tipo de complementariedade ou de alinhamento aos objetivos de políticas governamentais, e nem, muitas vezes, de suplementariedade à presença do Estado. Ao lado das instituições que complementam a presença do Estado no desempenho dos seus deveres sociais e ao lado daquelas entidades que intervêm no espaço público para suprir as deficiências ou a ausência da ação do Estado, devem ser também consideradas, como de fins públicos, aquelas organizações que promovem, desde pontos de vista situados na Sociedade Civil, a defesa de direitos e a construção de novos direitos - o desenvolvimento humano, social e ambientalmente sustentável, a expansão de idéias-valores (como a ética na política), a universalização da cidadania, o ecumenismo (latu sensu), a paz, a experimentação de novos padrões de relacionamento econômico e de novos modelos produtivos e a inovação social etc.” (“Documento-Base”, Segunda Versão, de 29.09.97, p.12).
Explicitei os problemas que afetaram o processo de elaboração da Lei das OSCIP’s, tais como: (resistências da área econômica do governo em particular da Receita Federal), a concomitância desse processo com o ajuste fiscal e a ação da Previdência voltada para a redução do universo das entidades filantrópicas.
Abordei a questão do acesso das ONG’s aos fundos públicos e o paradoxo em que consiste o fato de que as ONG’s brasileiras muitas vezes têm acesso com mais facilidade a financiamentos oriundos direta ou indiretamente de fundos públicos de governos do Norte do que a fundos públicos no Brasil, por falta de uma política coerente de apoio ao Terceiro Setor; destaquei o compromisso das ONG’s associadas à ABONG com a soberania nacional.
Conclui insistindo na necessidade de que na hipótese da elaboração de um Estatuto, esta se baseasse numa filosofia clara como base da relação entre Estado e OSC’s.
A Dra. Maria Helena Johannpeter, representando a entidade “Parceiros Voluntários”, do Rio Grande do Sul, analisou o papel do voluntariado, que só recentemente, com a Lei 9608, passou a contar com o reconhecimento do papel do voluntário. Sustentou que o Terceiro Setor não se limita a ocupar espaço deixado pelo Estado. Destacou que os países desenvolvidos se caracterizam pela existência de sociedades civis organizadas e que o voluntariado era entendido por ela como exercício da cidadania – com transferência de conhecimentos - e não como manifestação de filantropia. Alertou para o risco de a legislação vir a engessar a vontade individual de cada um, o que teria um efeito desestimulante para o trabalho voluntário. Esclareceu que a atuação de “Parceiros Voluntários” não tem foco ideológico / político-partidário nenhum, e que a organização foi criada por empresas e entidades de classe, entre as quais a Federação do Comércio.
Comentando a fala da Sra. Johannpeter, o deputado Marcos Cintra, presidente da comissão, ponderou que a legislação deve vir para apoiar, não para controlar, portanto deve se pautar por uma orientação contrária à tradição de controle do Estado sobre a sociedade civil.
O expositor seguinte, o Dr. Rubens Naves, vice presidente da Fundação ABRINQ para os Direitos da Criança, defendeu a necessidade de uma lei transformadora, exemplificando com o impacto transformador que vem tendo o Estatuto da Criança e do Adolescente, já que, a seu ver, este Estatuto tem contribuído para a implantação progressiva da cidadania (não se confundindo a sua atuação com o mero exercício da filantropia). Em seguida, fez uma apresentação de conjunto acerca do trabalho daquela Fundação, descrevendo alguns dos seus programas e projetos (“Ver para Crer”, “Prefeito Amigo da Criança”, etc.). Apontou obstáculos na legislação à atuação da Fundação (por exemplo, cobrança do ICMS pelo estado, dificuldades para a transferência de recursos de doadores para a entidade etc.). Em seguida, mencionou as dificuldades do chamado marco legal do Terceiro Setor, destacando entre os elementos a serem considerados os seguintes: modernização da gestão no Terceiro Setor; necessidade de gestão qualificada; necessidade de coleta de informações; o fato de o Terceiro Setor Constituir um universo extremamente diferenciado; a questão dos recursos incentivados; a necessidade de identificar alguns mecanismos de controle social sobre essas entidades, de caráter não burocrático; e a importância da transparência de informações.
O Dr. Eduardo Szazi, consultor jurídico do GIFE, abordou os inúmeros desafios legislativos que envolvem a elaboração de um Estatuto para o Terceiro Setor, a começar pela controvérsia sobre a sua composição. Em seguida passou a analisar alguns dos principais desafios:
Finalidades: em parte resolvido pela Lei das OSCIP’s. Esclareceu a distinção entre benefício público (que independe de contribuição) e benefício mútuo.
A questão do controle (pelo Estado, pela sociedade civil – já que o Estado, ao contrário do que pensava George Orwell, não é tão onipresente -, o papel dos conselhos de políticas públicas), destino e origem dos recursos. Referiu-se à importância das auditorias externas e da publicidade aos relatórios. Mostrou que uma organização do terceiro setor atua como mandatária da sociedade (que ao apoiá-la, apóia na verdade uma causa), não sendo, portanto, dona dos recursos destinados ao seu trabalho. Analisou a destinação das receitas e se estas deveriam ser exclusivamente aplicadas ou não na atividade fim (modelo brasileiro) ou se, e em que casos, poderiam ser destinadas à geração de renda (desde que esta contemplasse a atividade fim). Referiu-se também ao problema das entidades que camuflam fins lucrativos sob o manto de ESFL.
A necessidade de um modelo simples e universal de incentivo fiscal, que estimule a participação de toda a sociedade (e não apenas das grandes corporações). Defendeu, ainda, o modelo de custeio compartilhado, para garantir a colocação de dinheiro novo por parte dos contribuintes.
A questão do modelo de acesso a esses recursos. O modelo atual requer uma prévia certificação / qualificação das entidades. Esse modelo favorece as entidades mais fortes. Somente os capacitados, os articulados, têm acesso a recursos. Esse modelo reproduz as desigualdades que marcam a nossa sociedade, no âmbito do Terceiro Setor. A seu ver, deveríamos ter um modelo muito simples de acesso, e controle rigoroso (a posteriori), o que a Lei das OSCIP’s teria tentado colocar.
Por último, abordou o desafio de informações para o Terceiro Setor, mostrando que os dados existem (CNAS, Receita Federal, RAIS) mas não são trabalhados. É preciso montar um sistema de dados estatísticos sobre o Terceiro Setor.
Concluídas as exposições a cargo da mesa, abriu-se o debate com a participação de deputados e outros representantes de entidades da sociedade civil.
Segundo o deputado Emerson Kapaz (PSDB-SP), o Estatuto proposto não é um desafio fácil para a casa. Identificou as seguintes observações que considerou pertinentes:
O Estatuto não pode ser enrijecedor; deve ser estimulante.
O Terceiro Setor é um grande setor de empregabilidade.
A existência de um mecanismo crescente de responsabilidade social das empresas.
A constatação de que os governos estão às voltas com recursos apertados e da vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Concluiu sua intervenção no debate, destacando a necessidade de uma agenda e da rápida elaboração de um primeiro esboço do Estatuto.
O deputado Jacques Wagner (vice-presidente da Comissão) estabeleceu nexos entre o Terceiro Setor, a economia informal e a economia solidária.
O deputado Marcos Cintra (presidente da Comissão) insistiu em que o desafio é bastante difícil, lembrando que há um grau de incompreensão sobre o Terceiro Setor e, em particular, sobre os laços internacionais das ONG’s. Destacou o interesse despertado pelo presente seminário, a presença de representantes de uma federação e da confederação de fundações, o fato de a inspiração deste primeiro seminário ter sido das entidades da sociedade civil, e propôs a realização de um segundo seminário, em cima de um ante-projeto.
A seguir, o representante da Fundação Maurício Sirotski comentou as dificuldades para a implementação da Lei das OSCIP’s. Até março de 2001, só 489 de 220 mil entidades sem fins lucrativos pleitearam a sua qualificação como OSCIP’s, e só 210 conseguiram-na. A seu ver, um dos motivos desse desinteresse foi a falta de incentivos fiscais. Aliás, lembrou, houve mesmo redução dos abatimentos permitidos pela legislação.
Na rodada final, quando a palavra foi devolvida à mesa, Eduardo Szazi destacou a preocupação de regular melhor o Terceiro Setor o quanto antes possível.
Jorge Durão (ABONG) reconheceu que de fato havia algo de errado com a Lei das OSCIP’s (inclusive o fato de que até agora não foi assinado nenhum termo de parceria) e relacionou o problema com o contexto de restrições fiscais e de retirada do estado das políticas públicas, insistindo em que as ONG’s não podem substituir o imprescindível papel do Estado. Esclareceu ainda a posição da ABONG relativa ao controle social democrático sobre as organizações de interesse público, e lembrou o esforço desenvolvido pela ABONG para incluir na Lei das OSCIP’s um papel mais efetivo para os Conselhos. Concluiu enfatizando a necessidade de uma interlocução democrática ampla, para se viabilizar um estatuto do Terceiro Setor, pois há conflitos e resistências que só assim poderão ser devidamente enfrentados.
João Roncati (GIFE) lembrou ainda que o Terceiro setor é entendido hoje de forma reduzida. Além da sua complexidade, é preciso mostrar os efeitos e resultados que o Terceiro Setor tem produzido, por exemplo, no tocante à redução da mortalidade infantil e do analfabetismo. A seu ver é preciso realizar um debate de mérito, e não apenas sobre o aspecto financeiro da questão.
Antes de encerrar a sessão, o deputado Jacques Wagner introduziu ainda o conceito de produtividade, indagando da sua pertinência para o Terceiro Setor (pelo aporte deste, complementar às políticas públicas). Encerrando o seminário reforçou o convite para a apresentação pelas entidades da sociedade civil de um esboço de Estatuto e para a realização de um novo seminário.
Rio de Janeiro, 1º de outubro de 2001.
Jorge Eduardo S. Durão
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