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Aids: acordo reduz distância entre o sonho e a cura

Autor original: Fausto Rêgo

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A organização Médicos Sem Fronteiras e o Ministério da Saúde assinaram no dia 12 de setembro uma carta de intenções para apoio a iniciativas de combate ao vírus HIV e à Aids em países onde os MSF já atuam, mas principalmente no continente africano. O termo de cooperação prevê transferência de tecnologia, treinamento, assistência técnica e o desenvolvimento de projetos em cooperação com os governos locais. Em entrevista à Rets, Michel Lotrowska, representante da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais da organização no Brasil, reconhece que é difícil falar em resultados neste momento. “A vontade política dos governos africanos de enfrentar a epidemia tem sido aleatória”, explica. Apesar das dificuldades, porém, ele está otimista e acredita ser possível iniciar projetos-piloto que apresentem metodologias inovadoras de tratamento. “As melhorias na qualidade de vida dos portadores de HIV passam, primeiramente, pela possibilidade de ficar vivo, de ter acesso aos medicamentos essenciais para doenças oportunistas, para as dores decorrentes dessas doenças e, futuramente, para que continuem vivos e possam se beneficiar com a introdução de terapias anti-retrovirais. Mas esse sonho ainda continua distante para a maioria dos países africanos”.


Rets - Quais os termos dessa carta de intenções assinada pelo MSF e pelo Ministério da Saúde e quando passará das intenções à prática?


Lotrowska – A carta de intenção é bastante abrangente e tem como intenção apoiar o desenvolvimento de ações de combate à Aids nos países em desenvolvimento, atravésde treinamento, assistência técnica e outro suporte que seja pertinente.


Rets - Quais serão as atribuições de cada parte?


Lotrowska - Cada projeto será objeto de um convênio específico em que as atribuições serão definidas. É diferente um convênio para desenvolvimento de ações em Moçambique, onde o Ministério já tem uma atuação bastante grande, de um convênio com outro país onde apenas Médicos Sem Fronteiras tem atuação. Tanto a parte financeira como a parte executiva serão negociadas caso a caso.


Rets - Botswana, que tem 35% da população adulta contaminada, já enviou uma missão ao Brasil para negociar o intercâmbio. Que outros países poderão ser beneficiados e quais as condições para sua participação?


Lotrowska - Os acordos bilaterais são negociados diretamente entre os governos. Médicos Sem Fronteiras só quer acrescentar uma participação para regiões específicas e projetos-piloto definidos. A idéia fundamental é que a presença no local das equipes de Médicos Sem Fronteiras pode agilizar bastante algumas questões que, sem esta presença, poderiam demorar muito mais tempo para serem resolvidas. Não sabemos ainda quais projetos inseridos em quais países vão querer se beneficiar do acordo. O momento é muito rico em mudanças no contexto político e econômico da Aids. Isso faz com que tanto os países como os projetos de ONGs identifiquem as melhores estratégias para o desenvolvimento de uma política de enfrentamento da epidemia. O acordo entre MSF e o Ministério da Saúde é um recurso possível, mas as decisões não serão simples de serem tomadas.


Rets - Particularmente no continente africano, a epidemia de Aids tem proporções impressionantes. Que perspectivas esse acordo traz e que resultados podem ser esperados a médio prazo?


Lotrowska - Realmente se trata de uma incógnita. A vontade política dos governos africanos de enfrentar a epidemia tem sido aleatória. Além disso, as respostas para a epidemia da Aids em contextos extremamente pobres, com altas taxas de infecção pelo HIV, orçamentos baixíssimos e estruturas de saúde precárias, são complexas e requerem intervenções multissetorais. Podemos esperar que o acordo traga a possibilidade de desenvolver projetos-piloto em várias regiões desses países que possam mostrar metodologias inovadoras de enfrentamento da Aids que servem como exemplos bem-sucedidos para outras iniciativas e para outros governos.


Rets - O Brasil obteve recentemente uma vitória na OMC, quando os EUA retiraram a queixa referente à produção de medicamentos genéricos para o tratamento do HIV/Aids. MSF vai levar para a África medicamento mais barato, produzido no Brasil? Essa possibilidade faz parte do acordo com o governo brasileiro?


Lotrowska - Médicos Sem Fronteiras é a favor de uma política de preços eqüitativos para os medicamentos essenciais à saúde das populações dos países em desenvolvimento. Neste contexto, a concorrência de medicamentos genéricos tem tido efeitos positivos no contexto mundial. A Índia e seus laboratórios privados têm tido um papel fundamental na redução de preços de anti-retrovirais em países onde as patentes não existem. Far-Manguinhos desenvolve esse papel de “concorrente” no Brasil, onde os preços dos medicamentos fabricados localmente despencaram drasticamente em dois anos. MSF está interessado igualmente em aumentar a capacidade de pesquisa e desenvolvimento de Far-Manguinhos, tendo em vista a necessidade de simplificação de tratamentos, de novas associações de medicamentos anti-retrovirais e de investimento em pesquisa para populações vivendo em situação de pobreza. Neste sentido, um acordo de parceria que está sendo elaborado com a Fiocruz poderá beneficiar alguns projetos de Médicos Sem Fronteiras nos países onde trabalha, inclusive com medicamentos produzidos por Far-Manguinhos, sempre dentro deste quadro de projetos-piloto e de colaboração.


Rets - Que outras iniciativas o MSF tem procurado promover para conter o avanço da Aids e para melhorar a qualidade de vida dos portadores da doença ?


Lotrowska - Existem duas batalhas principais que podem contribuir para conter o avanço da Aids. A primeira se desenvolve no nível político. Trata-se de considerar os medicamentos de maneira diferente dos outros produtos existentes. A luta para um reconhecimento, pela OMC, da necessidade de um tratamento diferenciado para medicamentos é liderada pelo Brasil e recebe o apoio de uma série de organizações, inclusive Médicos Sem Fronteiras. Essa luta é associada ao esforço de baixar os preços de maneira eqüitativa para todos os países em desenvolvimento. Isso deve se dar através de mais transparência em relação aos preços, de mais concorrência e de uma utilização melhor, por parte dos países-membros da OMC, das retaguardas oferecidas pelo acordo TRIPS. Existe um apoio de MSF para conscientizar os países das necessidades de aprovar leis dentro da legalidade do TRIPS que permitam exceções para casos de saúde pública. No campo da assistência, a melhoria da qualidade de vida das pessoas vivendo com Aids é um desafio complexo e que mostra os níveis de exclusão aos quais o mundo chegou hoje. Por exemplo, há países em que um tratamento de malária a U$ 2,50 é considerado caro demais. Como, então, implantar uma terapia anti-retroviral que custa U$ 350 ao ano e que não tem prazo para acabar? Sabendo que uma noite de UTI pode custar de 6 mil a 10 mil dólares em países desenvolvidos, a gente tem uma noção das ineqüidades globais que o mundo está enfrentando. As melhorias na qualidade de vida dos portadores de HIV passam, primeiramente, pela possibilidade de ficar vivo, de ter acesso aos medicamentos essenciais para doenças oportunistas (muitas vezes sob patentes e caros), para as dores decorrentes dessas doenças e, futuramente, para que continuem vivos e possam se beneficiar com a introdução de terapias anti-retrovirais. Mas esse sonho ainda continua distante para a maioria dos países africanos.


Rets - Quais os números mais recentes da epidemia no mundo e, particularmente, no Brasil?


Lotrowska - No Brasil, estima-se que existam 600 mil HIV positivos. São 100 mil pessoas usando a terapia anti-retroviral. Mais de 100 mil pessoas morreram desde o início da epidemia no Brasil. No mundo, estima-se 36 milhões de HIV positivos, sendo 90% em países em desenvolvimento e 70% nos países africanos subsaarianos.


Rets - Os remédios permitem o tratamento, mas não podem fazer nada contra a discriminação e o preconceito. De que maneira o MSF tem procurado agir contra esse problema?>


Lotrowska - A discriminação e o preconceito são dois fatores que fazem com que o enfrentamento da epidemia seja tão lento na maioria dos países em desenvolvimento. Enquanto o único desfecho de um teste de depistagem positivo for a morte garantida do doente, a curto ou médio prazo, ninguém desejará fazer o teste, porque saberá que a única conseqüência de seu diagnóstico será a exposição ao preconceito e nenhuma forma de tratamento. Sendo assim, de um lado, o estigma e a discriminação se alimentam da falta de acesso à informação clara e adaptada à realidade local dos países. De outro lado, a falta de solução, isto é, tratamentos para o problema, acaba fortalecendo a discriminação dos doentes. O preconceito é, portanto, causa e conseqüência, no caso da epidemia de Aids, mas o uso de medicamentos anti-retrovirais pode ajudar a reduzi-lo. No entanto, é fundamental que sejam feitos, também, investimentos na prevenção, educação e conscientização das pessoas. É claro para todos que tratamento e prevenção têm que ser tratados em conjunto e têm efeitos multiplicadores quando considerados conjuntamente.


Rets - Médicos sem Fronteiras ainda permanece no Afeganistão, apesar da guerra? Como é possível atuar nesse cenário e de que forma pode se dar a participação dos grupos de ajuda humanitária durante a guerra?


Lotrowska - Sim, Médicos Sem Fronteiras continua a desenvolver seu trabalho no Afeganistão, apesar da gravidade do conflito no país. Embora todos os grupos de ajuda humanitária tenham deixado o Afeganistão no dia 15 de setembro, continua havendo, em Badakhshan, no noroeste do país (área não-talibã controlada pela Aliança do Norte), uma equipe completa de profissionais de Médicos Sem Fronteiras que continua seus projetos de saúde. Outras dez equipes estão distribuídas pelo país, trabalhando nas áreas talibãs, compostas agora somente por pessoal afegão. MSF estão ainda estrategicamente posicionadas ao longo das fronteiras do Afeganistão, de modo a responder a movimentos migratórios, caso o ataque norte-americano ganhe proporções ainda maiores e com a chegada do rigoroso inverno. Paralelo aos programas de saúde nas cidades, o trabalho nos campos de refugiados continua. MSF tem agora também uma equipe em Quetta, na fronteira com o Paquistão, que conta com três membros paquistaneses. A participação de grupos de ajuda humanitária, nesse cenário, é preciosa, muitas vezes a única alternativa de que dispõe a população local. O trabalho, num cenário de guerra, é mais arriscado e limitado, mas fundamental para o alívio das precárias condições de saúde daquelas pessoas.

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