Autor original: Fausto Rêgo
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Em uma época de intenso materialismo, globalização, competição e agressividade, pode soar ridículo que alguém venha falar de equilíbrio espiritual, harmonia e amor como fundamentos de uma cultura de paz. Mas basta olhar em volta, ler as notícias do dia ou acompanhar pela Internet os lances mais recentes da guerra no Afeganistão para pensar duas vezes e ver sentido no que diz Pierre Weil. Psicólogo, educador, escritor e terapeuta, este francês é, aos 77 anos, um missionário da paz. Aos 14 anos, escreveu em seu diário: “Minha pátria é principalmente a Terra”. Com naturalidade, portanto, estabeleceu-se no Brasil e implantou aqui o seu projeto por um mundo melhor. Criou em Brasília (DF) a Universidade Holística Internacional e a Fundação Casa da Paz, que juntas formam a Unipaz, cuja proposta é disseminar conceitos que possibilitem a transformação do ser humano, a partir de uma síntese de métodos ocidentais e orientais. Por esse trabalho, Weil recebeu da Unesco o prêmio Educação para a Paz.
Celebrando a cultura de paz brasileira, criticando as “edificações superficiais” da sociedade e pregando o “desarmamento espiritual”, Pierre Weil vê com esperança o surgimento de uma nova geração de seres humanos – por ele chamados de mutantes.
Rets - O que fez o senhor vir para o Brasil e iniciar esse trabalho?
Pierre Weil - Eu vim como assistente do meu professor da Universidade de Genebra, para trabalhar no Departamento Nacional do Senac, dando aulas de Diagnóstico da Personalidade. Vim para ficar três meses, pediram para eu ficar um ano e já faz 54 anos que estou aqui.
Rets - A Unipaz foi criada com o propósito de implantar um modelo de educação voltado para a plena consciência, uma educação para a paz. O que é educar para a paz e como o senhor vê a receptividade dos brasileiros a essa proposta?
Pierre Weil - O Brasil é um dos países mais pacíficos do mundo, é uma cultura de paz ameaçada pela violência que vem de fora. É um país hospitaleiro, terra do abraço, da solidariedade, das favelas, da hospitalidade, da diplomacia, da paz. O próprio Itamaraty tem uma disposição de paz. Já havia uma predisposição para uma educação de paz. O modelo foi montado a partir da resposta à pergunta “qual a gênese da violência no mundo, como ela nasce e se desenvolve?”. É um suicídio coletivo destruir a vida no planeta. Nós dividimos a educação para a paz em três aspectos: a paz consigo mesmo (o que chamamos de ecologia interior), a paz com os outros (que é a ecologia social) e a paz com a natureza (ecologia ambiental). Consideramos que existem três aspectos da consciência: a individual, a social e a planetária, indo para uma consciência universal. É uma síntese entre métodos ocidentais e orientais. Essa consciência universal é a consciência do lugar do ser humano no universo. Um ser energético, que contém o universo e suas leis. Da mesma forma que o universo, ele também se fez de matéria de vida em formação. Mas, como não sabe disso, o homem se acha separado do universo, acha que o universo está fora dele. E cria na sua mente uma dualidade: eu e o mundo. Por causa dela, se apega ao que lhe dá prazer e rejeita o que lhe dá dor, pois não vê como uma interação indissolúvel.
Rets - Há tempos se prega a idéia de um mundo socialmente mais justo e responsável. No entanto, o que se vê é justamente o oposto, com o aumento da fome e do número de excluídos, com a intolerância étnica e religiosa gerando conflitos. Por que a retórica não alcança a prática?
Pierre Weil - Porque as edificações são superficiais. A Unesco, há 40 anos, já deixou bem claro que a violência começa no espírito dos homens. As pessoas pensam que fazendo paz em Kosovo vai ter paz no mundo. Não vai, não. Apaga apenas o incêndio. Podem desarmar todos os seres humanos; se não se desarmar a agressividade dentro deles, eles vão se agredir com tapas e pontapés. Essa retórica é muito superficial. Faz 60 anos que ouço falar em conferências sobre desarmamento. Tem que desarmar dentro das pessoas, daí a educação para a paz. E é preciso começar já na escola pública.
Rets - O senhor é otimista? Acha possível alcançar em curto prazo esse mundo ideal?
Pierre Weil - Não é questão de ser otimista, mas realista. Em prazo curto, nem pensar. Mas a partir do momento em que as mídias se transformarem em instrumentos de educação, pode-se fazer alguma coisa. No momento, ela educa e deseduca. A mídia pode se colocar a serviço da paz ou da violência. Essa mudança não pode ser por imposição de governo, pois isso interferiria na liberdade de imprensa. Mas é preciso encontrar formas de expressão elevadas que gerem audiência, pois é a audiência que regula a mídia. Se a violência gera audiência, mostra-se mais violência.
Rets - Os talibãs, que detêm o poder no Afeganistão, são hoje a representação mais evidente do fundamentalismo religioso e do seu uso político. Curiosamente, a palavra talibã significa aluno, estudante. Qual a grande escola desse tipo de comportamento que, a despeito de se basear na religião – que, por definição, deveria unir –, acaba sendo um foco de intolerância?
Pierre Weil - Não é preciso ir ao Afeganistão. Aqui, no Ocidente, basta ver o que se passa entre católicos e protestantes na Irlanda. Ali a violência se deve a um fundamentalismo cristão. Na Espanha, temos também o extremismo basco. E temos todo tipo de extremismo, que, em geral, provém de idéias reducionistas. E tudo isso nasce do espírito dos homens.
Rets - Nos anos 70, com o trauma da guerra do Vietnã, o movimento hippie e a cultura de “paz e amor”, imaginou-se que um outro mundo seria possível. Falava-se na Era de Aquário, no século 21, como o início de um novo tempo. Passados trinta anos, estamos diante do que pode ser o começo de uma nova guerra mundial, em um mundo fragmentado em crenças, economias e desigualdades. O que, afinal, levou a humanidade a se desviar do caminho da paz? Qual o caminho para a transformação?
Pierre Weil - O início do percurso foi errado. Mais uma vez, colocou-se a coisa como se a Era de Aquário fosse trazer a paz por si só. No entanto, piorou, porque ninguém fez esforço algum para transformar a realidade. Atacou-se a violência através do rock, que também é uma música violenta. Entre Bach e Beethoven e o rock, há uma grande diferença na sonoridade e na melodia – embora possa haver rock com palavras de paz, mas soa estranho. Não é o caso da música new age, suave. Por outro lado, nessa época dos hippies, houve uma geração que aderiu a um movimento de transformação interior. Assim, a ioga, o tai-chi-chuan, o aikidô, todas as técnicas pacíficas de geração de paz espiritual entraram no Ocidente. Esse número de pessoas, hoje, está aumentando. Eu os chamo de mutantes. São pessoas que estão num processo de transformação espiritual muito profundo, irradiando paz, tornando-se um exemplo da direção que precisa ser seguida. Acho que aí há uma luz de esperança, da qual faz parte o esforço da Universidade da Paz. Mas também apareceram pessoas que encontraram em sua própria religião um caminho. Veja, por exemplo, o aumento do número de cristãos que fazem o Caminho de Santiago de Compostela e, nessa caminhada, têm uma experiência divina. Tudo isso está mesclado com a diminuição da influência da cultura “masculinista” desses quatro mil últimos anos – racionalista, agressiva, violenta – e a entrada da cultura feminina através do movimento feminista, trazendo mais amor ao mundo. A paz é resultante de uma harmonia entre o masculino e o feminino, entre a razão e o coração. Um sem o outro pode nos levar ao desastre. E o futuro da humanidade, agora, vai ser um encontro entre o masculino e o feminino.
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