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As torres da gestão social

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original:

* Demóstenes Romano Filho


Certa vez, Leon Tolstoi disse que algumas pessoas entram num bosque cheio de vidas e só conseguem ver lenha para carvão.


Talvez sejam assim as pessoas e as organizações que só conseguem ver as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos de mais baixa renda como mão-de-obra a ser preparada para servir ao mercado e como ameaça de violência a ser controlada. No primeiro caso, uma das melhores hipóteses é oferecer "cursos de pobre para pobre continuar pobre", servindo aos de mais alta renda. No segundo caso, uma das melhores hipóteses é oferecer "pão e circo", em forma de cesta básica, bolsa-escola, esportes, danças e pirotecnias de lazer que mantenham os excluídos dependentes, de barriga cheia e de futuro vazio.


O contrário disto é acreditar nas pessoas de baixa renda por suas potencialidades e não lembrar delas apenas por suas necessidades. É ver o óbvio: uma criança favelada só passa a ter potencialidades menores do que uma "bem nascida" quando elas começam a ter diferentes caminhos, diferentes instrumentos para caminhar e diferentes horizontes a conquistar.


Acreditar verdadeiramente na potencialidade das pessoas de baixa renda, principalmente nas crianças, nos adolescentes e nos jovens, é muito mais do que lhes "dar o peixe" ou lhes "ensinar a pescar": é lhes ensinar piscicultura, para sua autogestão e sua auto-sustentabilidade. É sair da velha cultura da manutenção para uma postura de evolução, onde eu passo da doação, do que me sobra e que muitas vezes vicia, humilha e domina, para a articulação de recursos que às vezes nem tenho, mas que transformam o outro na elevação de sua auto-estima, no fortalecimento de suas esperanças, no alargamento de seus horizontes, na expansão de seus conhecimentos, na realização de seus sonhos, na alimentação do seu sentido de vida, na sua evolução.


Uma inquietante obviedade: o que seria o sistema penitenciário em qualquer cidade brasileira se estivessem presos todos os condenados, se fossem condenados todos os criminosos e se fossem legalmente caracterizados como criminosos todos os cidadãos que infringem códigos reguladores de comportamentos pessoais nas relações sociais?


Outra também inquietante constatação, geralmente desconsiderada: quase todos os aprisionados mais jovens passaram por uma escola de ensino fundamental pelo menos um dia; muitos estiveram numa creche; todos foram "público-alvo" de alguma articulação religiosa ou de alguma ONG ou de projetos governamentais.


Antes de serem criminosos, muitos ainda eram somente "meninos de rua" ou "meninos na rua" ou bad boys e quase todos foram atraídos pelo crime exatamente pela oportunidade de serem desafiados em sua capacidade de ousadia, de realização, de empreendedorismo e de afirmação pessoal e social.


O que fazer, por que fazer, como fazer e por onde começar?


Em primeiro lugar, a questão é ética: está passando da hora de assegurarmos resultados na área social e na área ambiental com o mesmo empenho e a mesma competência com que asseguramos resultados na área econômica, no desenvolvimento científico, nos avanços tecnológicos.


Em segundo lugar, a questão é humanística: quando queremos, somos capazes de cuidar adequadamente do mico-leão-dourado, da ararinha azul, da baleia branca, de um cachorro de estimação, de um eqüino puro-sangue etc, etc, deixando o bicho-homem em segundo plano.


Em terceiro lugar, a questão é cósmica e, ao mesmo tempo, social e mercadológica: do mesmo jeito que não cuidar da água e das árvores prejudica a oxigenação do planeta, deixar um terço das pessoas excluídas de suas reais capacidades de produção e de consumo causa desequilíbrio social, desarmonia emocional, desperdício de energias, crises.


Albert Holzhacker, da Fundação Dixtal, é um empresário confiante em muitas saídas para o Brasil, desde que tenhamos na área social, onde somos de 68º a 74º colocados no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), a capacidade de assegurar resultados que demonstramos ao nos posicionarmos entre 8º e 12º lugar no ranking dos países mais ricos.


Empenhado em procurar soluções novas para velhos problemas, Albert acabou usando sua lógica de engenheiro para, junto com o também engenheiro Marcelo Cerulli, encontar na fórmula do norte americano Gleicher o que ele vê como fatores facilitadores e fatores dificultadores em processos de mudanças:


M =  I x B x S


            R x D



onde M é mudança, I é o grau de incômodo com uma situação indesejada da qual preciso me livrar, B é a quantidade e a qualidade de benefícios que terei com a mudança e S são sucessos nos primeiros passos, êxitos imediatos e resultados visíveis na melhoria de minha vida, seja emocionalmente, profissionalmente, espiritualmente ou financeiramente (o sucesso inicial, principalmente nos primeiros passos, é fundamental para evitar o “eu sabia que não ia dar certo”). Em contraposição a estes fatores propulsores, os fatores inibidores da mudança são o R de riscos (pessoais, institucionais, emocionais, profissionais etc.) e o D de denúncia (opiniões depreciativas de outros a mim por minha atitude mudancista ou minha própria autodenúncia em forma da conservadora atitude de "não dar o braço a torcer", de não admitir o processo evolutivo sem culpa e sem sentimento de perda).


Obviamente, a fórmula tanto serve para visualizar condições de ação eficaz (motivação, persistência, tolerância, paciência, empreendedorismo, zelo, ética, civismo, comportamento quântico, visão holística, sentido planetário, humanismo, espiritualismo etc, etc.) do agente da mudança, de quem faz, do emissor, de quem articula o trabalho transformador, como serve para visualizar as condições de eficácia do trabalho pelos valores éticos e culturais do receptor, beneficiário e razão de ser da proposta de mudança.


Esta fórmula, como outras representações esquemáticas de gestão, contribui para inquietantes reflexões sobre a baixa eficácia no uso de tanto dinheiro de organizações governamentais e de organizações não-governamentais em ações sociais.


Pensemos, por exemplo, na dificuldade de inovação da maioria das pessoas que até pensam estar inovando, mas que estão apenas surfando no processo de efetiva mudança, porque seu incômodo é difuso, genérico, comum a todos os cidadãos, não maior do que o incômodo de quem depende de sua ação transformadora da realidade. A quem mais incomoda o desemprego: ao agente governamental que lida com o assunto, ao empregador ou ao desempregado? A quem menos incomoda o analfabetismo: ao funcionário público burocrático que é pago para erradicar esta vergonha, aos intelectuais que estudam o assunto, aos que se intitulam educadores, aos próprios analfabetos ou aos prejudicados diretamente pela eventual limitação do analfabeto?


Nesta mesma linha de reflexão, vale lembrar a dificuldade de resultados efetivamente inovadores também na gestão de recursos hídricos, nos projetos de combate à violência, na gestão do ensino fundamental, na gestão da saúde, na gestão de esportes, na gestão de transportes etc., etc., etc. profissionais, etc, etc, etc.


Para agravar, depois de analisar o baixo grau de incômodo que a situação indesejada costuma provocar no agente mudancista e no(s) beneficiário(s) de sua ação transformadora, é preocupante constatar que nos exemplos do parágrafo anterior também os benefícios são igualmente difusos e genéricos, influindo negativamente nos resultados.


Pela fórmula, só o baixo grau de incômodo, o baixo grau de benefício e o baixo grau de sucesso já seriam fatais no processo de mudança. Ocorre que na área social, geralmente, os riscos costumam ser excessivamente considerados, principalmente nas organizações governamentais e em instituições também burocratizadas, onde as pessoas mais são punidas pelo que fazem do que pelo que deixam de fazer.


Como se não bastasse tudo isto para atravancar qualquer processo de mudança, ainda resta a dificuldade que todos temos em fazer opção por uma nova situação, ficando expostos aos outros e aos nossos sentimentos, como se deixar uma situação esclerosada e ineficaz nos condenasse como protagonistas e amantes da esclerose e da ineficácia e não nos absolvesse como também vítimas das circunstâncias.


Um jeito de caminhar em direção a mudanças é lembrar que toda e absolutamente qualquer evolução é fruto, direto ou indireto, de um processo emocional, sempre confirmando que a emoção move e a razão organiza. Pensemos no cotidiano, em constatações óbvias, como nestas cenas: cena 1 – pessoas "deram a vida" pela construção do World Trade Center e pessoas se suicidaram pela destruição dele, por fé no capitalismo norte-americano, por ódio ao capitalismo norte-americano, por amor a suas pátrias, por intolerância, por coerência aos seus valores, por necessidade de afirmação etc, etc; cena 2 – jovens seqüestram não só por dinheiro, mas pelo significado do seqüestro em sua auto-estima, pela adrenalina do risco, pela audácia, pelo jogo do poder, pela necessidade de afirmação, por amor e ódio etc, etc; cena 3 – o Muro de Berlim não era apenas um muro, porque foi construído e foi derrubado como símbolo de amor e ódio, de opressão e de liberdade, de convicções, de crenças, de valores permanentes da humanidade; cena 4 – pelo modismo da interatividade ou pelo interessante, salutar e sempre útil exercício de empatia, é bom "descobrirmos" quais são as "torres" de nossas vidas, antes que alguém as bombardeie; quais são os "muros" em nossas convivências e quais são os "seqüestros" em nossas razões de viver.


Então como conseguir efetivos resultados em processos de mudanças, se são como são muitos que trabalham em governos, se são como são muitas organizações não-governamentais e se são como são muitas pessoas e instituições em comunidades de baixa renda e baixa escolaridade?


Quando se é um empresário querendo efetivos resultados de mudança em novo produto, uma providência logo é tomada: ter todos os produtos similares ao pretendido superanalisados e tornados referências nos detalhes que devem ser copiados e nos detalhes que não devem ser imitados.


É isto que faz da área industrial um contínuo e permanente campo de evolução de tecnologias, pela agregação de valores de um a outro projeto ou de um a outro produto. Ao contrário, na área social, cada um quer um projeto seu, reinventando a roda ou fazendo a mesmice de roupa nova, como se registro em cartório, inscrição em órgão governamental, logomarca bem criada e campanha premiada fossem mais relevantes do que resultados. E a falta de resultados efetivamente transformadores da realidade e antecipadores de futuro fica ainda mais comprometedora quando vira causa e efeito de vaidades, egocentrismos e narcisismos.


Sair da mesmice na área social exige ousadia, modernidade, técnicas, metodologias, muita indignação com a ruindade, muita crença na sua própria possibilidade como agente de mudança, muita fé na libertação, muita esperança nas potencialidades dos outros, muita vontade de evoluir e muito empenho na construção de um mundo melhor.


* Demóstenes Romano Filho, articulador do Projeto “Meu Quarteirão no Mundo e o Mundo no meu Quarteirão”.

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