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Humanidade sem limites

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






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MSF




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OXFAM



A mão que dispara o míssil é a mesma que, minutos depois, atira pacotes de alimentos sobre a terra devastada. A combinação de ações humanitárias e militares tem produzido essa situação e causado alguma polêmica entre as organizações internacionais que realizam trabalhos de apoio a refugiados, famintos, doentes, enfim, às vítimas das catástrofes naturais e humanas. O primeiro-ministro inglês, Tony Blair, pôs mais lenha na fogueira ao anunciar que pretende enviar ajuda ao povo do Afeganistão por intermédio de entidades como a Oxfam e a Christian Aid.


O temor quanto às possíveis conseqüências dessa explosiva combinação entre ações de guerra e ações de paz é manifestado claramente por Ofelia García, coordenadora geral de Médicos sem Fronteiras, que, apesar dos bombardeios, permanece em atividade no Afeganistão, com oito programas humanitários em áreas controladas pela milícia talibã e outros três projetos nas áreas sob controle da Aliança do Norte, o grupo de oposição local. Ela afirma que Médicos sem Fronteiras é “veementemente contra” a associação entre operação militar e ajuda humanitária. Em nota oficial divulgada logo após os primeiros ataques, a entidade protestou contra a utilização desse expediente como propaganda militar e com o propósito de garantir a simpatia da opinião pública internacional. “O envio de medicamentos e comida, em plena noite, durante o bombardeio e sem o conhecimento de quem iria pegar os suprimentos, é, na prática, inútil e até mesmo perigoso”, comenta Ofelia. “As equipes locais informam que boa parte dos suprimentos lançados caiu em campos minados. Qual o sentido, então, de atirar com uma mão e dar medicamentos com a outra? Como a população afegã saberá, no futuro, que uma ajuda humanitária não esconde uma ação militar? Além do mais, a confusão entre ajuda humanitária e militarismo apenas aumenta o perigo de já complicadas ações humanitárias, restringindo ainda mais as possibilidades de intervenção”.


Em artigo publicado pela revista eletrônica Spiked, Bernadette Gibson se refere a notícias de que os afegãos estariam queimando os mantimentos atirados pelos aviões ingleses e norte-americanos. Nessa reação ela enxerga uma nítida desconfiança do povo quanto às “boas intenções do Ocidente”. E cita uma imagem exemplar: sintomaticamente, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, visitava o escritório norte-americano da Cruz Vermelha, para alardear seus propósitos humanitários, quase ao mesmo tempo em que seus aviões bombardeavam um armazém utilizado pela entidade no Afeganistão – erro, aliás, que se repetiu na última quinta-feira, dia 25.


Em meio aos ataques, a assistência internacional busca alternativas para levar ajuda aos refugiados e às vítimas do conflito. A Oxfam, agência britânica que se dedica ao desenvolvimento de ações de combate à pobreza e assistência a flagelados em todo o mundo, chegou a organizar um movimento solicitando a suspensão dos bombardeiros para permitir a passagem de caminhões com alimentos e medicamentos para a população civil. A preocupação é com a proximidade do rigoroso inverno afegão. O pedido foi recusado. A organização pretende ainda que as ações humanitária e militar sejam mantidas separadas, para evitar que o esforço das equipes de ajuda seja visto com maus olhos. Diante da disposição dos chefes de governo da coalizão internacional contra o terrorismo, é pouco provável que tenha sucesso. Outras reivindicações da entidade são a criação de campos de refugiados, o cuidado para que os ataques não atinjam a população civil, a autorização do governo talibã para a entrega de comida e remédios aos necessitados e a abertura das fronteiras – para permitir que os refugiados tenham acesso a alimentos e serviços essenciais.


Comunicação reduzida


O fechamento das fronteiras tem sido um forte empecilho à atuação de Médicos sem Fronteiras, que vem tendo grande dificuldade de comunicação com suas equipes em território afegão. Ofelia García diz que a população civil está pagando o preço de 20 anos de guerra civil e três de seca. Agora, em isolamento quase total, quase não há perspectivas. “Com praticamente nenhum acesso à ajuda internacional, o povo afegão deve ter o direito de buscar sua segurança, seja dentro ou mesmo fora de seu país”, diz Ofelia García. “Médicos sem Fronteiras exige que as autoridades locais não apenas façam o máximo para respeitar a pouca assistência ainda disponível. Elas devem também permitir o livre acesso de todos os civis aos locais onde eles ainda possam receber ajuda médica e nutricional. Estamos extremamente preocupados com a contenção da população refugiada e o fechamento de todas as fronteiras internacionais com o Afeganistão”.


A entidade atua no país desde 1979, principalmente nas cidades de Cabul, Mazar-I-Sharif, Faizabad, Herat, e Kandahar. “Os projetos da organização estão voltados para a assistência básica de saúde, o suporte nutricional através de programas de alimentação, a construção de acampamentos, a provisão de água potável e de assistência sanitária, além da realização de campanhas de vacinação em massa, do tratamento à tuberculose, e da assistência no controle a surtos de cólera, malária e escorbuto, distribuindo também medicamentos. Em todos esses programas o enfoque à saúde da mulher é muito grande”, explica Ofelia. A equipe de Médicos sem Fronteiras na região chegou a contar com 70 voluntários internacionais e mais de 400 funcionários afegãos.


O relacionamento com a milícia talibã, que governa a maior parte do país, é delicado. As rígidas normas impostas pelos fundamentalistas dificultam o trabalho dos grupos de assistência internacional. Médicos sem Fronteiras, porém, vem tentando conquistar espaço com a liberdade possível. “É fundamental”, destaca Ofelia, porque nas áreas controladas pelos talibãs encontram-se as populações mais necessitadas”. Problemas, no entanto, sempre acontecem. No dia 8 de outubro, algumas bases operacionais da entidade em Mazar-I-Sharif e Kandahar foram saqueadas, prejudicando o auxílio aos moradores de seis províncias. A equipe que atua na capital, Cabul, também enfrentou contratempos. O Ministério da Saúde do Afeganistão exigiu a entrega de alguns dos medicamentos que seriam utilizados pela população civil.


Apesar do bloqueio nas fronteiras, a Organização das Nações Unidas estima que 65 mil pessoas já tenham deixado o Afeganistão rumo ao Paquistão. Acredita-se que duas mil pessoas estejam migrando diariamente. Somente na cidade de Herat, onde a organização de assistência internacional Christian Aid mantém um acampamento para refugiados, cerca de 52 mil pessoas enfrentam a perspectiva de não ter abrigo adequado para se proteger do inverno que se aproxima. Segundo a entidade, várias pessoas morreram de frio naquela região, no ano passado. As previsões, a princípio, não são muito otimistas. O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) tentou recentemente enviar ajuda para os refugiados de Herat, mas teve de suspender a operação, por medida de segurança.


Diante da miséria e do abandono da população depois de décadas de conflitos, o trabalho humanitário é cada vez mais difícil – e, a cada dia, mais necessário. Como lembra Ofelia García, a fome, as doenças e a falta de acesso básico à saúde já faziam vítimas diariamente. Agora, diz ela, mesmo nessas condições, as organizações humanitárias têm o dever de prestar toda a ajuda possível. Por ora, a guerra só se encarrega de piorar as estatísticas.

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