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A paz que está nas mãos do cidadão comum

Autor original: Mariana Loiola

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A Conferência de Avaliação das Culturas de Paz, realizada em setembro, na Universidade Clark, em Massachussets, nos Estados Unidos, reuniu pesquisadores de diversas partes do mundo engajados num projeto que visa definir os indicadores que poderiam ser utilizados para avaliar o nível de violência de uma sociedade. Em entrevista concedida à Rets, o médico Feizi Milani, único brasileiro envolvido no projeto, fala sobre a sua participação na conferência, os desafios do projeto e o caminho para a implementação de uma cultura de paz no Brasil.


Especialista no assunto, Feizi Milani coordena um projeto de iniciativa do Instituto Nacional de Educação para a Paz e os Direitos Humanos (Inpaz) que tem o objetivo de estimular a prevenção da violência cometida por ou contra adolescentes, em Salvador. Co-autor de dois livros sobre a paz e de artigos sobre adolescência, Milani propõe um trabalho que se baseia no princípio de que somente através do desenvolvimento e do exercício da cidadania, dos direitos humanos, da justiça social, da educação e dos valores morais é possível a construção de uma cultura de paz e de relações mais sadias.


Rets: Como foi a contribuição do Brasil para a conferência?


Feizi Milani: Fui o único participante brasileiro na conferência. Isso se constituiu numa grande honra e, ao mesmo tempo, tremenda responsabilidade para mim. Da mesma forma que os demais pesquisadores, fui solicitado a escrever um ensaio sobre a realidade de meu país, no que se refere à cultura de paz. Meu texto enfatiza os desafios prioritários que, no meu entender, defrontam a sociedade brasileira na construção de uma cultura pacífica. Pelo feedback que recebi dos colegas presentes à conferência, o texto e minhas contribuições ao debate foram consideradas valiosas.


Rets: Por que surgiu a necessidade de desenvolver esse projeto?


Feizi Milani: Ao aprovar o Plano de Ação para a “Década Internacional pela Cultura de Paz e Não-Violência em Benefício das Crianças do Mundo” (2001 ­ 2010), a Assembléia Geral da ONU instruiu seu secretário-geral, Kofi Annan, a apresentar relatórios sobre o andamento do plano, incluindo uma avaliação do avanço desse processo. A necessidade de avaliação implica a criação de instrumentos de mensuração, ou seja, de indicadores que possam ser acompanhados ao longo do tempo, tornando visíveis conquistas, retrocessos ou paralisias.


Quando a ONU aprovou esse Plano de Ação, conclamou a sociedade civil planetária a gerar um movimento social que promova a cultura de paz. Essa foi a primeira vez na história que a Assembléia Geral das Nações Unidas convida a humanidade, como um todo, a empreender uma ação coletiva. Como se sabe, as decisões da ONU sempre se referem aos estados-membros ou às suas próprias agências. Isso foi um significativo reconhecimento – implícito, é verdade, mas de conseqüências históricas –- de que a construção de uma cultura de paz é impossível sem a participação da sociedade civil organizada. Em outras palavras, a paz não será alcançada se depender somente dos governos. O cidadão comum precisa agora se reconhecer como “cidadão global” e compreender que a paz é um assunto que lhe diz respeito diretamente, do qual depende o seu bem-estar e o de toda a raça humana.


A decisão da Assembléia Geral teve outro aspecto inédito: as ONGs foram autorizadas a reportarem diretamente ao Secretário Geral da ONU os processos de construção da cultura de paz. A Conferência de Avaliação das Culturas de Paz e a pesquisa que se seguirá são, portanto, uma resposta da Academia à convocação da ONU. Uma resposta importante, necessária, oportuna e, após os atentados terroristas de 11 de setembro, urgente.


Rets: Como será a definição de critérios e parâmetros para mensurar a cultura de paz de uma sociedade?


Feizi Milani: Esperamos definir esses indicadores ao final do projeto, em setembro de 2002, quando o mesmo grupo voltará a reunir-se na Clark University. Definimos um subgrupo, dentre os 20 pesquisadores engajados nesse projeto, ao qual caberá a responsabilidade de discutir essas questões em profundidade e tentar chegar a uma proposta mais concreta.


Pessoalmente, estarei engajado em outro subgrupo, ao qual caberá propor indicadores de uma cultura de paz no contexto escolar. Ou seja, que parâmetros podemos utilizar para avaliar o quanto o ambiente de uma escola reflete os valores de paz ou de violência. Espero contar com a participação de educadores, pesquisadores, ONGs e dirigentes do sistema educacional de todo o Brasil nessa discussão. Para tal, coloco à disposição o site do Instituto Nacional de Educação para a Paz e os Direitos Humanos (Inpaz), que é www.inpaz.cjb.net. Lá o internauta encontrará textos de apoio e o Fórum Brasileiro de Cultura da Paz, onde todos podem expor suas idéias e contribuir para esse processo. O e-mail do Inpaz é inpaz@bol.com.br.


Rets: No que consiste uma cultura de paz e até que ponto é possível concretizá-la?


Feizi Milani: O conceito de cultura de paz foi desenvolvido pela Unesco, ao constatar que a mera assinatura de acordos políticos tem sido insuficiente para evitar novas guerras. É necessária, portanto, uma profunda transformação cultural, que previna os fatores que geram a violência. Segundo a resolução adotada pela Assembléia Geral da ONU, a cultura de paz “se concretiza através de valores, atitudes, formas de comportamento e modos de vida que conduzem à promoção da paz entre indivíduos, grupos e nações”.


Rets: Que aspectos têm mais urgência de serem modificados no Brasil para que se alcance uma cultura de paz?


Feizi Milani: No ensaio apresentado na conferência, enfatizo que a primeira mudança necessária é a de paradigmas. O paradigma da cultura de paz ainda não foi adotado pela maioria da população brasileira, nem pelos segmentos formadores de opinião ou governantes. Lamentavelmente, no Brasil, a maior ênfase é dada à repressão da violência e à punição da criminalidade, principalmente quando esta é causada por indivíduos das classes marginalizadas. Uma outra parcela de nossa sociedade enfatiza tanto as mazelas sociais e a exclusão econômica, que termina por gerar a noção distorcida de que nada pode ser feito enquanto essas questões macro não forem solucionadas.


O paradigma da cultura de paz nos permite reconhecer o caráter complexo da realidade e atuar sobre ela de forma sistêmica. A construção de uma cultura de paz engloba todas as grandes transformações pelas quais a maioria da humanidade anseia: justiça social, igualdade entre mulheres e homens, educação universal, equilíbrio ambiental e participação social.


Em minha análise sobre o Brasil, enfatizo quatro desafios prioritários: o exercício pleno e universal da cidadania e dos direitos humanos; a conquista da justiça social, com a redução das desigualdades, em especial a econômica, a social, as que existem entre os sexos, entre os grupos étnicos e na aplicação da justiça; a educação ser assumida como responsabilidade pessoal e institucional de todos os integrantes da sociedade; a incorporação e aplicação de valores morais em todos níveis de decisão e atuação.


Rets: Na sua opinião, quais são os maiores desafios desse projeto?


Feizi Milani: A cultura da paz constitui-se num campo de pesquisa bastante recente e altamente complexo, que exigirá ainda muitos estudos e debates. A própria definição de cultura de paz é objeto de polêmica, uma vez que a adotada pela ONU é muito abrangente, o que pode dificultar a clareza e objetividade necessárias a projetos de pesquisa como esse.


No que se refere aos indicadores do grau de pacificidade ou violência de uma cultura, o grupo defrontou-se com um dilema: criar ou não um “índice”. Um índice seria a resultante matemática da combinação de diversos indicadores, cada qual com um peso específico. A construção de um índice permitiria a elaboração de um ranking dos países, comparando o grau em que a cultura de paz encontra-se desenvolvida em cada um deles. Além de ser uma tarefa de enorme complexidade, o grupo considerou que não há uma cultura-modelo ou algum país que combine, de forma equilibrada, os diversos elementos que constituem uma cultura de paz. Por isto, comparações entre países podem ser contraproducentes.


Há questões que o grupo continuará a debater, via internet. Por exemplo, alguns dos pesquisadores pensam ser mais apropriado falar em “culturas de paz”, indicando uma pluralidade de formas e possibilidades. Outros afirmam haver um conjunto de valores universais que caracterizam a cultura de paz no mundo inteiro, sendo que em cada povo ou grupo tais valores encontram distintas expressões.

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