Autor original: Fausto Rêgo
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Nos dias 24 e 25 de outubro, em São Paulo, o Encontro GIFE 2001 promoveu um amplo debate sobre temas relevantes para o terceiro setor – entre eles, legislação, trabalho em rede e sustentabilidade das organizações. Em entrevista à Rets, a diretora executiva do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), Rebecca Raposo, comenta as alternativas para o terceiro setor, analisa a proposta de criação de um estatuto e aponta a falta de uma estratégia de comunicação como um dos maiores problemas. “É uma verdadeira batalha a obtenção, junto a organismos oficiais, de informações precisas sobre a atuação das organizações da sociedade civil”, afirma.
Rets: Um dos temas principais do Encontro GIFE 2001 foi a discussão de estratégias para harmonizar as leis que regem o terceiro setor. A criação de um Estatuto do Terceiro Setor é fundamental?
Rebecca Raposo: Não necessariamente, mas pode ser uma alternativa. O que estamos desenvolvendo e querendo intensificar é uma articulação com outras organizações representativas do terceiro setor, com o objetivo de tornar mais favorável o cenário para a ampliação do investimento social privado. Na nossa avaliação, é preciso analisar com cuidado os mecanismos legais já existentes e verificar em que são úteis e em que atrapalham o desenvolvimento do terceiro setor brasileiro. A partir daí, essas organizações articuladas elaborarão e debaterão com a sociedade alterações nas leis que estão em vigor e vamos propor novos mecanismos que estimulem um envolvimento maior da iniciativa privada com a área social. Talvez o resultado final seja mesmo um estatuto, que traga um conjunto de leis – existentes e novas – que trate o terceiro setor de maneira harmônica. Se, por um lado, o termo estatuto é aglutinador e de fácil entendimento e apelo social, especialmente junto aos parlamentares, por outro, se não tivermos a prudência necessária, podemos cair numa armadilha e criar uma camisa de força que engesse a atuação das organizações da sociedade civil. Ao final do processo de diálogo, talvez possamos chamar o resultado final dessa articulação de estatuto. O importante é, antes de uma nova lei, termos o consenso sobre o cenário legal ideal para o desenvolvimento do setor. É fundamentados nesse consenso que poderemos ter o ambiente legal e tributário favorável ao desenvolvimento de todas as organizações da sociedade civil.
Rets: Jorge Eduardo Saavedra Durão, representando a Abong em recente seminário sobre o terceiro setor realizado em Brasília, destacou a "ausência de um debate em profundidade no Congresso Nacional e as incompreensões sobre o papel das ONGs" e falou sobre "a dificuldade inerente à noção de terceiro setor enquanto conceito pouco rigoroso e de pouco valor explicativo, que envolve interpretações distintas e polêmicas acerca das relações entre sociedade civil, Estado e mercado". A falta de informação seria um dos principais problemas do terceiro setor, hoje?
Rebecca Raposo: Concordo integralmente com o Jorge Eduardo. Não há dúvida de que há falta de dados sobre o setor. Falta também, a meu ver, uma estratégia de comunicação que “eduque” a sociedade, aí inclusos os congressistas, sobre terceiro setor. Essa ausência de conhecimento prejudica – e muito – nosso trabalho. Além disso, por essência, a sociedade civil é diversa mesmo, o que torna difícil, mas não impossível, estabelecermos consensos sobre o universo de que estamos falando. Por essa razão, junto com outras organizações, o GIFE vem atuando fortemente para mudar esse quadro. Sempre em parceria, temos dado nossa contribuição pesquisando o universo ao qual representamos, que é o das organizações de caráter privado, especialmente de origem empresarial ou familiar, que investem recursos livremente e de maneira sistemática em projetos sociais. É preciso que outras organizações associativas façam o mesmo com sua base de legitimidade. Além disso, está no nosso planejamento estimular as universidades – respeitando a autonomia que devem ter – a realizarem pesquisas nessa área. Entretanto, nossa maior dificuldade no que se refere à obtenção de dados está no campo oficial. É uma verdadeira batalha a obtenção de informações precisas sobre a atuação das organizações da sociedade civil junto a organismos oficiais. E olha que estamos falando de informações básicas, muito fáceis de serem coletadas ou até mesmo que já estão disponíveis nas várias bases de dados dos organismos governamentais, nos três níveis da federação. Esse é um dos itens sobre o qual vamos atuar estrategicamente, buscando um diálogo com esses organismos.
Rets: O terceiro setor vive o eterno dilema da obtenção de recursos e financiamentos para suas iniciativas. A independência das organizações não-governamentais pode ser, de alguma forma, comprometida pela aproximação com o Estado ou com a iniciativa privada?
Rebecca Raposo: Não concordo e não é o que tenho observado em outras partes do mundo. Se as organizações sociais são defensoras de causas e, por definição jurídica, são sem fins lucrativos, como haveriam de se sustentar sem receber recursos de outras fontes? No caso dos recursos governamentais, sabemos que o Estado tem obrigações institucionais que precisa cumprir. Se parte desta tarefa é desenvolvida em parceria com a sociedade, que paga os impostos que são a receita do Estado, me parece justo que aqueles que operam em complementação ao papel do Estado recebam recursos para isso. Ademais, se assim não fosse, não estaríamos liberando o Estado de sua obrigação? Não estaríamos contribuindo para a redução do volume de recursos que vem para a área social, contrariando nossa intenção de ampliar esses investimentos? Se as organizações não recebem recursos dessas fontes, elas teriam que gerá-los, não? Aí me pergunto se o terceiro setor não vira segundo e passa a se preocupar com a geração de receita, e não mais com as causas, que são a mola propulsora das organizações sociais. Acho que as organizações devem receber recursos dessas duas fontes, pois é aí, nesse mix, que reside a segurança. Em última instância, o que nos confere independência é a nossa legitimidade, nossa transparência e nossos valores e as alianças que somos capazes de construir, e não a origem de nossas fontes. Temos que ampliar o debate e o diálogo entre esses setores e eliminar os mitos que existem hoje quando se olha para essas relações.
Rets: A proposta de criação de um fundo patrimonial poderia garantir a autonomia das organizações? Como seria formado esse fundo?
Rebecca Raposo: Este é um outro aspecto que está merecendo atenção de nossa estratégia para modificar o marco legal do terceiro setor. Aliás, a questão do fundo patrimonial está diretamente vinculada à questão anterior, a da independência financeira. Atualmente, a legislação permite uma interpretação legal que fragiliza as organizações que têm fundos. Isto é, elas estão vulneráveis e podem, a partir da interpretação que venha a ser dada, sofrer pressões e talvez até processos. Na minha avaliação, a criação desse fundo, que lá fora é denominado de endowment e é largamente utilizado pelas organizações do terceiro setor, é uma das garantias de perenidade das organizações sociais e de seus projetos. Existem várias formas de se estabelecer um endowment, mas todas elas dependem fundamentalmente da cultura da organização e de seus mantenedores. Pode-se criar esse fundo através da doação anual, de uma única doação em dinheiro ou até mesmo através da subscrição de ações das empresas mantenedoras ou doadoras. O fundamental é termos uma legislação que não só permita a criação desses fundos, mas que também regulamente sua utilização para que possa ser dada à sociedade toda a transparência possível sobre a acumulação dessa riqueza que só pode estar a serviço da perenização das instituições sociais e dos benefícios por elas produzidos.
Rets: De que forma a adoção de normas comuns para o terceiro setor poderá favorecer o trabalho de articulação de redes?
Rebecca Raposo: Garantida a diversidade essencial às organizações da sociedade civil, as normas legais podem tornar mais claro para o conjunto da sociedade o papel que o terceiro setor tem a desempenhar no desenvolvimento brasileiro. Acredito que a normatização possa criar, mais uma vez, sem engessar, um ambiente mais favorável à atuação dessas organizações. As normas, se elaboradas de maneira democrática, podem trazer uma maior facilidade de identificação e isso pode ampliar o trabalho em rede – já existente hoje e que é uma das características diferenciadoras das organizações do terceiro setor. Aliás, nenhuma organização isolada será capaz de assumir qualquer demanda social: é do conjunto de nossos esforços que virá o tão desejado avanço social.
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