Autor original: Mariana Loiola
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O Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania foi realizado em setembro, em Niterói (RJ), com o objetivo de discutir meios para evitar a imposição de conseqüências ambientais negativas sobre segmentos menos favorecidos da sociedade. Deste encontro resultou a criação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, com a proposta de divulgar e aprofundar as pesquisas e atividades nesse campo. Uma das ativistas envolvidas no evento foi a professora Selene Herculano, uma das coordenadoras do LACTTA (Laboratório de Estudos sobre Cidadania, Territorialidade, Trabalho e Ambiente) da Universidade Federal Fluminense. Selene falou, em entrevista à Rets, sobre as perspectivas desse movimento no Brasil.
Rets: O que se entende por justiça ambiental?
Selene Herculano: O clamor por justiça ambiental começou nos Estados Unidos, vindo de comunidades pobres e negras que denunciavam a injustiça ambiental que sofriam, na forma da “coincidência” de terem na sua vizinhança depósitos de rejeitos químicos perigosos, ou de terem suas comunidades assentadas sobre solo contaminado. A partir daí, o movimento por justiça ambiental organizou-se em ONGs, expandiu-se para incluir também outras etnias e para lutar por qualidade de vida – como, por exemplo, no movimento por just transportation, transporte justo e de qualidade. Segundo pode-se ver no nosso site, definimos justiça ambiental, a partir de texto do Prof. Robert Bullard, como “o conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e municipais locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais políticas”. Ou, pelo seu contrário, como o definiu o Prof. Henri Acselrad: "Injustiça ambiental é o mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis”.
Podemos dizer que, também em diferentes países, especialmente no hemisfério sul, movimentos por justiça ambiental ocorrem já há algum tempo, embora com diferentes designações, como, por exemplo, na resistência das comunidades deslocadas ou ambientalmente agredidas por grandes projetos, assim como as lutas por saneamento urbano e por condições dignas de vida, que têm gerado um fenômeno que alguns chamam de “ambientalismo popular”. Contudo movimentos sociais e estudiosos consideram que há mais potencial político no conceito de justiça ambiental, pois nele estão unidos os temas da busca por justiça social e por sustentabilidade.
No Brasil, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, criada a partir do Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania (realizado em Niterói, de 24 a 27 de setembro), propõe-se a divulgar e aprofundar esta linha de ativismo social e de pesquisas, nela incluindo, dadas as nossas especificidades, as carências de saneamento ambiental no meio urbano, bem como a degradação das terras usadas para acolher os assentamentos de reforma agrária, no meio rural, e a precarização do trabalho, que aumentam as possibilidades de riscos de acidentes e de sua amplificação social.
Rets: Quais foram as principais questões levantadas e discutidas no colóquio?
Selene Herculano: Após uma reflexão sobre os enfoques teóricos embutidos no conceito de justiça ambiental, o colóquio debateu suas implicações políticas. Palestrantes estrangeiros convidados nos contaram sobre seus casos, como atuaram, como se organizaram, ajudaram as populações atingidas a se organizarem e quais suas dificuldades, fizeram um balanço de sucessos e insucessos etc (Beverly Wright, pelo Deep South Center for Environmental Justice, da Universidade Xavier da Luisiana; Robert Bullard, pelo Environmental Justice Resource Center, da Universidade Clark de Atlanta; Murray e Adeline Levine, pelo Center for Health and Environmental Justice). No âmbito nacional, ainda no que diz respeito à construção de uma pedagogia de atuação, o Movimento dos Atingidos por Barragens, a ABREA (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto) e a Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do Amianto narraram suas experiências, seus avanços e desafios. A proposta dos primeiros passos para uma agenda de atuação em rede também foi discutida.
Rets: Como está o Brasil, no que se refere à justiça ambiental, em relação aos outros países?
Selene Herculano: O potencial político do movimento por justiça ambiental é enorme no Brasil. Sabemos que o país é extremamente injusto em termos de distribuição de renda e acesso aos recursos naturais. Sua elite é especialmente egoísta e insensível, defendendo de todas as formas os seus interesses e lucros, inclusive lançando mão freqüentemente da ilegalidade e da violência. Embora já tenhamos algumas atuações na busca da justiça ambiental por parte de cidadãos, ONGs e movimentos sociais, elas não estão identificadas por este conceito específico de justiça ambiental. E assim os nossos casos de lutas por qualidade de vida, contra poluição industrial, descargas tóxicas etc. se desenvolvem predominantemente de forma isolada e pontual. Falta comunicação, circulação de informações, acessibilidade de dados em rede nacional – tanto para um aprendizado mútuo como para assessoramento e ajuda –, apoio político etc. Falta coalizão e um fórum de discussão para a construção de uma visão mais abrangente, de formulação de propostas e de linhas de ação, e de uma atuação coordenada. O sentido de cidadania e de direitos, por outro lado, ainda encontra um espaço relativamente pequeno na nossa sociedade, apesar da luta de tantos movimentos e pessoas em favor de um país mais justo e decente. Tudo isso se reflete no campo ambiental. O ambientalismo brasileiro, por outro lado, tem um grande potencial para se renovar e expandir o seu alcance social na medida em que se associe e se solidarize com as massas pobres e marginalizadas, que vêm se mobilizando em favor dos seus direitos. Os movimentos sindicais, sociais e populares, entre outros, também podem renovar e ampliar o alcance da sua luta, se nela incorporarem a dimensão da justiça ambiental, o direito a uma vida digna e a um ambiente saudável. Todas essas lutas, na verdade, representam uma só e mesma luta pela democracia, pelo bem comum e pela sustentabilidade.
Rets: Quais são os problemas mais sérios que apresentamos?
Selene Herculano: O desprezo pelo espaço comum e pelo meio ambiente se confunde com o desprezo pelas pessoas e comunidades mais pobres. Os constantes vazamentos e acidentes na indústria petrolífera, a morte de rios, lagos e baías, as doenças e mortes causadas pelo uso de agrotóxicos e outros poluentes, a expulsão das comunidades tradicionais pela destruição dos seus locais de vida e trabalho, a precarização do trabalho industrial e o aumento dos riscos dentro e em torno das fábricas, tudo isso, e muito mais, configura uma situação constante de injustiça ambiental no Brasil, que se associa com a injustiça social e econômica. A dificuldade de acesso aos mecanismos processuais da Justiça, quando se trata de invocar o Poder Judiciário, é também um problema central.
Rets: Quais foram os principais casos de injustiça ambiental levados ao colóquio?
Selene Herculano: No que diz respeito ao Brasil e à América do Sul, contaminações do solo no Condomínio Barão de Mauá e no ABC paulista; contaminações por HCH na Cidade dos Meninos, na Baixada Fluminense; o caso da Rhodia, da Solvay do Brasil; os “drins” em Paulínia; destruição da cultura econômica das comunidades de Alcântara, pelo Centro de Lançamentos Aeronáuticos, no Maranhão; ameaças das hidrovias sobre os povos indígenas, no Centro-Oeste; formas de contaminação rural pelo uso de agrotóxicos, que chegam a levar a distúrbios mentais e emocionais, provocando assassinatos e suicídios no seio das famílias de lavradores, ao sul do país; a expulsão de produtores rurais das suas terras, para a inundação das grandes barragens hidrelétricas. No que diz respeito aos Estados Unidos, foi exposta a questão de Love Canal e os casos das comunidades negras da Cancer Alley, no vale do Mississipi.
Rets: Qual a postura do governo brasileiro nesse sentido? Que medidas ele deve tomar?
Selene Herculano: A postura é de desconhecimento, fragmentação de iniciativas, morosidade na resposta a denúncias e a pedidos de atuação mais explícita e específica. Os organismos estaduais de controle ambiental parecem desconhecer a temática proposta. Um técnico da Feema (Fundação Estadual para o Meio Ambiente), do RJ, chegou a nos enviar e-mail pedindo que não o contatássemos mais com a divulgação do nosso colóquio, pois ele entendia que o nosso tema nada tinha a ver com o trabalho dele, sobre controle de qualidade ambiental. O governo, em suas diversas instâncias, poderia fazer, com a nossa participação, seminários para seus técnicos. Ou seja, treinamento interno. O governo deveria, ainda, criar comissões mistas para combinar a atuação integrada do pessoal de saúde, trabalho, indústria, meio ambiente, habitação e saneamento, já que operam de forma estanque entre si e todos distantes das populações afetadas.
Rets: Como as ONGs podem ajudar a defender e difundir o conceito de justiça ambiental?
Selene Herculano: Agendando seminários internos, participando da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (que foi fundada nesse colóquio de setembro), divulgando artigos e verbetes em suas publicações e websites, trabalhando em conjunto com pesquisadores para sistematização de banco de dados sobre casos nacionais e fundação de um ou mais centros de referência em justiça ambiental no país.
Rets: Que ações as entidades participantes têm praticado?
Selene Herculano: Há algumas entidades que atuam já há algum tempo, como – além da ABREA, já mencionada – a ACPO (Associação de Consciência à Prevenção Ocupacional), antigamente denominada Associação dos Contaminados Profissionalmente por Organoclorados, entre outras. Essas entidades buscam divulgar os casos e riscos através de manifestações de rua, de denúncia a jornais e ao Ministério Público ou ajuizando ações civis públicas, sozinhas, ou litisconsorciadas com o MP. Em São Paulo, se comunicam em redes eletrônicas e organizam seminários amplos. Todavia, pouco conhecemos sobre o que acontece no resto do país.
Rets: Quais foram as principais sugestões e propostas apresentadas?
Selene Herculano: Propor uma oficina no Fórum Social Mundial de janeiro próximo, em Porto Alegre; delinear estratégias de divulgar a temática através de artigos na imprensa; redação de uma Declaração de Princípios de Justiça Ambiental; criação de uma Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Criação de um ou mais centros de referência em Justiça Ambiental no Brasil. Como tarefa imediata, vamos agora tratar da publicação em livro de tudo que foi apresentado e debatido no colóquio, com o objetivo de municiar estudantes e ativistas sociais com fontes de formação e de informação. Consideramos que o termo justiça ambiental é um conceito aglutinador e mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e ética da sustentabilidade e do desenvolvimento, freqüentemente dissociados nos discursos e nas práticas. Tal conceito contribui para reverter a fragmentação e o isolamento de vários movimentos sociais frente aos processos de globalização e restruturação produtiva que provocam perda de soberania, desemprego, precarização do trabalho e fragilização do movimento sindical e social, como um todo. Justiça ambiental, mais que uma expressão do campo do direito, assume-se como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e entidades, como sindicatos, associações de moradores, grupos de afetados por certos riscos (como as barragens e várias substâncias químicas), ambientalistas e cientistas.
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