Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
* Cristovam Buarque
Nos dias seguintes à morte do índio Galdino, suspendi quase toda minha agenda no governo e fui visitar escolas do Distrito Federal, tentando diminuir o trauma de nossas crianças, especialmente os jovens do ensino médio. Em cada escola eu lembrava que os aviões carregam uma caixa preta onde ficam registradas as causas dos desastres e pedia que imaginassem quais teriam sido as causas daquele nosso desastre.
Cinco anos depois, a condenação dos jovens que cometeram aquele crime deixou-me um pouco aliviado por não ter ficado impune. Mas a pena ficou incompleta, porque os condenados não foram os únicos culpados. No banco dos réus faltou muita gente além deles.
Se aqueles meninos tivessem uma mística, se não sentissem um vazio da sociedade atual, eles teriam usado o tempo deles para brincadeira-real ou para o exercício da cidadania, e não para uma brincadeira-crime. Se tivessem sido despertados para usar o tempo deles em solidariedade com aqueles que dormem em paradas de ônibus, eles não teriam tocado fogo em um desses. Todos nós que ocupamos cargos de liderança, no governo ou na oposição, temos culpa por não termos despertado a vontade de usar seus tempos livres na luta por um Brasil melhor, onde ninguém precise dormir em um ponto de ônibus.
Mas não são apenas os líderes que deveriam estar no julgamento. Também deveria estar lá cada um de nós, moradores desta cidade, que não pára o carro ao passar por uma pessoa dormindo na parada de ônibus para saber se precisa de alguma coisa. Muitos de nós passaram pelo Galdino naquela noite, muitos viram que ele estava dormindo naquele banco e nem ao menos pensaram em parar. Se um único tivesse parado, o crime não teria acontecido.
Os jovens que cometeram aquele crime, como uma brincadeira, merecem uma pena. Mas não só eles. Todos nós brasileiros adultos de hoje e do passado somos coniventes com aquele crime, por ação ou por omissão.
Há cinco séculos aquele crime vinha sendo tramado pela história. Só faltava a oportunidade de quatro jovens e um menor de idade querendo se divertir assustando um pobre. Aquele pobre índio veio a Brasília para lutar pelos pataxós, que tinham sido expulsos da terra que lhes pertencia desde sempre. Se não tivessem sido expulsos, ele não teria vindo a Brasília. Se aqui tivesse tido o necessário apoio na sua luta, ele não estaria dormindo em um banco de ponto de ônibus no meio da madrugada. E se não fosse queimado vivo ali, ele continuaria sua sina de sofrimentos. Há cinco séculos que queimamos índios e pobres, pela fome, pela condenação à falta de escolas, pelo arrastar dos corpos doentes sem atendimento médico, pela prostituição de crianças, pelas chacinas de meninos de rua, pela dor vergonhosa do desemprego.
Os jovens que cometeram a diversão-crime não sabiam se era um índio ou não-índio, mas sabiam que era um pobre. E só cometeram o crime-brincadeira porque os ricos brasileiros se acostumaram a tratar os pobres como se fossem diferentes, como antes tratavam os índios e os escravos, em sistemas de apartação e não apenas desigualdade.
Durante os dias em que debati nas escolas, uma linda menina aparentando dez anos disse que não podíamos parar o carro para ajudar um pobre porque ele poderia ser um assaltante. Essa é a idéia que a elite brasileira tem hoje de seus pobres, possíveis assaltantes, porque, de tão desiguais, os pobres também se arvoram no direito de se sentirem diferentes em relação aos ricos.
Naquele banco dos réus faltaram todos aqueles que nestes 500 anos tomaram as terras dos índios, desaculturaram cada tribo, aqueles que concentraram a renda fazendo do Brasil o mais desigual entre todos os países do mundo, aqueles que preferiram investir em obras de infra-estrutura econômica no lugar das escolas e de postos de saúde, aqueles que orientaram a economia mais para atender à demanda dos ricos do que para atender às necessidades dos pobres. Aqueles que corromperam tanto nossa sociedade que fizeram um grupo de jovens achar divertido assustar com fogo um pobre dormindo em um banco de ônibus, na madrugada de um mês de abril.
Os jovens são culpados do crime que cometeram, pensando estar brincando, mas também são culpados aqueles que fizeram com que os jovens achassem que o crime era uma brincadeira.
Mais grave é que eles estão presos há cinco anos e vão ficar mais alguns, e o Brasil não está fazendo nada que provoque uma radical mudança na realidade e na cultura dos brasileiros. Desde aquele abril, diversos outros pobres foram queimados, maltratados, morreram de fome, de doenças que poderiam ter sido evitadas, por falta de tratamento. Mas os jovens brasileiros nada receberam nestes cinco anos que lhes permita mudar em relação ao que eram naquele tempo em que o crime foi cometido.
Porque a brincadeira-crime que eles cometeram não é diferente da forma como nossa sociedade vem sendo administrada como se fosse uma brincadeira para aumentar o consumo e para divertir a parte rica, enquanto a parte pobre é abandonada. Nós não saímos por aí queimando pobres índios, mas desde o começo do Brasil eles foram expulsos de suas terras; depois, milhões de pobres foram atraídos pelas falsas promessas do desenvolvimento que enriquecia as cidades para poucos e empobrecia o campo para quase todos.
Queiramos ou não, todos nós, brasileiros adultos que temos o poder de participar da vida nacional, com os títulos eleitorais e o direito de manifestação, somos parceiros daqueles quatro jovens brasilienses. Todos nós estamos há 500 anos brincando criminosamente com os recursos deste país, como eles brincaram com um litro de álcool.
Eles são os símbolos de um país doente que brinca com os pobres, sem escolas, sem comida, sem emprego, dormindo em uma parada de ônibus, sem teto, sem terra, sem esperança.
O pior é que, ao condená-los, jogamos neles toda a culpa, como se não fôssemos culpados também. Ao condenar quatro jovens a 14 anos de prisão por queimarem um índio que dormia em uma parada de ônibus, nós ficamos livres para passar com a consciência tranqüila ao lado de milhares de outros pobres dormindo em paradas de ônibus, porque, se forem queimados vivos, nós voltaremos a condenar os autores. Só eles, como se os autores materiais, induzidos por uma sociedade doente, fossem os únicos culpados do crime.
A pena foi certa, mas incompleta. E pode ter um efeito contrário: liberar todos nós para continuarmos no grande crime social, enquanto estão presos os que cometeram o crime individual.
* Cristovam Buarque é ex-governador do Distrito Federal, professor da Universidade de Brasília e autor do livro "Admirável Mundo Atual".
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer