Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Artigos de opinião
Antonio Veronese*
Imaginem uma sala pequena e suarenta, quase escura, com 46 meninos dentro.Vinte e cinco são negros, 12 mulatos e 9 brancos. Dezesseis deles estão com piolho, 4 com escabiose,11 com conjuntivite, um tem o corpo coberto por furúnculos.
Vinte e três têm cicatrizes resultantes de agressões violentas, 12 já foram baleados, 4 feridos à faca, 3 têm marcas de queimaduras.Vinte e seis são analfabetos totais, 12 só sabem escrever o próprio nome, 28 são órfãos de pai, 8 órfãos de mãe, 6 de pai e mãe. Nove foram violentados, 39 já fumaram ou fumam maconha, 36 já cheiraram cola, 7 têm tiques nervosos ou gagueira.
Um tem hipermetropia e catarata degenerativa, um está com pneumonia, um com suspeita de tuberculose, um tem a pele da perna direita tão fragilizada que se rompe a qualquer toque, devido a queimaduras de terceiro grau, 23 estão com algum tipo de doença venérea, 6 estão jurados de morte pelo tráfico, 11 têm desavenças sérias na própria comunidade ou no presídio, um tem no corpo 18 marcas de queimaduras feitas a cigarro, um tem um pedaço de vidro encravado na face, um perdeu totalmente a articulação do cotovelo esquerdo após ser arrastado por um automóvel.
Desses 46 meninos, 12 estarão mortos antes de completar 25 anos. A sala, dentro de um presídio de menores, tem uma mistura de cheiros resultante dos desarranjos intestinais e da copiosa sudorese.
Esse grupo de desgraçados não incomoda mais; está retirado das ruas, não causa mais risco a ninguém. Esse grupo nasceu mal-nascido, cresceu mal nutrido, desde pequeno apanhou como gente grande, ainda impúbere fez sexo como gente grande...
Esse grupo de infelizes logo descobriu que uma ponta de cola de sapateiro tira a fome e faz dormir e custa dez vezes menos que um hamburger. Esse grupo de infelizes, órfãos absolutos do Estado , até que tentou arrumar um emprego, mas acabou sucumbindo ao canto de sereia dos traficantes, com suas ofertas de dinheiro fácil e emoções sem limites.
Esse grupo, de trágico passado e sombrio futuro, está reunido nesta sala, na modorra da tarde, para ouvir Mozart e pintar a óleo. E, surpreendentemente, o trabalho que resulta desta oficina encanta a todos e revela, apesar de tudo, uma remanescente alma de criança nesses meninos de cara feia e história triste. Pelo simples exercício de pintar e ouvir música, mais de 50% deles têm suas penas reduzidas, sendo considerados re-adaptados ao convívio social. Provocados por atividades estético-culturais emocionam-se e recuperam rapidamente a auto-estima e a dignidade. A violência intra-grupo cai a zero e a reincidência no crime é tres vezes menor.
Somente no Rio de Janeiro mais de 600 desses meninos são assassinados todos os anos. Mais de 5.000 sofrem lesões corporais dolosas. Sessenta e um por cento deles, independentemente de classe social ou geografia urbana, têm doenças psico-somáticas decorrentes do medo.
Acabo de apresentar à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas fotografias de 160 crianças que trabalharam comigo, que têm em comum os corpos marcados por cicatrizes massivas, decorrentes da violência urbana, doméstica e policial. O número de assassinados nos permite afirmar que há um genocídio de crianças em curso no Brasil! E disso precisamos tratar prioritariamente. Não advogo impunidade, pois sei que muitos destes menores atingiram tal septicemia moral que têm que ser afastados do convívio social. Mas o que especialmente me incomoda é a constatação de que a grande maioria deles pode ser salva, mas está sendo jogada no lixo.
* Antonio Veronese é artista plástico, autor do painel "Save the Children", comemorativo dos 50 anos da ONU, e do painel "Just Kids", símbolo mundial do UNICEF para os 10 anos do ECA.É também de sua autoria do políptico "Tensão no Campo" do Museu da Câmara Federal - Congresso Nacional e o painel "Famine" da Campanha Ação da Cidadania - FAO -Roma. Há 16 anos Veronese dirige o Projeto Petrobrás de Ressocialização de Menores Infratores, em presídios no Rio de Janeiro e Brasília.