Autor original: Graciela Baroni Selaimen
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Em tempos de desenvolvimento da engenharia genética, é importante perceber as relações entre ciência, desenvolvimento tecnológico, ética e movimentos sociais como o feminismo. Essas idéias fazem parte do livro "A Celebração do Temor: Biotecnologia, Ética e Feminismo", de Alejandra Rotania. Em entrevista à Rets, a autora fala sobre as conseqüências do avanço da ciência no movimento feminista, que só começaram a ser abordadas academicamente nos anos 80 e 90. Rotania afirma ainda que é necessário o Brasil aprofundar as discussões sobre a bioética urgentemente, pois essa é uma questão central dos próximos anos, trazendo sérios riscos à vida humana.
Rets - Historicamente, qual é a relação entre os temas do livro (ciência e tecnologia, ética e feminismo)?
Alejandra Rotania - A relação entre ambas tem sido estreita. A ciência e a tecnologia na área das ciências biológicas, medicina e saúde , sobretudo na área da reprodução humana, historicamente tem avançado tendo como base o estudo do corpo das mulheres e suas funções. A história da contracepção e da medicalização do parto dão bons exemplos disto. É uma história invisível, que as próprias mulheres buscaram develar. O movimento feminista tem mantido interlocução com este setor , eu diria, em um tom de vigília crítica, ao mesmo tempo de demanda de uma técnica que permitisse às mulheres se distanciar da gestação e maternidade compulsórias e de crítica a qualquer tentativa de manipulação da sua autonomia e protagonismo nos eventos vitais. A ética, se a entendemos como o campo organizado em torno da reflexão sobre modo de pensar e a normatização do agir humano, tem íntima relação com a produção e uso do conhecimento e com o feminismo como crítica de uma cultura que exclui às mulheres da participação da sua própria construção.
Rets - Quais são as principais consequências do avanço da ciência na ética e no movimento feminista?
Alejandra Rotania - Em termos gerais, o vertiginoso desenvolvimento da tecnociência da vida, especificamente nas tecnologias reprodutivas, na medicina genética e na engenharia genética, provocou a emergência da Bioética, na década de 70 nos EUA, com Potter e Hellegers, como um campo da ética reajustado aos novos desafios e suas implicações e para a resolução de conflitos. Na década de 80 a discussão da Bioética se estende a Europa e na década de 90 aos países do Terceiro Mundo. No universo do feminismo é só a finais da década de 80 e na década de 90 que emergem as aproximações teóricas entre Bioética e a Perspectiva Feminista a partir , sobretudo, de estudos acadêmicos. Na década de 90 se organiza a Feminist Approaches of Bioethics-FAB, uma rede internacional filiada a Internacional Association of Bioethics-IAB que organiza suas conferências paralelas aos Congressos Mundiais de Bioética. Em 2002, o VI Congresso será realizado em Brasília. No Brasil, a discussão, desde a perspectiva feminista, recontextualizada no estágio atual do desenvolvimento científico e tecnológico ainda permanece na esfera dos estudos em nível de pós-graduação, com algumas iniciativas em termos de propiciar espaços de reflexão ou implementar mecanismos de divulgação ou socialização da problemática,de estímulo à legislação no campo das tecnologias reprodutivas porém o tema das tecnologias de ponta e suas implicações para o pensamento e a ação ainda são incipientes.
Rets - Como o Brasil está lidando com a revolução científica da biotecnologia quanto à ética empregada nesse setor?
Alejandra Rotania - Esta é uma questão muito ampla, pois a biotecnologia tem aplicações em vários setores e deveríamos falar da área econômica, de transferência de tecnologia, da questão da produção e comercialização dos transgênicos, do campo da ética em pesquisa em seres humanos no campo dos medicamentos, da discussão sobre patentes, propriedade intelectual, drogas e fármacos bioengenheirados, etc. As biotecnologias constituem eixo de preocupação para os comitês de ética em pesquisa, é tema de deliberação na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP do Conselho Nacional de Saúde, da recém criada Comissão Nacional de Acesso e Uso do Genoma Humano, encontra-se na pauta da Sociedade Brasileira de Bioética e esta presente na matérias de vários projetos de lei que tramitam no congresso nacional. Mais, é necessário, é urgente, que a discussão sobre a moralidade das biotecnologias passe a fazer parte das pautas de discussão e ação da sociedade civil organizada e da sociedade como um todo, pois as implicações econômicas, sociais, políticas e morais das biotecnologias atingem à Humanidade como um todo.
Rets - Por que o título TEMOR? Qual a celebração está sendo feita sobre esse tema?
Alejandra Rotania - O Temor é uma categoria filosófica que pode ser rastreada na tradição filosófica e religiosa ocidental. O Temor, no livro, esta referido à proposta filosófica de Hans Jonas, pensador alemão que na década de 70 inicia uma reflexão sobre a filosofia da biologia, uma revisão da tradição filosófica, preocupado com o avanço desenfreado da ciência e da tecnologia e suas possíveis conseqüências negativas sobre as múltiplas formas de vida. Hans Jonas realiza um esforço criativo e de extrema riqueza para a fundamentação da cautela e da responsabilidade pelo futuro das gerações humanas e de toda forma de vida no planeta que extrapola o universo de valores das religiões instituídas. Ele diz que basicamente devemos formular uma pergunta: o que acontecerá com isso se eu não me ocupar dele? Quanto mais obscura for a resposta, mais clara será a responsabilidade. O temor ao dano irreparável que o ser humano possa infligir à vida, à sua própria espécie, pelo desmessurado poder do fazer faz parte do núcleo essencial de uma nova ética para a era biotecnológica. O temor se opõe ao vazio ético de um agir sem limites. A ausência do temor é o que provoca os grandes desastres ecológicos, a fabricação das armas biológicas,o genocídio de povos e grupos,a tentativa de fabricação ou reprogramação dos seres vivos, incluindo a espécie humana. Por isso, todo temor deve ser celebrado. Isto me lembra um fato sobre os iroqueses, uma tribo indígena americana, que citei no final no livro.Quando eles tinham que tomar alguma decisão grave, se perguntavam: qual será o efeito da ação que realizaremos sobre a sétima geração dos nossos filhos? E deixavam em suspenso a decisão enquanto não pudessem responder à pergunta. Até onde vai a intervenção tecnológica na vida humana? Há um limite para essa interação entre vida "orgânica" e a vida "artificial"? Creio que a questão acima fala a respeito disto. Uma das questões mais dramáticas da contemporaneidade é precisamente a busca dos fundamentos para o estabelecimento de limites à capacidade de intervenção e manipulação da vida , em todas as suas expressões. Claro é que a vertente mais atrelada , mas comprometida com este "progresso" (uma vertente que eu chamo de situacionista ou cientificista) considera que os limites são técnicos e não morais. Porém, a sociedade moderna tem caminhado no sentido da consolidação dos direitos humanos, na construção de uma democracia real e não apenas formal,tem se avançado no sentido de dar voz a quem historicamente lhes foi negada. Ao mesmo tempo, é autodestrutiva e perversa. A construção dos limites e dos interditos é uma das tarefas mais urgentes a ser empreendida. Os limites e a resignificação do conhecimento e do agir é de responsabilidade de todos e de todas. Você pergunta sobre as diferenças entre “vida orgânica”e “vida artificial”. O não reconhecimento da diferença entre fabricar um clone e fabricar uma ponte é um sinal dramático (e derradeiro?) deste grande vazio ético da contemporaneidade.
Rets - O que você acha da clonagem de embriões humanos?
Alejandra Rotania - A partir destas considerações, devo dizer que considero a clonagem de embriões humanos, seja qual for a classificação utilizada ( clonagem terapêutica, reprodutiva) um crime contra a singularidade e a dignidade humanas. Em nome de nenhum suposto BEM tal ato mórbido e perverso, como muitos dos que se encontram no "baú dos espantos" da bio-tecnociência contemporânea, contaminada por obscuros interesses econômicos, que vise a instrumentalização, manipulação, reprogramação e comercialização da vida, portanto totalmente imoral, deve ser justificado.
Rets - No que a "condição feminina" pode ser afetada nesse período de revolução científica?
Alejandra Rotania - Acho que toda a Humanidade pode ser afetada , homens e mulheres, e todos os seres vivos e a própia natureza na medida em que se intervém biotecnologicamente no sistema da vida como um todo. Como saber os riscos e as conseqüências negativas, imprevistas, irremediáveis, de tamanho intervencionismo e vontade de reprogramação? É o fim da procriação sexual? É o controle da reprodução em mãos dos especialistas? Por exemplo, o diagnóstico preimplantacional, que é um procedimento acoplado às técnicas de fertilização in vitro, possibilita a detecção de anomalias embrionárias, concertos e descarte dos embriões "inviáveis" "imperfeitos" e a posterior implantação no útero daqueles que passam pelo "controle de qualidade". Quem detém o poder de decisão e determinação para esse "controle"? Qual é a projeção deste conhecimento e desta ação que podemos realizar para o futuro? Homens e mulheres se vem afetados pelas mudanças inéditas que aconteceram a partir da chamada revolução científica do século XVII. OS homens se vem afetados gravemente no sentido da prescindibilidade total dos espermatozóides na concepção através das técnicas radicais da clonagem. As mulheres se vêem reduzidas à importância dos seus óvulos e à capacidade do útero para o desenvolvimento embrionário, embora já tenham sido desenvolvidas pesquisas sobre úteros artificiais. Que significado isto tem sobre a identidade futura de homens e mulheres? Por que pôr fim à procriação sexual, à singularidade da espécie?
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