Você está aqui

Apenas diferentes

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

No meio do ano, a assistência médica e odontológica aos povos indígenas passou por sérias dificuldades. A prestação de serviços às populações indígenas foi oficializada pelo Ministério da Saúde em 1999, com a criação de Distritos Sanitários Especiais – hoje são 34. Sob a coordenação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), várias organizações não-governamentais são responsáveis pelo atendimento. O problema é que o orçamento original para a saúde indígena em 2001, inicialmente estimado em R$ 106 milhões, sofreu um corte profundo e foi reduzido a R$ 78 milhões pelo Congresso Nacional. A Funasa esperava obter o restante dos recursos ao longo do ano, o que acabou não acontecendo. Com o atraso nos repasses, algumas organizações precisaram interromper suas atividades. A situação foi normalizada em agosto, mas a incerteza em relação ao futuro permanece. “A previsão orçamentária em 2002 é de algo em torno de 217 milhões, um valor que, se bem aplicado, vai permitir fazer muita coisa. Segundo a Funasa, a perspectiva é de estabilidade, mas a gente sabe que não é bem assim, porque no próximo ano vai mudar o governo”, diz Marina Machado, coordenadora executiva da Saúde sem Limites, que mantém projetos na região do Alto do Rio Negro.

Marina reconhece que houve avanços nos últimos anos, mas aponta deficiências no sistema. “Foi possível contratar equipes, a instalação do Conselho Distrital de Saúde permitiu o controle social, mas os instrumentos de convênio ainda seguem um modelo que não é específico para ONGs, o que torna algumas coisas complicadas. Hoje esse sistema é misto, com a presença do governo, de ONGs e de entidades indígenas, e as relações se dão como se fosse de órgão público para órgão público”.

O olhar do outro

A atuação das organizações que trabalham com os povos indígenas sofre ainda com problemas que passam ao largo da questão financeira. A imersão em uma nova cultura, inevitavelmente, provoca conflitos, incertezas e questionamentos. “Se você vê as coisas com o seu olhar, acaba tendo a visão do colonizador. E assim o seu serviço não serve para a população”, diz Marina.

As equipes médicas vivem diariamente a necessidade de analisar cada situação que se apresenta com o “olhar do outro”. E é preciso ter sensibilidade para resistir aos preconceitos, além de obstinação para superar adversidades como distância, desconforto e poucos recursos. Some-se a isso a convivência entre a medicina convencional, as ervas naturais e a mitologia indígena – aspectos que têm sido valorizados com a realização dos Encontros de Pajés.

Iniciativa da Saúde sem Limites, em parceria com o Centro de Estudos e Revitalização da Cultura Indígena (CERCI), esses encontros têm sido organizados em Iauareté, no município de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira com a Colômbia, proporcionando a integração entre as diferentes práticas médicas.

“Eles falam sobre mitos e a relação com a saúde. E a gente discute se esses temas poderiam ser colocados na escola. São 19 grupos indígenas, cada qual com a sua variação de mitos. Em algumas oportunidades, eles se reúnem com os médicos para ‘trocar figurinhas’. Os dois sistemas convivem e o profissional tem de compreender a forma como esse povo entende a saúde. A tuberculose, por exemplo, é associada a feitiço. Se a gente sabe que há esse tipo de visão, precisa entender que existe um limite para a nossa atuação”, pondera Marina, que cita como exemplo a possibilidade de uma família decidir que um paciente não deve ir para o hospital, a despeito das recomendações médicas. Ela justifica: em uma UTI, por exemplo, o doente passa a ser do hospital, não mais da família. “Os Encontros de Pajés são uma forma de elevar uma auto-estima que foi muito massacrada. A medicina convencional resolve muitas coisas, mas não tudo. O pajé dá respostas que a nossa medicina não dá. Ele diz ao índio por que foi ele, e não outro, quem pegou a doença. E diz por que foi naquele momento. São perguntas que nós mesmos fazemos. E isso é muito forte na cultura deles. Então, mesmo que a pessoa morra, isso fica muito bem resolvido pra eles”, explica.

Quem não consegue ter essa visão relativizadora acaba sofrendo – alguns chegam a desistir. “Aparece depressão, vontade de ir embora, é desgastante psicologicamente, mas é uma necessidade dessa população. Se os distritos se chamam Distritos Especiais”, arremata, “é porque contemplam esse jeito diferente de encarar o mundo”.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer