Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
Instituída pela Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998, a pena alternativa ainda é pouco aplicada no Brasil e beneficia apenas 3% dos condenados pela Justiça brasileira. A informação vem de um levantamento realizado pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud). Há outros números igualmente expressivos: o custo, para os cofres públicos, de manutenção de um preso é de aproximadamente R$ 600. Por sua vez, manter um adulto cumprindo pena alternativa custa o equivalente a R$ 60 - e o percentual de reincidência equivale a quase um terço do índice verificado entre os ex-presidiários. Diante de tantas vantagens, a pergunta é inevitável: por que a adoção da pena alternativa não é ainda uma prática comum no Brasil?
Há, de fato, iniciativas em andamento em vários estados, porém a estrutura para atendimento aos apenados é pequena. A lei prevê uma variedade de penas alternativas, mas a mais comum é a de prestação de serviços comunitários. Os núcleos de programas de acompanhamento são formados por assistentes sociais e psicólogos e organizados conjuntamente por organizações públicas e não-governamentais. É o poder público quem determina onde esses núcleos serão implantados – e sua área de abrangência deve ser reduzida, para que se possam conhecer plenamente as necessidades de cada comunidade. O condenado é entrevistado, para que se conheça o seu potencial de trabalho e suas habilidades. Em seguida, ele é encaminhado para a atividade mais adequada ao seu perfil. Há casos, segundo revela o advogado criminalista Maurício Zanoide de Moraes, diretor do Departamento de Estudos e Projetos Legislativos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), em que o condenado continua prestando serviço mesmo depois de ter cumprido a pena. “Verificamos isso em Rio Claro (SP). Pessoas que se envolveram de tal maneira, que depois permaneceram ligadas àquele trabalho”.
Maurício considera que, embora de forma lenta, a implantação das penas alternativas vem conquistando espaço. “O Estado está ganhando mais confiança nesse modelo”, afirma. Ele identifica, no entanto, um problema: os juízes muitas vezes relutam em aplicá-las, por temerem a associação com a idéia de impunidade. “Isso acontece principalmente com os mais antigos. Os mais novos percebem que é uma grande alternativa”. Criou-se para parte da sociedade a sensação de que o preso que não é privado da liberdade não está sendo punido pelo crime que cometeu. “Há uma cultura da repressão, do castigo, que acaba sendo um reflexo da opinião pública”, diz Karine Spozato, que hoje gerencia a área de Crianças e Adolescentes do Ilanud. “A sociedade precisa refletir sobre os objetivos da condenação: se é para segregar a pessoa ou dar a ela condições para que não volte ao crime”.
Tanto Karine quanto Maurício demonstram preocupação com a idéia - aceita por muitos - de que a pena alternativa permite que bandidos voltem para as ruas. Na verdade, os casos em que a Lei nº 9.714 pode ser aplicada são restritos. “Há uma série de requisitos para que o beneficiário seja apenas um criminoso eventual. As pessoas acabam sendo mal-informadas e esquecem que seus parentes podem vir a ser condenados por um acidente de automóvel, por exemplo, o que justificaria uma pena alternativa”, lembra Maurício. "O próprio poder judiciário poderia se lançar em uma campanha de esclarecimento", acrescenta. Segundo ele, é preciso desfazer a impressão deixada por parte da mídia de que adotar a pena alternativa seria unicamente uma forma de acabar com a superlotação dos presídios. "Falta o mundo jurídico sair do seu castelo e ir às escolas, às entidades sociais, para dar palestras e explicar como funciona esse sistema".
“Hoje existe uma sensação de insegurança generalizada”, reforça Karine, “e a população fica achando que um homicida pode ser beneficiado, o que não é verdade. Há também um certo descompromisso das pessoas, que não querem se envolver com o problema. E, com a pena alternativa, a sociedade passa a ser co-responsável pela recuperação do infrator”.
O coordenador nacional da Pastoral Carcerária, padre Bernardino Ovelar Arzamendia, acha que, ao não confiarem na recuperação do condenado, as pessoas acabam por discriminá-lo ainda mais. “Acredito que a sociedade, dependendo de como for aplicada essa pena e da sua infra-estrutura, passaria a confiar, tal como já acontece no Rio Grande do Sul e no Paraná”. Padre Bernardino identifica outros obstáculos à implantação das penas alternativas, como a falta de uma política prisional realmente humanizadora. “Desde o momento em que não se envia uma pessoa para dentro de uma dependência policial, já estamos humanizando. Se observarmos, a finalidade primordial do nosso sistema penitenciário é a repressão. Basta só ter presente quanto se investe em construções e reformas de estabelecimentos prisionais, e cada vez mais de segurança máxima, ao passo que a aplicação das verbas para entidades que poderiam fiscalizar a aplicação dessas penas é muito menor”, critica. Padre Bernardino explica que a Pastoral Carcerária vem tentando acompanhar de perto esse processo. Para isso, instalou Conselhos da Comunidade em todas as comarcas. A entidade procura também incentivar convênios entre organizações não-governamentais e o Ministério da Justiça ou as Secretarias de Justiça dos estados.
Falta informação
Os dados citados no início desta reportagem são provenientes de um estudo realizado pelo Ilanud no final de 1998. A carência de informações mais recentes e consistentes é um empecilho ao acompanhamento e ao desenvolvimento das ações de ressocialização e prejudica o planejamento de novos programas. “Existe um problema de falta de diagnóstico. A gente não sabe, por exemplo, quantos postos de atendimento a penas alternativas estão ocupados”, lamenta Karine. A carência de estatísticas também é criticada por Maurício, que classifica o judiciário como uma caixa-preta. “Há uma carência de dados que venham de dentro do judiciário, que não é muito permeável. Quando a gente bate na porta, ele se recusa a abrir”. Maurício lembra que, de acordo com a Constituição, todo cidadão deveria ter livre acesso aos livros de sentenças, em que são registrados todos os veredictos. Na prática, porém, a consulta só é liberada com autorização judicial.
Mesmo sem acesso aos números oficiais, Maurício calcula que metade dos condenados no país teria direito a cumprir pena alternativa. A implantação desse benefício é recente, pouco divulgada e ainda cercada de incertezas. É justamente a falta de números precisos que impede uma análise mais profunda sobre seus efeitos – positivos e negativos. Fundamental é debater o tema com a sociedade e bem informar, pois o “conflito cultural” parece mesmo inevitável. “A pena alternativa foge àquela expressão canônica de cela, de penitência, de castigo – solução que nunca cumpriu seu papel ou se mostrou eficaz”, diz Maurício. “Acho uma ironia fina que a Lei de Execuções Penais se refira ao preso como reeducando. Ora”, conclui, “não se pode reeducar quem nunca foi educado”.
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