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Voz, câmera, ação!

Autor original: Fausto Rêgo

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As comunidades de Mathare 3B e Redeemed Village, dois assentamentos urbanos em Nairóbi, Quênia, vivem em condições precárias. No entanto, um projeto inovador do ITDG (Intermediate Technology Development Group) está conseguindo dar voz a essa população, abrindo a perspectiva para a formulação e a implantação de políticas públicas efetivas de desenvolvimento e inclusão social para essas regiões. O projeto Women’s Voices envolve mulheres das duas comunidades na produção e realização de reportagens e pequenos documentários em vídeo, utilizando câmeras Betamax emprestadas. O trabalho delas já é exibido por uma rede de televisão local e chegou aos olhos e ouvidos das autoridades, que finalmente tiveram contato com a realidade e as carências daquela região. Importante também por fazer recuperar a auto-estima de gente que se sentia à margem da sociedade, a iniciativa ganha agora um novo impulso com a conquista do Prêmio Betinho de Comunicações, oferecido pela organização não-governamental APC (Association for Progressive Communications), no valor de 7.500 dólares. Segundo o diretor de Desenvolvimento Tecnológico da RITS – e membro da APC – Carlos Afonso, “Women’s Voices representa exatamente o tipo de iniciativa que teria o apoio de Betinho, que era um mestre em trazer iniciativas de organizações da sociedade civil para a grande mídia e acreditava que essa era uma aliança estratégia e até mesmo natural”. Para falar um pouco mais sobre esse projeto, conversamos com Josiah Omotto, consultor de Desenvolvimento e Treinamento do ITDG, que vem acompanhando o Women’s Voices desde o princípio.

Rets – Abrem-se novos horizontes para o Women’s Voices com a conquista do prêmio da APC?

Josiah Omotto – Por definição, os projetos do ITDG (Intermediate Technology Development Group) devem funcionar dentro do princípio de “pequeno e bonito”. Esta iniciativa foi um projeto-piloto de um ano para testar a efetividade e o impacto das telecomunicações no trabalho com mulheres pobres das zonas urbanas. Nossos objetivos eram modestos: construir uma relação de compreensão, dar a um grupo de mulheres de baixa renda da zona urbana treinamento em roteiro, direção, edição e filmagem em vídeo, apoiar esses grupos na produção de um vídeo com dez minutos de duração, documentar e compartilhar as experiências e lições com as comunidades nacional e internacional. O trabalho abriu novos horizontes para que esse grupo seja capaz de fazer a diferença em suas próprias vidas. O Prêmio Betinho, da APC, certamente ajudou a construir a auto-estima e a confiança dessas mulheres no uso do vídeo como mecanismo de informação e influência em políticas públicas. Três desafios imediatos se apresentam como conseqüência desse projeto: o primeiro é a capacitação das mulheres para a formação de um centro de pesquisa de informações dentro da própria comunidade, onde elas possam ter acesso à informação e responder ao número cada vez maior de perguntas sobre seu trabalho. Outro desafio é a consolidação desse trabalho por meio da adaptação de outros tipos de tecnologia e da montagem de uma ilha de edição própria para o próximo ciclo de produções. Por fim, pretendemos criar uma rede para compartilhar informação, ampliando esse projeto de forma a envolver um número significativo de mulheres urbanas e pobres de Nairóbi e de outras regiões.

Rets – Como começou o projeto e qual sua importância na redução do crime, da exclusão social e do desemprego naquelas comunidades?

Omotto – A origem do projeto remonta a muitas experiências anteriores no Quênia e no Reino Unido relacionadas ao uso inovador da telecomunicação com a população pobre urbana e rural. Maggie Forster [pesquisadora do IFPA – Institute for Policy Foreign Analysis], uma pessoa envolvida com as questões de gênero e tecnologia e que se dispôs a assumir o planejamento dessas iniciativas no hemisfério sul, também teve um papel relevante na formação desse projeto. Acima de tudo, o projeto é o resultado da interação e da articulação dos grupos comunitários nos dois assentamentos e da parceria entre as três agências: ITDG, Shelter Fórum e Pamoja Trust. Entre os membros mais jovens de Mathare 3B, a participação no projeto certamente criou oportunidades de auto-emprego em uma nova profissão: direção comunitária de vídeo. Em todos os grupos, a exclusão social foi mitigada pelo facto de que os seus membros agora estão se envolvendo e interagindo cada vez mais com os formuladores de políticas públicas locais, municipais e nacionais. Por certo, com treinamento adequado, os vídeos comunitários podem fazer uma grande diferença na promoção da segurança, na redução da exclusão social e do desemprego nas comunidades pobres.

Rets – Por que escolher mulheres como público-alvo? Qual o poder da voz feminina?

Omotto – O projeto Tecnologias de Informação e Comunicação para Mulheres, do ITDG, foi concebido com o propósito de compreender como os canais de comunicação de mulheres pobres das zonas urbanas podem ser amplamente fortalecidos e a informação baseada na telecomunicação pode tornar-se mais acessível, de forma a impedir a perda de poder dessas mulheres. Antes do início do projeto, os dois grupos – Mathare 3B e Redeemed Village – tiveram uma longa relação com a ITDG, envolvidos na campanha pela posse de terras e na organização de redes baseadas na comunidade. Em contextos em que as mulheres são marginalizadas no seu direito de acesso à informação, a equipe do projeto procurou ampliar a voz feminina em questões que têm impacto negativo e positivo em suas vidas.

Rets – Quais foram as primeiras reações ao projeto, particularmente as das mulheres, que nunca antes haviam tido contato com equipamentos como câmeras e microfones?

Omotto – No primeiro dia, quando levantei o tema da participação feminina no projeto do vídeo, as mulheres riram. Elas queriam entender como poderiam lidar com equipamento tão sofisticado. Umas poucas ficaram surpresas de perceber que em vez de direcionar o esforço para questões como saneamento e esgotos, a ITDG optou por usar o vídeo. Essa fase foi logo superada: primeiro ao mostrarmos uma quantidade de videoclipes. Dando prosseguimento à tentativa de ganhar a confiança delas, entreguei a câmera a uma das participantes do grupo e disse-lhe que o vídeo era como um ser humano – com olhos, ouvidos e voz. Uma ou duas filmagens que fizemos na sessão de treinamento aumentaram significativamente a autoconfiança e a auto-estima do grupo. O resto é história.

Rets – Elas foram submetidas a treinamento?

Omotto – Sim, as mulheres participaram de um período de dez dias de treinamento prático sobre identificação e desenvolvimento de temas, roteiro, uso de câmera, filmagem e edição.

Rets – Como a voz dessas mulheres finalmente chegou aos ouvidos das autoridades?

Omotto – O vídeo que elas produziram foi exibido para platéias que incluíam autoridades e membros de agências governamentais. Graças a esse projeto, houve um crescimento na interação das mulheres, dos representantes do Conselho Municipal de Nairóbi, das organizações não-governamentais, da mídia e do UNCHS (United Nations Center for Human Settlements).

Rets – É verdade que Women’s Voices acertou uma parceria com uma rede de televisão local?

Omotto – Neste momento, o contrato com a rede de TV ainda não foi assinado. As mulheres ainda estão colaborando de boa fé, com a intenção de divulgar o seu potencial. Mas certamente existe uma tendência nesse sentido, a qual pretendemos apoiar nos próximos meses.

Rets – Além de aumentar a auto-estima dessas mulheres, que outros benefícios resultaram do projeto?

Omotto – Um foi a melhoria da coordenação interagências em assuntos relacionados ao uso das telecomunicações em comunidades urbanas de baixa renda. No rastro do sucesso do Women’s Voices, construímos um excelente entendimento com IDRC, Abantu, ELCI, SIDAREC e Pamoja Trust and Shelter Fórum, entre outras. Para os formuladores de políticas públicas que se acanham em visitar as favelas de Nairóbi, o vídeo foi um poderoso grito de alerta para a necessidade de intervenções que possam reduzir a pobreza.

Rets – Women’s Voices está sendo, de alguma forma, a semente para outros projetos igualmente criativos?

Omotto – Sim, há um crescente interesse entre os jovens e as organizações não-governamentais locais em participar em projetos inovadores que envolvam o uso das telecomunicações. E um interesse renovado na formação de telecentros nas regiões pobres de Nairóbi.

Rets – A pobreza no Quênia é provavelmente similar à das favelas brasileiras. Como as vozes das populações marginalizadas podem ser ouvidas de modo a gerar transformações?

Omotto – A pobreza no Quênia foi durante muito tempo associada às áreas rurais. Entretanto, taxas de urbanização jamais vistas, combinadas com os efeitos da recessão global e com a tendência de declínio da economia, resultaram em um aumento significativo na escala urbana de pobreza. No Quênia, o número de habitantes dobrou de 3,9 milhões em 1989 para quase 10 milhões em 1999, o que representa um aumento da população urbana de 16,8% para 34,9% nesse período. A continuar essa tendência, a população urbana deve crescer para 44,5% do total por volta de 2015 – e, com ela, aumenta também a escala de pobreza urbana. Na verdade, 50% da população de Nairóbi vive atualmente em absoluta pobreza. Em uma estreita parceria com um grupo de organizações da sociedade civil, a ITDG vem trabalhando há cinco anos pelo desenvolvimento de uma coalizão com grupos comunitários de novos assentamentos em Nairóbi. O resultado dessa estratégia foi a criação de Muungano wa Wanavijiji – uma coalizão de grupos comunitários atualmente envolvidos na campanha pela posse de terras e pela criação de um fundo municipal contra a pobreza urbana. Women’s Voice, dessa forma, chegou em um momento propício para amplificar o clamor de milhares de pessoas das comunidades urbanas de baixa renda de Nairóbi.

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