Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
“As agressões ambientais praticadas pelo homem contra a natureza são a expressão mais simples da insustentabilidade da humanidade, submetida à segregação social, à inoperância política, à opressão econômica”. As palavras são do presidente do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Rio de Janeiro, José Chacon de Assis. Nesta entrevista à Rets, ele comenta os resultados da 3ª Conferência das Cidades, realizada no final do ano passado, em Brasília, relaciona os possíveis avanços com a criação do Estatuto da Cidade e propõe como, afinal, deve se estruturar uma cidade sustentável.
Rets – Dentre as medidas propostas na Carta de Brasília, quais seriam as prioridades, neste momento?
José Chacon – Não é simples eleger prioridades dentre o conjunto de propostas formuladas na Carta de Brasília, uma vez que elas compõem uma articulada pauta de reivindicações do movimento social e recomendam medidas de curto, médio e longo prazo, mas que, para se viabilizarem, exigem a atuação, desde já, sistemática e integrada. Afinal, se o que questionamos é a falta de uma política habitacional nacional em seu sentido amplo, não há como divorciar a luta pela “garantia de controle social sobre os programas governamentais relativos ao desenvolvimento urbano implementados por União, estados, Distrito Federal e municípios, por meio de instrumentos como o orçamento participativo, que deve alcançar a totalidade dos recursos disponíveis para investimento” da “implementação dos instrumentos regulados pelo Estatuto da Cidade, tendo em vista assegurar o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. São medidas necessárias, fundamentais, como afirma a Carta, e complementares. Creio, entretanto, que, nessa extensa agenda, é preciso resgatar a iniciativa política da sociedade civil organizada em contraponto a ações governamentais que amesquinham a participação popular, assegurando, por exemplo, que valiosos instrumentos legais presentes no Estatuto da Cidade saiam do papel, ou que projetos de leis como o 4147, que tramita no Congresso, e abre margem à privatização dos serviços públicos de saneamento, não venham a ser aprovados como pretende o governo.
Rets – Quais foram os avanços resultantes da criação do Estatuto da Cidade?
José Chacon – No caso do Estatuto da Cidade, fica patente que é indispensável cativar a participação popular para um debate mais aprofundado do principal instrumento do Poder Público de Política Urbana, que é o Plano Diretor. Entretanto, a discussão do Plano, em si, é árida, exigindo das entidades representativas, tais como Associações de Moradores, Sindicatos e ONGs um compromisso em viabilizar um debate apoiado em demandas imediatas da população. O Direito de Vizinhança, por exemplo, responde a esta estratégia de mobilização. Segundo o Estatuto, lei municipal deverá estabelecer os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana, que dependerão de elaboração de estudo prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) para obter as licenças e autorizações de construção, ampliação ou funcionamento.
Outro instrumento previsto no Estatuto para controle do uso do solo é a usucapião especial de imóvel urbano. Ele estabelece a aquisição de domínio para aquele que possuir área ou edificação urbana de até 250 metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para a sua moradia e de sua família. Onde não for possível identificar os terrenos por cada possuidor, em áreas urbanas com mais de 250 metros quadrados ocupadas por população de baixa renda, poderá ocorrer a usucapião coletiva, desde de que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Este dispositivo legal, agora regulamentado, toca de perto as comunidades de favela e de loteamentos clandestinos, que lutam por sua regularização fundiária. No entanto, sem uma atuação interessada do Poder Público, pouca expressão terá na prática. A Prefeitura terá, por exemplo, que delimitar as áreas de favela, o que implica medições locais ou mesmo levantamentos aerofotogramétricos. Outro apoio essencial é a prestação de serviços jurídicos através da defensoria pública e o amparo de engenheiros e técnicos para a execução das demarcações de terreno. É, também, uma oportunidade de pôr em prática mais uma das recomendações da Carta de Brasília: “a implementação de sistemas de assistência técnica e jurídica à camada mais carente da população, tendo em vista auxiliar o pleno exercício de seu direito à moradia”. Este é um dos desafios para tirar a lei do papel.
Rets – O que é uma cidade sustentável e quais os elementos necessários a sua estrutura?
José Chacon – As agressões ambientais praticadas pelo homem contra a natureza são a expressão mais simples da insustentabilidade da humanidade, submetida à segregação social, à inoperância política, à opressão econômica. A reversão deste caminho para a extinção passa pela defesa de projetos sustentáveis, em que a idéia civilizatória respeite a pluralidade das culturas e a diversidade biológica. Um projeto no qual o homem é mais um entre os seres vivos e com eles deve compartilhar a existência. O Crea-RJ formulou um projeto de Cidade Auto-Sustentável, no qual se materializam as recomendações da Agenda 21. As premissas da cidade auto-sustentável servem, por exemplo, para denunciar a cartografia urbana da segregação, onde ricos condomínios fechados da Barra da Tijuca (RJ), por exemplo, coabitam com a maior favela da América Latina, a Rocinha. Multiplicam-se os quadros de poluição, enchentes, erosão e epidemias, sinalizando o esgotamento deste modelo de desenvolvimento calcado numa relação predatória com a natureza e socialmente excludente. Se é nas cidades que a baixa qualidade de vida de muitos torna mais agudas as contradições presentes em nossa sociedade, devemos partir para repensá-las, fundando novas formas de manifestação política desse descontentamento. O projeto de cidade auto-sustentável é o caminho para políticas urbanas não excludentes, que nos ajudem a refundar a política a partir do exercício da cidadania.
Na cidade auto-sustentável se prevê o desenvolvimento de ações e a aplicação de programas que contemplem as dimensões sociais e econômicas do desenvolvimento sustentável. Esse conjunto de iniciativas de sustentabilidade pode ser esboçado na forma de um Decálogo da Cidade Auto-Sustentável, cujos itens são os seguintes:
I - Aplicação da eco-arquitetura. Objetiva-se a eficiência energética dos edifícios, a correta especificação dos materiais, a proteção da paisagem natural, o reaproveitamento do patrimônio histórico existente e a atenuação da urbanização; a integração com as condições climáticas locais e regionais.
II - Promoção da saúde e o saneamento. O objetivo básico é garantir a qualidade da água para prevenção de doenças, tratamento adequado do lixo, evitando contaminação do solo e das águas e estabelecendo um tratamento de esgoto, com a utilização prioritária de lagoas de oxidação.
III - Uso de transportes coletivos e não poluentes. Implica substituição dos transportes individuais à base de combustível fóssil, a priorização ao transporte coletivo, priorizando o ferroviário, a navegação e a criação de ciclovias.
IV - Proteger e conservar os mananciais e as águas. A proteção dos mananciais tem como objetivo preservar os cursos de água, proteger a mata ciliar e garantir o uso múltiplo das possíveis represas.
V - Utilizar fontes renováveis e alternativas de energia. As fontes renováveis e alternativas de energia merecem um tratamento à parte. Na cidade auto-sustentável pretende-se aproveitar a energia solar, a captação eólica, a biomassa e a energia hidrelétrica de forma sustentável.
VI - Ampla conservação de energia. Este esforço de ampla conservação de energia implica a redução de desperdícios nas atividades econômicas e nas residências, a geração de produtos menos intensivos em energia e mais duráveis, a redução, reutilização e reciclagem de rejeitos e o aumento da eficiência energética.
VII - Desenvolver a agricultura ecológica. Para a sustentabilidade da cidade deve-se implantar a agricultura ecológica, a piscicultura e o desenvolvimento do ecoturismo, esses como alternativas viáveis economicamente.
VIII - Aplicar a sustentabilidade aos produtos e seus rejeitos. Deve considerar o ciclo de vida dos produtos, desde as fontes de matéria-prima, produção, distribuição, utilização e rejeitos, bem como os impactos ambientais que o acompanha: resíduos, contaminação de solos, água e ar, consumo de energia, barulho e habitat natural e ainda a reciclagem e o descarte final do produto.
IX - Promover a educação ambiental. Deve-se promover um intenso esforço de educação ambiental de forma abrangente e integrada às diversas disciplinas, incentivando-se a criação de um Fórum Ambiental Escolar e a Agenda 21 Escolar.
X - Respeito à biodiversidade. Implica conservar e recuperar o habitat natural de fauna e flora, florestas e matas: combater o desmatamento e repovoar os rios com espécies nativas. E ainda a aplicação sustentável da biotecnologia e o combate à visão antropocêntrica.
Rets – Como resolver o problema da periferização das cidades de maior porte e o problema do déficit habitacional?
José Chacon – Reitero a idéia de que não é possível pensar uma reforma urbana consistente sem a adoção de uma reforma agrária, uma vez que o problema da concentração da terra neste país é um fator decisivo para a expulsão dos trabalhadores do campo para a cidade. O empobrecimento e o inchaço da periferia das cidades têm, porém, muitos outros fatores agravantes que também precisam ser combatidos, tais como a ausência de políticas públicas no campo da saúde, da habitação e da educação que revertam, de fato, este quadro de exclusão social, tão própria deste modelo de capitalismo neoliberal. A própria Carta de Brasília também menciona, por exemplo, a necessidade imperiosa da universalização de direitos da cidadania, entre eles a formulação e implementação de uma Política Nacional de Saneamento que contemple não apenas os serviços públicos de água e esgoto, mas também os resíduos sólidos, a drenagem urbana e o controle de vetores e a formulação e implementação de uma Política Nacional de Habitação Popular que inclua um amplo sistema de subsídios direcionados às famílias com renda mensal de até 3 salários mínimos, que são maioria nas periferias das metrópoles. Recomenda, ainda, a adoção de medidas no campo da gestão de recursos para habitação que endossamos. São elas: a vinculação de um percentual mínimo de recursos orçamentários para aplicação em habitação; a utilização dos recursos do FGTS exclusivamente para habitação popular e saneamento; a criação de um órgão gestor para fiscalizar e normatizar os sistemas federais de financiamento habitacional, com participação das entidades de defesa do consumidor.
Gostaria de destacar, ainda, que o fenômeno de periferização das cidades está ligado a outro fator que exige uma ação também decisiva: a adoção de políticas não coercitivas de controle da natalidade, a fim de evitar um descompasso entre o contingente populacional e a capacidade de geração e distribuição racional de recursos e benefícios resultantes da produção de bens e serviços à população.
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