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Os padres e a sexualidade

Autor original: Marcelo Medeiros

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Perceber as contradições do discurso oficial da Igreja católica com a realidade e a prática dos sacerdotes. Foi esse o objetivo da socióloga e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e do Iser Assessoria - Lúcia Ribeiro -, ao realizar sua pesquisa sobre as diferenças entre as pregações oficiais do clero e a prática de alguns padres da Baixada Fluminense em relação a questões ligadas à sexualidade dos fiéis. A pesquisa acabou se transformando em livro, lançado recentemente pela Editora Vozes: “Sexualidade e Reprodução: o que os padres dizem e o que deixam de dizer”. Entre os comportamentos percebidos estão o silêncio, deixando que cada um escolha seu caminho; a manutenção do conservadorismo do discurso oficial e a tentativa de compreender os problemas de acordo com seu contexto. Em entrevista à Rets, Ribeiro fala sobre a postura dos sacerdotes, sobre o discurso da Igreja Católica e a relação entre eles a realidade dos leigos.


RETS: Como surgiu a idéia da pesquisa que resultou no livro “Sexualidade e Reprodução: o que os padres dizem e o que deixam de dizer”?


Lúcia Ribeiro: A pesquisa foi feita pelo Iser e pelo Iser Assessoria, com apoio da Fundação Ford. Eu já vinha me preocupando com as contradições da Igreja Católica há um certo tempo, principalmente em relação às questões de sexualidade e reprodução. Primeiramente me dediquei a estudar mulheres do clero e depois mulheres da base da Igreja. A maioria, apesar de católicas, na prática se afastava da doutrina oficial. Dentro da Igreja, há vários discursos além do oficial. Existem os dos teólogos, dos padres e dos fiéis também. A partir daí me interessei em saber se os fiéis estavam se afastando e como os padres pregavam a doutrina oficial ao mesmo tempo em que lidavam com os leigos. A pesquisa partiu do desejo de buscar as contradições religiosas como socióloga especializada em sociologia da Religião e como católica praticante.


RETS: Como os padres estão lidando com as questões de sexualidade hoje em dia? Os discursos têm sido coerentes com a realidade?


Lúcia Ribeiro: O discurso oficial é claro e conservador, mas possui valores éticos importantes. O “vale tudo” é perigoso e nesse ponto a Igreja cumpre seu papel de fornecer valores éticos. Na pesquisa, entramos em contato com 34 padres da Baixada Fluminense, mas apenas 23 concordaram em dar entrevista. Havia um certo mal-estar com relação a essa questão, em se expor. Quase metade dos padres era brasileira e o resto de diferentes nacionalidades, com idades variadas. Uma conclusão a que chegamos foi de que a posição dos sacerdotes não é uniforme. A pesquisa foi mais qualitativa do que quantitativa, mas ainda assim conseguiu revelar três tendências, que eu acho que podem ser ampliadas para um universo maior:


A primeira segue a orientação oficial, mesmo reconhecendo suas falhas, mas sempre a considerando como verdadeira.


A segunda é de atualização, a que chamo de silêncio estratégico. Os padres dessa linha compreendem a dificuldade dos leigos, mas preferem que cada um decida seu caminho.


E a terceira tenta perceber os problemas, mantendo a importância do discurso ético. Ela não prega liberar geral, mas também não é rígida nos valores conservadores. Preocupa-se mais com grandes valores - como dignidade, respeito, a não-mercantilização do sexo, a violência - do que com questões pontuais. Essa linha busca uma orientação mais contextual, tenta se adaptar às circunstâncias. Na questão do aborto, por exemplo, o princípio de valor à vida é adaptado ao momento. Se houver risco de vida para a mãe, o aborto não é condenado, prática que segue as definições da Constituição Nacional.


Nós podemos ver que para a defesa do mesmo valor, há comportamentos diferentes. O discurso pré-fabricado não serve mais. A doutrina social da Igreja muda ao longo do tempo e vemos que boa parte da preocupação com a sexualidade hoje em dia não é apenas moral, mas também com a saúde do indivíduo.


RETS: Quais são as maiores questões éticas e morais enfrentadas pela Igreja Católica hoje?


Lúcia Ribeiro: Os grandes valores continuam: respeito pela vida, dignidade, amor, respeito. Em relação à sexualidade, o respeito é mantido assim como a não-imposição de relação, o não-abuso e a negação da pedofilia. Todos eles são muito importantes de defender. O desafio é defendê-los em novos contextos. O primeiro passo é conhecer a realidade, os problemas, as soluções, as perspectivas da questão. Há problemas muito novos, como a clonagem, para os quais não se pode impor proibições e pronto. Tem que haver um esforço de abertura e discernimento, estando atentos para não condenar, mas também não se abrir para tudo. Os valores e critérios levam a valorizar e eliminar problemas.


A questão do sexo na juventude é um exemplo. Todos os padres sabem que os jovens não se casam mais virgens. Uns vêem isso como uma atitude negativa, mas a maioria vê como positiva, pois faz os adolescentes lidarem melhor com a sexualidade. O aspecto negativo é a promiscuidade. Deve-se levar em conta o respeito ao outro e cuidar para não haver gravidez indesejada. Novamente é saber ter responsabilidade e estabelecer limites.


RETS: A AIDS, por exemplo, é uma questão complexa e quanto a ela, a atitude dos conselheiros e formadores de opinião tem um peso vital. Como os padres têm encarado questões relativas à doença, como o uso de preservativos?


Lúcia Ribeiro: O livro é resultado de uma pesquisa e toda pesquisa delimita seu campo de atuação. A questão da AIDS não entrou diretamente nas perguntas, mas surgiu espontaneamente. Os padres em geral lidam mal com esse problema, pois o vêem como coisa de homossexual. Há uma certa dificuldade em abordar assuntos referente à AIDS uma vez que eles só conhecem casos em estágios avançados de doença e possuem pouca informação sobre o assunto. Ainda assim, os comportamentos são variados: uns defendem que o melhor método de se evitar o contágio é a abstinência sexual, que reconhecidamente é o método mais difícil de ser posto em prática. Outros, mais abertos, defendem somente a preservação da vida.


RETS: Os dogmas da Igreja não estão ultrapassados? Não está na hora de uma revisão de princípios mais consistente?


Lúcia Ribeiro: Na verdade, os dogmas são as verdades que definem a identidade da religião. Os fundamentais estão no credo e são expressão de mediações humanas e podem variar ao longo da História. É preciso entender melhor o processo de elaboração e não fazê-los serem revistos, pois formam uma identidade.


O que está ultrapassada é a doutrina social, mas as coisas estão mudando. Em tempos pré-capitalistas, a Igreja condenava a usura e o lucro, mas hoje essas críticas estão muito mais brandas.


A moral sexual mudou, mas espero que mude ainda mais. É preciso atualizar a doutrina em relação a práticas sexuais. É um esforço, sobretudo da teologia. Mas a velocidade da evolução varia muito.


RETS: Entre as atitudes assumidas pelos padres percebidas em seu livro está o silêncio diante de certas práticas. Em que situação essa atitude é mais comum? Como você vê esse comportamento? Ele não pode prejudicar os fiéis no futuro?


Lúcia Ribeiro: Essa atitude possui dois lados. Por um lado, o leigo precisa de orientação, que é importante e tem sua função. Por outro, o poder clerical pode ser prejudicial pois transforma os leigos em crianças ao retirar deles toda a responsabilidade por seu comportamento.


O silêncio dá responsabilidade como pessoa adulta e responsável perante Deus. A responsabilidade por suas ações é de cada um. No dia do julgamento final, dizer que fez isso ou aquilo porque o Padre mandou é no máximo um atenuante e não desculpa.


O silêncio só não pode se transformar em omissão, sobretudo no caso das mulheres, pois os padres geralmente se impõem como autoridade em relação às mulheres e não falam sobre o assunto.


RETS: Qual atitude tem apresentado os melhores resultados?


Lúcia Ribeiro: Depende de cada um, não há ortodoxia, uma vez que os leigos também variam de comportamento. Eu diria que quanto mais aberto melhor, mas não se pode generalizar. Gostaria de ver uma Igreja mais aberta e respeitosa, dando liberdade, porém com responsabilidade.


RETS: Quais são as ordens ou linhas católicas que melhor encaram as questões da sexualidade e reprodução?


Lúcia Ribeiro: Na minha opinião, é a terceira linha apontada pela pesquisa, que não chega a se omitir, mas respeita as individualidades. Quanto às ordens, fica difícil dizer qual lida melhor, pois todas elas possuem suas contradições e são complexas. A Teologia da Libertação, por exemplo, é muito aberta e progressista quando se trata de política. Porém, política não é sexualidade. Homens abertos intelectualmente podem ser bastante opressores em relação á sexualidade.


RETS: Em diversos momentos da entrevista você falou sobre a importância da responsabilidade de cada um nas tomadas de decisões. Essa é a face mais importante da relação dos leigos com o clero?


Lúcia Ribeiro: Com responsabilidade atingiremos o mundo que queremos, que é o mesmo da Igreja, um mundo justo e fraterno. Com ela rumaremos para a liberdade e não para a libertinagem. Tem de haver limites, que cada um deve impor a si mesmo de acordo com suas crenças.

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