Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() | ![]() |
Acidente de trânsito. Um dos feridos, um rapaz de 28 anos, é rapidamente socorrido e levado para o hospital mais próximo. Ele sofreu forte traumatismo craniano e seu estado é grave. Na Unidade de Terapia Intensiva, os médicos lutam em vão para salvar sua vida. Dois dias depois, o diagnóstico é definitivo: morte cerebral. Não há mais nada a fazer. Ou melhor: há algo que ainda pode ser feito. Os médicos consultam a família do paciente sobre a possibilidade de doação de órgãos. A família não se opõe. Os médicos imediatamente entram em contato com a Central de Transplantes, que envia uma equipe ao hospital. Após os exames para verificar a compatibilidade do doador, é dado o sinal verde. Em menos de 48 horas – prazo máximo –, os órgãos são retirados. Um mês depois, o coração do rapaz bate em outro peito e as córneas, o fígado e os rins oferecem uma nova perspectiva de vida para pessoas que, finalmente, livraram-se da angústia de espera por um doador.
A cena ideal é mais ou menos assim. A realidade, nem sempre. Segundo informações do Ministério da Saúde, 61,1% das ocorrências de morte cerebral no país não são notificadas à Central de Transplantes. Dos doadores potenciais, ou seja, aqueles com diagnóstico notificado de morte cerebral, apenas 21,1% tornam-se efetivos. E em 37,9% dos casos em que a doação não é efetivada, a família nega autorização para o transplante. O resultado é que, em um país com potencial de 10 mil doadores de órgãos por ano – conforme estatísticas aceitas internacionalmente –, menos de 4 mil chegam ao conhecimento das Centrais de Transplantes e pouco mais de 800 se tornam doadores de fato. Enquanto isso, cerca de 45 mil pessoas estão hoje na lista de espera por um transplante – principalmente de rins e córneas.
O engenheiro agrônomo Francisco Neto de Assis, presidente da OSCIP Adote (Aliança pela Doação de Órgãos e Tecidos), de Pelotas (RS), atribui o baixo índice de notificações a um misto de desinteresse e falta de informação dos próprios médicos. “E ainda tem hospital que desconhece a legislação que estabelece a obrigatoriedade da comunicação de qualquer caso de morte cerebral à Central de Transplantes Estadual. E um médico, certa vez, me disse que não notificava porque transplante não dá lucro. Ele não sabe o que está falando!”, indigna-se.
Segundo Francisco, o transplante é o único tratamento médico com recursos específicos, desvinculados dos recursos que o SUS (Sistema Único de Saúde) normalmente envia para os estados e municípios. “Até a notificação – um simples ato de telefonar para a Central de Transplantes – é paga pelo SUS. A tabela de procedimentos é, em geral, muito melhor do que a tabela para outros tratamentos. Cerca de 85% dos transplantes no Brasil são pagos pelo SUS. E muito bem pagos”, afirma. O Sistema Único de Saúde oferece R$ 210 pela localização e abordagem de um possível doador e R$ 51.899,46 por um transplante de fígado. Para receber esses valores, no entanto, é preciso que a instituição esteja cadastrada no SUS. Do contrário, nada feito.
Francisco de Assis criou a Adote em 1998, depois de viver em família duas duras experiências. A primeira com uma sobrinha que, após um acidente de trânsito, teve morte cerebral. A família decidiu pela doação dos órgãos, mas os médicos não tiveram qualquer iniciativa. Os pais trataram de tomar pessoalmente todas as providências, mas a falta de empenho do hospital foi fatal. A outra situação aconteceu com um filho de Francisco, portador de uma grave doença cardíaca, que passou a depender de um transplante. Depois de anos na fila de espera por um doador, não resistiu.
“A Adote tem atuado no sentido de divulgar o máximo de informações sobre doação e transplantes. Para tal usa a internet, um pequeno jornal trimestral, distribui panfletos, folders, adesivos etc., realiza palestras em escolas e outros centros comunitários, estimula a discussão nas escolas através de concursos de cartazes, redação, enfim, procurar dar o máximo de visibilidade ao tema”, explica. No ano passado, a Adote realizou um trabalho intensivo na região de Pelotas, na expectativa de identificar pelo menos 20 potenciais doadores por ano – somados os últimos três anos, o número chegara a apenas 12. Com uma forte campanha em televisão e jornais, além de palestras e concurso de redação nas escolas, contando com o apoio da Sociedade de Medicina, das Secretarias de Saúde do estado e do município e de universidades, o objetivo foi alcançado. “No final do ano, contabilizamos 21 potenciais doadores notificados para a Central de Transplante”, comemora.
Número de doações aumentou
Em 1997, com a Lei nº 9.434, que tornava cada cidadão um doador presumido e impunha a quem discordasse a tarefa de manifestar formalmente sua vontade, a doação de órgãos tornou-se assunto nacional. No ano passado, a Lei nº 10.211, que alterou alguns dispositivos do texto anterior, encerrou a polêmica determinando que a doação deverá ser consentida pela família. Diz ainda que cada um pode doar livremente órgãos e tecidos para cônjuges ou parentes até o quarto grau ou, mediante autorização judicial, para qualquer outra pessoa – essa autorização, no entanto, é dispensada nos casos de medula óssea.
“Os pontos polêmicos foram benéficos, na medida em que provocaram uma grande discussão do tema”, diz Francisco. “Desde a sua implementação, os transplantes realmente aumentaram, certamente porque a sociedade, por causa dessa discussão, se dispôs a doar mais e os médicos a também notificarem mais”.
De fato, de acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), os registros de transplantes de doadores cadáveres realizados no Brasil passaram de 1.015, em 1997, para 1.773 (número estimado), no ano passado. No mesmo período, considerando agora apenas os doadores vivos, o número passou de 1.981 para uma estimativa de 3.558. Esse crescimento, no entanto, ainda está longe de dar conta da lista de espera. E a falta de estrutura para a realização dos transplantes nos hospitais brasileiros torna a situação dramática. “Quem espera coração, pulmão ou fígado tem, em geral, uma expectativa de vida de menos de um ano. O Brasil tem, praticamente, apenas um centro transplantador de pulmão, em Porto Alegre. Isso obriga quem mora em Belém, por exemplo, a mudar-se para o Rio Grande do Sul”.
O próprio diagnóstico da morte cerebral necessita de aparelhagem adequada – e nem sempre disponível – para sua confirmação. Uma vez comprovada, deve-se esperar um prazo de seis horas para a realização de um novo exame. Se o diagnóstico for confirmado, então é autorizada a retirada dos órgãos e feita a notificação à Central de Transplantes. A partir daí, começa uma corrida contra o tempo. O cérebro do paciente está morto, o que provoca a perda progressiva das funções vitais. As drogas ministradas pelos médicos apenas prolongam esse prazo. Um coração, por exemplo, deve ser transplantado em quatro horas. O transporte deve ser rápido, com acondicionamento adequado e após verificação de compatibilidade entre o órgão e o receptor. Muitos órgãos, porém, perdem sua utilidade nesse processo. “No Rio de Janeiro, a notificação era muito baixa, mas isso melhorou bastante nos últimos dois anos”, conta o Dr. Alexandre Cerqueira, que está participando da implantação de um programa de transplante de fígado no Hospital Geral de Bonsucesso. “Só que é preciso manter o doente, o que nem sempre acontece. Muitas vezes o seu lugar é cedido a um paciente em condições de sobreviver e ele é deixado na Emergência ou em condições não favoráveis, o que acaba inviabilizando a doação”, lamenta.
O aspecto religioso
No ano passado, a morte do músico Marcelo Frommer, do grupo Titãs, reacendeu a polêmica sobre o transplante de órgãos. Tendo declarado em vida sua opção pela doação, o músico teve o desejo acatado pela família quando diagnosticada sua morte cerebral, em decorrência de um atropelamento, em São Paulo. Marcelo era judeu e surgiu uma discussão sobre um possível veto religioso a essa prática, o que acabou não sendo confirmado. Os órgãos de Marcelo acabaram transplantados. Na época, o rabino Henry Sobel não deixou margem a dúvidas: “A lei judaica proíbe a mutilação do cadáver e exige que o corpo seja sepultado intacto e o mais breve possível. Essas exigências, entretanto, podem ser postas de lado diante do mandamento supremo do judaísmo: o dever de salvar uma vida. Não pode haver maior tributo aos mortos do que utilizar seus restos mortais para salvar ou prolongar outra vida humana. Existem, nesse caso, dois requisitos básicos. Primeiro, que o órgão retirado do morto seja transplantado imediatamente para o receptor necessitado, justificando assim o conceito de salvar uma vida. Por exemplo: pessoas na lista de espera são pessoas necessitadas. Uma vez que o transplante visa salvar a vida dessas pessoas, ele é não somente permitido, mas encorajado. Segundo requisito: que tenha sido dada permissão pelo doador antes de sua morte ou, pelo menos, por sua família, após o falecimento”.
As religiões católica, islâmica e evangélica não se opõem a que os fiéis doem seus órgãos. As Testemunhas de Jeová, que rejeitam transfusões sangüíneas, são favoráveis, desde que o transplante se realize sem a doação de sangue – o que é perfeitamente possível. No espiritismo, no entanto, há quem pondere que o desejo de fazer a doação deve ter sido manifestado pelo doador, que então teria tido tempo de se preparar para esse momento. Do contrário, o espírito poderia sofrer. Correntes do budismo, por sua vez, rejeitam o transplante, por considerarem o conceito de morte cerebral excessivamente materialista e por acreditarem que a consciência não abandona o corpo da pessoa imediatamente após a morte.
Nota-se que as opiniões podem variar dentro de uma mesma religião, conforme cada tendência ou corrente – mais ou menos ortodoxa. De uma maneira geral, no entanto, as negativas à doação de órgãos justificadas pelo aspecto religioso são pouco expressivas. “Em torno de 15 a 20% dos doadores potenciais são perdidos por questões familiares, o que inclui também a questão religiosa”, informa o Dr. Alexandre Cerqueira. Na maior parte dos casos, as decisões acabam ficando a critério de cada pessoa. E o que determina a concordância ou não é mesmo o temor do desconhecido, a insegurança, a desinformação.
Desinformação, aliás, que também é a palavra-chave para explicar o espantoso número de casos de morte cerebral não notificados pelos hospitais brasileiros, como vimos no início desta reportagem. Talvez esteja na hora de uma grande e permanente campanha de esclarecimento. Só assim – a exemplo do que aconteceu quando da aprovação da Lei nº 9.434 – haveria um debate amplo, com toda a sociedade participando – de corpo e alma.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer