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OSCIP: o primeiro passo de uma reforma social do marco legal do terceiro setor

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

* Augusto de Franco


A Lei 9.790/99, que cria as OSCIPs e o Termo de Parceria, é um passo inicial de um projeto maior: a reforma do chamado marco legal do terceiro setor, ou seja, do conjunto de leis e normas que regulam as relações entre o Estado e as organizações da sociedade civil.

O caminho seguido pelo Conselho da Comunidade Solidária, na sua iniciativa de reforma do marco legal do terceiro setor, foi o de uma reforma orientada pela necessidade de responder às questões, inéditas, colocadas pela entrada na cena pública de novos atores sociais coletivos que tanto podem agir de foram autônoma quanto em parceria com o Estado e com o mercado.

A Comunidade Solidária, juntamente com vários parceiros da sociedade civil e do governo federal, partiu do princípio de que nenhum setor da sociedade, isoladamente, pode impor aos demais suas “lógicas” de funcionamento. Admitiu que a sociedade civil tem uma racionalidade própria, que não deriva do Estado, nem do mercado. Considerou que a auto-regulação da sociedade global como sistema complexo, se existir, só pode ser fruto de uma sinergia entre Estado, Mercado e Sociedade Civil. Admitiu que o protagonismo da sociedade civil é decisivo para o desenvolvimento social e, por conseguinte, para o desenvolvimento em geral. Assumiu que o terceiro setor cumpre um papel estratégico na consolidação e na expansão de uma esfera pública ampliada, que não seja monopólio do Estado e sem a qual não pode avançar o processo de democratização das sociedades.

De acordo com tais pressupostos, a reforma social do marco legal do terceiro setor foi orientada, prioritariamente, para criar condições para a emergência de novos atores sociais públicos do desenvolvimento e para o fortalecimento de uma esfera pública não estatal.

Tendo isso em vista, quais devem ser os objetivos de uma reforma social do marco que regula as relações do Estado com o terceiro setor? Ensejar o protagonismo da sociedade civil. Possibilitar parcerias - daí o novo instituto do Termo de Parceria. Aumentar o estoque do nosso capital social. Induzir e promover um desenvolvimento humano e social sustentável. Tudo isso implica mudança no padrão de relação entre Estado e Sociedade. Ora, a mudança desse padrão de relação passa pela reforma das velhas leis que o expressam. Por isso queremos fazer a reforma.

Levando, então, tudo isso em conta, o que fazer? E por onde começar? Obviamente por um novo sistema classificatório, capaz de possibilitar a distinção entre as organizações privadas sem fins lucrativos com fins privados e aquelas organizações privadas sem fins lucrativos com fins públicos – ambas igualmente legítimas, é sempre bom frisar.

Deveria ser óbvio para qualquer um que o Estado - uma instituição cuja legitimidade decorre de um pacto em prol do interesse público – não pode se relacionar da mesma maneira com esses dois tipos diferentes de instituições. Uma entidade ambientalista, que luta pelo desenvolvimento sustentável de uma região da Mata Atlântica, não é a mesma coisa que uma associação de jogadores de bridge de São Bernardo do Campo. Ambas são organizações do terceiro setor e legítimas. Mas têm estatutos diferentes no que concerne à sua relação com a esfera pública – referencial que necessariamente deve ser tomado pelo Estado para distinguí-las.

Também deveria ser óbvio para qualquer um que, do ponto de vista do interesse público, esse deve ser o primeiro passo de qualquer reforma do marco legal do terceiro setor, e não a concessão de incentivos. Mesmo porque, admitindo que os incentivos fiscais são um fator importante para o fortalecimento e a expansão do terceiro setor, é claro que o Estado não poderá concedê-los da mesma forma para organizações de interesse público e para organizações de interesse privado.

Entenda-se bem. Os incentivos são importantes. Muito importantes. O problema é a quem concedê-los. E como concedê-los. Por isso, a reforma social do marco legal do terceiro setor deve começar pela instalação de um sistema classificatório que permita a distinção entre interesse público e interesse privado, como fez a Lei das OSCIP.

Isso não significa que os incentivos devam ser concedidos apenas àquelas organizações qualificadas como OSCIPs. Mas significa que eles devem ser concedidos, diferenciadamente, para aquelas organizações que têm finalidades e regime de funcionamento reconhecidos como públicos mesmo que tais organizações – por qualquer motivo – não sejam qualificadas como OSCIPs, já que ninguém pensa, pelo menos até agora, em tornar obrigatória a obtenção desse título.

Evidentemente, esta visão inovadora encontrou resistências tanto da parte dos que não cogitavam e não cogitam qualquer reforma – inclusive porque não acreditam, fazendo coro com Margareth Thatcher, que exista alguma coisa como sociedade civil ou terceiro setor – quanto da parte daqueles que, sob um ponto de vista liberal ou corporativo, acham que tudo isso não passa de teoria, de vez que o que conta, de fato, é o resultado econômico, o benefício financeiro, a isenção fiscal, a renúncia estatal, a transferência de recursos públicos, o dinheiro em caixa.

Por justiça deve-se dizer que o principal obstáculo encontrado até agora pela iniciativa de reforma social do marco legal do terceiro setor foi a incompreensão de algumas pessoas, que pensam ainda com a velha cabeça segundo a qual só existem dois âmbitos, duas esferas da realidade social: a do Estado e a do mercado. Parte desse pessoal, felizmente minoritária, acredita que o terceiro setor seja uma espécie de disfarce para atividades lucrativas, que querem se maquilar como atividades sem fins lucrativos para fugir dos impostos.

Entretanto, dentre aqueles que acreditam na existência da sociedade civil e querem fortalecê-la, seja por qual via, também existe, bastante preconceito. Por exemplo, a idéia de que isenções e incentivos fiscais constituem sempre avanços para o terceiro setor. Nem sempre, pois podem significar também privilégios setoriais, corporativos e para-corporativos (no caso daquela parte do terceiro setor que não possui fins públicos), que de certa maneira privatizam recursos públicos que deveriam ser destinados não a responder a interesses coletivos de determinados subconjuntos sociais — por mais justos e legítimos que sejam – mas a interesses comuns de toda a sociedade.

Na verdade, precisamos de uma política geral de incentivos para o terceiro setor que enseje a aplicação de um sistema de financiamento compartilhado. Um sistema complexo - pois dentro do terceiro setor é grande a diversidade - que não dependa apenas do Estado como o único provedor. A orientação maior que deverá ser seguida, aqui como em outros campos, é a seguinte: nenhum direito sem responsabilidade. O terceiro setor deve ser financiado não apenas pelo Estado, mas se for, deve sê-lo na medida das responsabilidades públicas que assume.

Uma futura reforma tributária deverá abrir possibilidades para que o terceiro setor construa, a partir de suas próprias iniciativas e tendo sempre em conta sua diversidade, mecanismos mais ágeis, eficientes e criativos de obtenção de financiamentos (fundos sociais públicos e privados, por exemplo). Se o terceiro setor ficar sempre dependendo apenas do Estado jamais adquirirá maioridade política e, sendo assim, jamais poderá cumprir o seu papel estratégico de espaço para o surgimento de mecanismos de controle social do Estado e de orientação social do mercado. Quem não é capaz de ver isso não é capaz de entender a novidade da maior promessa deste início de século e de milênio, que está mudando o desenho da sociedade contemporânea: o surgimento de uma esfera pública não-estatal. Quem não é capaz de ver isso, vai continuar lutando por aumentar os benefícios para o terceiro setor, mas com uma ótica velha, corporativa, que põe ênfase na sobrevivência dos aparelhos.

Além da reforma tributária e da construção de um novo sistema de financiamento para o terceiro setor, a reforma do marco legal deve avançar para mudar também o regime trabalhista e previdenciário. Organizações da sociedade civil não são empresas e não podem ser tratadas como tal. Quando, por exemplo, uma ONG contrata um consultor para um projeto público que tem início, meio e fim, não pode arcar com responsabilidades contratuais da mesma maneira como deve arcar uma firma privada de consultoria, sobretudo se os financiadores internacionais não reconhecem tais obrigações e não estão dispostos a custeá-las.

A lista do que deve ser mudado contém várias dezenas de itens, razoáveis e exeqüíveis, que ainda encontram, entretanto, muitas resistências, digamos, culturais.

A grande questão levantada pelo processo de reforma aberto com a Lei das OSCIPs é a finalidade, mais do que a da não apropriação privada de um resultado positivo. Uma organização de prevenção à Aids não pode, por exemplo, ser equiparada a uma organização de caráter corporativo, que defende interesses coletivos, por certo, mas apenas de uma parcela da sociedade.

Este foi o caminho escolhido. Começar pela finalidade e pelo regime de funcionamento para distinguir o caráter público do caráter privado, a partir da Lei das OSCIPs. Tornada possível tal distinção em termos legais, cabe avançar agora nos outros itens da reforma do marco legal.

Está dando certo? As mudanças pretendidas estão, de fato, ocorrendo? Parece que sim, embora nunca com a velocidade desejada. Mudanças culturais demoram para serem incorporadas.

Muitos diziam que a Lei das OSCIPs não iria pegar. Os números, no entanto, estão dizendo o contrário. Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Justiça, um balanço dos pedidos de qualificação como OSCIP demonstra que o número de pedidos está aumentando e o número de indeferimentos está diminuindo.


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A grande maioria dos indeferimentos ainda se deve a erros de documentação por parte das organizações solicitantes, o que tende a diminuir na medida em que a lei se torne cada vez mais conhecida.

Não há razões para acreditar em reversão desta tendência de crescimento das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público instituídas pela Lei 9790/99.

* Augusto de Franco é conselheiro e membro do Comitê Executivo da Comunidade Solidária.

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