Autor original: Mariana Loiola
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Resultado da produção dos grupos temáticos do 8º encontro da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e as Relações de Gênero (REDOR), o livro "Múltiplas Trajetórias" faz uma avaliação da trajetória feminina e suas lutas pela emancipação. Escrito por oito mulheres, de vários estados do país, o livro apresenta uma gama variada de assuntos que vai desde a história do sufragismo – que reconhece o direito da mulher de voto para eleição – em alguns estados do Brasil, passando pelas reflexões sobre a juventude e sua relação com a política e gênero, direitos reprodutivos, mulheres negras, relação entre a estrutura familiar e a seca, velhice, entre outros. A organizadora do livro, Célia Gurgel, e uma das autoras, Celecina Veras – que contribui com um artigo sobre jovens da periferia de Fortaleza – nos falam sobre esse trabalho e sobre os desafios enfrentados pelas mulheres na conquista dos seus direitos. Elas lembram que as relações de gênero devem ser discutidas em todos os espaços, desde os mais tradicionais até os considerados mais avançados na questão.
Rets – Que contribuição o livro traz para o estudo do papel feminino na nossa sociedade?
Célia Gurgel – O livro reúne onze trabalhos apresentados no 8º Encontro da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (Redor), que aconteceu em Fortaleza, no ano de 1999. Os textos tratam da mulher tanto na idade jovem quanto na idade madura e na velhice. Discutem sufragismo, "cultura de rua", trabalho, saúde, meio ambiente, família e seca e espaços de sociabilidade. Os textos mostram, claramente, que não existe um “papel feminino”, mas uma cultura de feminilidade em diversos papéis sociais vivenciados pelas mulheres que vão se rompendo nas mais diversas atividades.
Celecina Veras – O livro “Múltiplas Trajetórias” revela a diversidade de objetos de estudo que podem ser pesquisados sobre a temática gênero e condição feminina e tem várias contribuições – entre elas, a visibilidade de estudos realizados nas Universidades no Norte/Nordeste, demonstrando assim que existe uma produção fora do eixo Rio-SP. Outra contribuição são as diversas abordagens teórico-metodológicas apresentadas pelas diversas autoras, além de mostrar que a maioria dos estudos tem trabalho de campo e envolvimento com diversos setores e segmentos da sociedade, podendo, portanto, contribuir com ONGs, grupos e estudantes de graduação e pós-graduação que estejam trabalhando, estudando ou interessados nas diversas temáticas.
Rets – Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres na conquista dos seus direitos?
Célia Gurgel – Eu acredito que a primeira dificuldade para a conquista de direitos é a própria desigualdade social que condiciona a subjugação de classes e raças, impossibilitando o acesso igual a bens culturais, principalmente para as mulheres. Outra dificuldade é de natureza subjetiva. É preciso romper com a concepção de que o homem tem direito de mandar e de comandar a vida e a vontade das mulheres. A ruptura com esta idéia é dificultada pela sofisticação das formas simbólicas de incutir esta inferioridade, largamente "somatizada" pelas mulheres. À medida que a mulher é colocada ou se coloca como objeto de consumo do homem (ao girar e se transformar em uma cerveja, ao se comparar a um carro ou avião) ou a outro objeto de uso, mantém e consolida a dificuldade de conquistar direitos iguais no trabalho, na política e em outras esferas institucionais. Outra dificuldade para conquistar e manter os direitos iguais entre homens e mulheres acontece à medida em que as relações de poder existentes subvalorizam a mulher, o ser feminino e o comportamento voltado para a casa. A conquista de direitos ainda está em processo e corre o risco de retroceder se as mulheres pensarem que seu poder está na sensualidade do seu corpo. Esta idéia corrobora com a idéia de que o poder dos homens está na força do seu corpo. Mulheres e homens precisam desconstruir o mito de que o corpo é quem domina. A busca pela equidade de poderes entre homens e mulheres ainda é uma tênue forma de construção de um processo para a conquista de direitos para as mulheres.
Celecina Veras – Falta de reconhecimento dos seus direitos, inclusive os conquistados em lei, que ficam somente no papel; falta de autonomia (econômica, política) para gerir sua própria vida; opressão dentro de casa, impedindo-a de exercitar sua liberdade de agir e falar; machismo e discriminação no espaço público.
Rets – Você acha que, em regiões como o Norte e o Nordeste do Brasil, a dificuldade de emancipação feminina é ainda maior? Por quê?
Célia Gurgel – Ainda maior em relação a quê? Ao resto do mundo ou ao Brasil? A que referencial você se refere? Esta pergunta é um exemplo de centralidade que, nas discussões de gênero, identificamos como o androcentrismo. Talvez você esteja falando de uma cidade do Sul do país e, por isso mesmo, considere que mulheres do Norte e Nordeste tenham mais dificuldade de emancipação. Esta é uma questão em que você coloca o Centro-Sul como referencial de emancipação. De que emancipação você fala? Em que época histórica? Acho que em todas as épocas existem exemplos de mulheres que romperam "grilhões". O livro “Múltiplas Trajetórias” traz várias dessas histórias. Vale a pena ler. Conta histórias de mulheres do Norte e Nordeste.
Celecina Veras – Muitos estudos apontam alguns estados e regiões como espaços mais difíceis, mas precisamos ter cuidado com os determinismos geográficos. Esse tipo de universalização distorce as análises. Contudo não podemos desconhecer que a história e a cultura de cada grupo humano influenciam seu comportamento. As sociedades mais tradicionais, como as rurais, com certeza têm mais dificuldade de assimilar mudanças. No entanto não creio que o Nordeste, em si, seja mais machista que o Rio Grande do Sul, onde já foram formados grupos organizados de machistas em oposição às feministas.
Rets – Como é abordada a questão do sufragismo no livro?
Célia Gurgel – Existem dois artigos sobre o sufragismo. Um conta como foi a luta no estado do Pará, ligada ao movimento espírita. O outro artigo conta como foi o movimento pelo direito ao voto na Bahia a partir de leituras de jornais da época. Em ambos, a vivência de um processo por mulheres que tinham acesso à leitura e pertenciam a uma classe social mais favorecida. Elas vivenciaram preconceitos e romperam estereótipos quanto à sua capacidade intelectual.
Celecina Veras – O sufragismo é tratado em dois textos, apontando como a luta pelo voto feminino aconteceu no Pará e na Bahia. As autoras tratam o sufragismo como um marco na luta das mulheres e um despertar para outras lutas, como direito à educação e ao trabalho, assim como um novo olhar acerca de si mesmas.
Rets – Qual é a relação entre a luta das mulheres e a participação política dos jovens apontada no livro?
Célia Gurgel – Não dá para comparar em termos de referenciais. Os jovens retratados no artigo da professora Celecina são pertencentes a movimentos populares, chamados de "cultura de rua". Entre eles não se explicita uma reivindicação para participar de movimentos políticos, mas de se contrapor a um modelo vigente através da contestação com suas letras de música.
Celecina Veras – Considerando que o texto sobre juventude é meu, poderia responder desta forma: em primeiro lugar as lutas dos jovens são empreendidas por homens e mulheres – e as mulheres jovens estiveram presentes nos diversos momentos de lutas femininas. O texto sobre juventude no livro citado trata das relações de gênero no movimento político-cultural dos jovens, relata como os movimentos conseguem avançar na discussão das desigualdades de raça e classe social, mas ainda são tão iniciantes ou desconhecedores da discussão de gênero. As relações de gênero são transversais, portanto devem estar presentes em todos os espaços, em todos os movimentos sociais. O que observei durante a pesquisa com jovens do Movimento Hip-Hop é que este tem criado e experimentado novas formas de fazer política, mas ainda delimita os espaços segundo o sexo, a rua é sempre apresentada como lugar dos homens. É preciso, portanto, que os jovens, homens e mulheres, nos seus diferentes grupos, ampliem limites, questionem os saberes e valores constituídos.
Rets – Que obstáculos os movimentos de mulheres encontram no relacionamento com o governo?
Célia Gurgel – Se observarmos o que o governo restringe em termos de políticas públicas para as crianças, mulheres gestantes, trabalhadores e a família pobre, rural ou urbana, vemos aí todo tipo de obstáculos vivenciados pelas mulheres.
Celecina Veras – O governo, tanto no nível municipal, como no estadual ou federal, tem tentado capturar as conquistas das mulheres. De fato, o apoio aparece muito nos programas de governo, mas na prática não há vontade política de transformar as relações de violência contra as mulheres. As iniciativas dos governos são sempre no sentido de burocratizar, de institucionalizar o movimento das mulheres.
Rets – Quais são as conseqüências de uma cultura construída a partir de uma visão que exclui a representatividade feminina?
Célia Gurgel – A representatividade feminina mais excluída é aquela que defende os interesses das mulheres pobres, negras e índias. Ao meu ver, mulheres que se identificam com o poder masculino, centrado nos interesses do capital, não se sentem (e não são de fato) excluídas dos benefícios sociais.
Celecina Veras – A participação das mulheres é sempre um acontecimento de muita luta. No mundo do trabalho, na política, as mulheres lutam por igualdade, pois historicamente o lugar destinado às mulheres é tido como secundário, complementar. No entanto, o movimento feminista se recusa a aceitar esse papel como natural e transforma a participação política das mulheres em seu alvo de luta.
Rets – Que contribuições uma maior participação feminina pode trazer para a sociedade?
Célia Gurgel – Não podemos mistificar a "participação feminina" como se bastasse ser mulher para trazer benefícios para a sociedade. Não podemos dissociar a questão da luta de classes. Por exemplo, quando a Roseana Sarney se coloca como alternativa "feminina", não se pode esquecer que o seu pai, ex-presidente, pai do Plano Cruzado, será seu consultor político. Por isso, não é toda mulher que tem a "alma feminina" que busca a conciliação, a igualdade e a justiça social.
Celecina Veras – As mulheres têm um século de organização, além de inúmeras iniciativas isoladas que colocaram a sua emancipação como principal objetivo de vida. Mas, entre embates e conquistas, muitas foram as vitórias ao longo do século 20. E contra a cultura da exclusão da representatividade foi construída uma outra: a cultura da representação, que vem se efetivando nos mais diferentes espaços.
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