Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original:
Jorge Márcio Pereira de Andrade *
Cena 1 - Supermercado da rede S. Uma grande cidade. Um menino. Uma fila de consumidores. Um caderno e uma caixa de ovos. Um olhar.
Há dias venho me questionando sobre escrever acerca do uso pouco criativo do escritor e visionário George Orwell (1903/1950), autor do romance 1984, na televisão e na vida de todos nós. O Grande Irmão ("big brother") naturalizou-se e foi naturalizado. Mais uma vez a sociedade do espetáculo nos domina. Mais uma vez não olharemos para outro monitor além da telinha que nos seduz.O mundo é do Fórum Econômico ou do Mundial e Social ? Ou é apenas Global?
Eis que estou numa fila de consumidores, dentro de um supermercado, obedientemente empurando meu carrinho de compras, poucas. Olho em volta e tudo é estímulo para o consumo. Lá fora a violência explícita. Passa um garoto, sandálias e calças curtas, olhar vago e pedinte, visivelmente pobre, visivelmente excluído. Ele traz nas mãos: um caderno espiral, desses de 200 folhas e uma caixa de ovos tipo extra grande. Ele passa e pede para os membros das filas:
- Moço, paga prá mim essas coisas....
Todos olham, ele passa, o supermercado está lotado. Já naturalizamos também nossa permanência em filas (banco, INSS, Correios etc...). Ele se afasta. Em seguida abandona o caderno numa prateleira de papel higiênico. Continua sua peregrinação suplicante. Apenas nos entreolhamos.
Cena 2 - Eis que surge a pérola que me fez pensar sobre o caderno: uma mulher, negra como eu, também excluída, mas que não se deu conta ainda desta condição, olha pra algumas pessoas e justifica:
- Se ele tivesse apenas pedido os ovos, eu até pagaria...
Cena 3 - Lá fora um outdoor anuncia uma chamada da Intel e seu Pentium 4 - INVISTA NO SEU FILHO - PODE RENDER UM GÊNIO - Lá está: uma menina, um computador e o rosto de Einstein...
Me autorizo, então, a compartilhar com todos a minha indagações. Qual é a nossa dívida com estes meninos e meninas da vida?
Eu também não paguei o caderno que o menino trazia nas mãos. Eu também não retruquei à senhora que falou sobre a escolha, e, mais ainda, não me indignei, naquela hora, com toda esta situação. Por quê? Quem sabe porque não tinha uma câmera me gravando para passar para todo o país. Não me sentia naquele instante tão global, ou minimamente solidário. Era mais um na fila. Era apenas mais uma cena local. Isolada. Triste e repetitiva. Ou seja natural, comum e rotineira. Meninos e meninas com fome de quê? Eram 22 h e o supermercado Brasil estava fechando para que os telespectadores da vida pudessem assistir ao Big Brother em dobro. Um último olhar me lembra: sorria, você está sendo filmado. Estamos, enfim, seguros e vigiados.
Neste momento alguém pergunta: o que isto tem a ver com as pessoas com deficiência? Também me indago, pois o que imaginei na fila do supermercado foi que o pequeno pedinte poderia ser um menino(a) deficiente, e, mais uma vez, talvez tivéssemos a manifestação de pena ou piedade como fundamento para o pagamento do pedido (ou seria resgate), ou quem sabe até uma maior repulsa e preconceito como ocorre com muitos, nos cruzamentos das ruas. Afinal para que alimentar de "luz" àqueles que só reclamam de um ronco na barriga? Nós ainda estamos acreditando na dicotomia entre intelecto, aprendizagem e estômagos?
Tudo isso é "cenário" para falar de uma exclusão que está imbricada com a inclusão. A existência das fomes, todas as fomes, principalmente aquela que preocupava Paulo Freire, a educação como direito inalienável dos cidadãos, acaba sendo denunciada pela sua ausência. Surge então o discurso sobre a exclusão social. Na pobreza e na miséria humana, dizem que quem tem um "ovo" torna-se rei. Portanto para que precisamos ainda de cadernos? Ainda mais quando estamos bem perto (longe?) da chamada inclusão digital do caderno eletrônico, do laptop, do mundo tecnológico de ponta em que as distâncias são o motivo do aprender e não o contrário?
Por estes temas sem resposta, insisto em me perguntar e nos indagar: por que não damos dois cadernos a todos os meninos e meninas, sejam ou não deficientes, para que juntos, exatamente por suas diferenças, possam não ter de escolher um, apenas. Mas não esqueçamos de alimentá-los... Quem sabe possamos aprender o significado de estarmos todos no mesmo mundo-barco, que o meu remo depende do seu, meu-teu mar ou rio me encharca com o mesmo dilúvio e nos afogamos no mesmo sistema social de desigualdades e múltiplas exclusões-inclusões..., e nas dúvidas.
Desejaremos que as políticas de distribuição de conhecimento e a saciedade das fomes humanas, nossa insaciável fome de conhecimento e informações, todas, possam ser saciadas? Vamos indo para além dos critérios econômicos e jurídicos da cidadania mínima, comprometidos que estaremos com a busca de uma sociedade compartilhada e diferente, uma sociedade menos obediente e telespectadora da própria dominação pelo espetáculo. As fomes têm de ser coisa que não atingem somente os "mocinhos e mocinhas" das casas de artistas, das vitrines de vidas sob vigilância, nos camarins dos "reality-show", que nos treinam para aceitar a "teletela" e os fiscais de cinza de nossas privacidades, estimulando-nos para ganhar, competitivamente, em dobro. Vencendo a todos na maratona para o mundo dos clones e dos cyborgs.
Ganharemos então como prêmio também nos tornarmos virtuais moradores do quinto dos infernos?
Aviso aos navegantes: quem encontrar um menino(a) pedinte de cadernos e ovos, favor me mandar um e-mail, muito embora sejamos apenas 5% de toda a população do mundo que temos acesso a Internet. O resto é o resto. Vocês não concordam? Afinal o nosso perfil estatístico, segundo a pesquisa, é de jovens internautas, ricos, disponíveis, que moram com os pais e 84% têm pelo menos o segundo grau completo. Ou seja, ganharam um investimento num caderno digital, e quem sabe serão os futuros donos das filas virtuais de comunicação no ciberespaço. O resto é o resto.
Continuaremos com os corações e mentes blindados? Já que nossos carros protegidos não nos protegem mais, como provaram Celso e Washington ? O nosso Afeganistão é logo ali... basta continuarmos de olhos vidrados.
*Jorge Márcio Pereira de Andrade é médico e editor do boletim Info Ativo Defnet - Informativo do Centro de Informática e Informações sobre Paralisias Cerebrais
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