Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Nem troça, nem escárnio. Uma nova prática nas universidades está contrariando a definição dos dicionários para dar um outro sentido ao trote. Os habituais ritos de entrada nas instituições de ensino superior estão se transformando. Os calouros – chamados de “bichos” e muitas vezes tratados como nem bichos deveriam ser – estão recebendo um tratamento mais humano. E o trote dos maus-tratos, da violência e da humilhação vem, pouco a pouco, dando lugar a uma modalidade conhecida como trote solidário. Juntos, veteranos e novos alunos somam forças para ajudar quem precisa, lutar por uma boa causa ou formar cidadãos mais conscientes.
Neste início de ano letivo, algumas iniciativas chamam atenção. Uma delas vem da Fundação Educar DPaschoal e do Faça Parte – comitê brasileiro de voluntariado –, que, em continuidade à campanha Trote da Cidadania, inaugurada em 1998, estão distribuindo um milhão de livros infantis para projetos elaborados por alunos universitários de todo o Brasil. Em apenas duas semanas de campanha, 25 mil livros já foram doados a instituições como a Unifieo (Osasco), a Fatec-SP e o Ibmec (SP). Segundo Fernando Moraes, diretor da Fundação Educar, o investimento na campanha deste ano está em torno de R$ 100 mil. “Nós temos uma editora infantil. Os livros são produzidos por nós, o que barateia os custos. E oferecemos também os manuais com toda a metodologia da campanha”, explica. Fernando conta que a iniciativa partiu do interesse da fundação em conter a onda de violência nos trotes acadêmicos. Uma pesquisa encomendada revelou que os jovens, de uma maneira geral, não reprovavam o ritual do trote, mas a forma como ele era praticado. “Eles consideravam o ritual como uma coisa gostosa, mas estavam assustados com a violência. Daí nós vimos que seria interessante trabalhar com a cidadania”.
Os estudantes de Letras da Unesp, em Assis (SP), já solicitaram os livros e pretendem levar os calouros para uma creche, onde lerão histórias para as crianças e participarão de brincadeiras e atividades relacionadas aos temas abordados nas histórias. Os livros serão doados à creche após as atividades.
Os interessados em participar do Trote da Cidadania devem enviar seus projetos até a primeira semana de março. Vale usar toda a criatividade possível. A inscrição pode ser feita no site da campanha (veja link ao lado). No final do ano, os cinco melhores serão transformados em casos de sucesso e publicados. “A nossa idéia é fazer um livro com os projetos mais consistentes, que não sejam apenas atitudes isoladas”, diz Fernando.
Calouro Humano
No Rio de Janeiro, a Uerj também organiza, desde 1997, a campanha Calouro Humano, que envolve diversas atividades de conscientização, assistencialismo e cidadania com a participação de veteranos e recém-chegados às faculdades. A iniciativa partiu da reitoria, que conseguiu a mobilização dos centros acadêmicos. Neste ano, a campanha será realizada de 1º a 5 de abril, mas a programação ainda não está fechada, como informa a coordenadora de Assuntos Estudantis, Alzira Lopes de Souza: “Faremos, nos próximos dias, reuniões com os diretórios acadêmicos, para escolher quais serão as atividades. Eles vão trazer as propostas por escrito e nós vamos ‘amarrar’ tudo. Teremos ainda as oficinas do Departamento Cultural, que serão realizadas no próprio campus”.
Informalmente, porém, alguns projetos já estão escolhidos. Os alunos da área de Saúde poderão participar de atividades de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, com distribuição de folhetos explicativos e preservativos. Os estudantes de Oceanografia deverão realizar uma manifestação ecológica pela conservação da Lagoa Rodrigo de Freitas. A Faculdade de Formação de Professores provavelmente levará seus alunos à cidade histórica de Paraty. E os alunos de Geografia pretendem conhecer um acampamento do Movimento dos Sem-Terra.
A universidade ainda procura patrocínio para a confecção de camisetas. Elas seriam distribuídas aos alunos em troca de material escolar e alimentos, que seriam doados a algumas instituições. “Seria ótimo se conseguíssemos viabilizar isso”, diz Alzira, ”porque os alunos gostam muito da idéia das camisetas e têm um interesse grande pela prática de doações”.
A coordenadora conta que o trote tradicional – em que os calouros são pintados e obrigados a pedir dinheiro aos motoristas, nas ruas – ainda é praticado, mas sua incidência diminuiu bastante depois que a campanha passou a ser realizada. E esclarece que, ao contrário daqueles, o aluno não é forçado a participar. “Quando se trata de trote solidário, ninguém é obrigado a nada. Às vezes o aluno não tem disponibilidade para viajar, por causa do trabalho, ou não quer distribuir preservativos. Então ele não vai, não faz”.
Importante para todos
Quando se fala na violência dos trotes, um dos episódios seguramente mais marcantes é o da morte do aluno de Medicina Edison Tsung Chi Hsueh, de 22 anos, cujo corpo foi encontrado dentro de uma piscina da USP, em 1999. Desde então parece ter desmoronado o que restava de indiferença em estudantes, educadores e na própria sociedade em relação à selvageria e à humilhação por vezes praticada contra os calouros. No ano seguinte, mais uma instituição aderia à proposta do trote social. A PUC-SP, por intermédio da Consultoria PUC-Júnior – empresa formada por alunos da FAE (Faculdades de Administração, Economia, Contabilidade e Atuariais) –, passou a organizar o seu Trote Solidário, com apoio da Associação Vive e Deixe Viver e do Instituto Intercultural. Neste ano as atividades serão realizadas nos dias 4 e 5 de março, no Campus Monte Alegre. Segundo os organizadores, o objetivo é transformar um dos dias mais importantes na vida do calouro em um dia importante para a sociedade.
Guilherme Rios, da Equipe de Eventos no Terceiro Setor da PUC-Júnior, afirma que a descontração é a marca do evento e que o respeito aos alunos começa já na forma de participação – os calouros são convidados, nada é imposto. “Todos os alunos são abordados por nós na entrada da universidade e recebem um folheto informativo. Hoje em dia, muitos já conhecem o Trote Solidário e vêm nos procurar com a intenção de participar. A adesão é voluntária”, explica.
Voluntária e numerosa. A cada dia da campanha, cerca de 300 alunos se envolvem nas atividades programadas. Desta vez, depois de receberem as camisetas do evento, os jovens vão organizar um Pedágio Solidário – não para arrecadar dinheiro, mas para entregar aos motoristas kits contendo saco de lixo, folhetos informativos sobre doenças e ações sociais, preservativos e uma flor. Em seguida, visitarão instituições e atuarão como voluntários. Ao final do segundo dia de atividades, os calouros são convidados para um churrasco de integração.
“Nós queremos que essa atuação social dos alunos tenha continuidade”, diz Guilherme.”Vários deles demonstram interesse em trabalhar como voluntários e nós procuramos encaminhá-los. Neste ano pretendemos unir estudantes e professores para elaborar projetos voltados para algumas instituições carentes”, revela.
Espera-se que iniciativas como essas impeçam a reprodução de barbaridades como a cometida contra Edison. E que, a partir de exemplos de cidadania e solidariedade, a palavra vingar tenha o sentido de uma semente fortalecida.
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