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De como o ‘Aedes aegypti’ reinfestou o Brasil

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

* Sergio Góes de Paula


Já imaginaram o que significa erradicar um mosquito? Eliminar todos os seus vestígios em um país com as dimensões do Brasil? São mais formas aladas, larvas e pupas do que moedas no cofre do tio Patinhas – são quaquilhões, os números da entomologia são como os da astronomia. Incontáveis criadouros, sempre se renovando, sempre se espalhando. O Aedes é essencialmente doméstico, e daí vem o perigo para as pessoas, mas estas nem sempre têm boa vontade, nem sempre facilitam o acesso dos guardas sanitários, nem sempre seguem suas recomendações – é uma trabalheira que parece não ter fim.

Mesmo assim, em 1955, o Aedes aegypti foi erradicado do Brasil, após décadas de combate – justificado pelo temor da febre amarela, doença que ficou entre nós por mais de século. Parabéns aos sanitaristas, que se aplicaram com tanta dedicação à tarefa e conseguiram um sucesso tanto mais notável quanto raro, nestas coisas de saúde pública.

E, no entanto, o mosquito voltou, jogando fora todo o trabalho feito. Quem me contou como isso aconteceu foi o Dr. Leônidas Deane, nosso maior entomologista, numa entrevista feita em 1986. Dou-lhe a palavra:

“Você sabe como ocorreu a reinfestação do aegypti? Vou contar. Em 1967 fui a Manaus. Na volta, passei por Belém. Não é só por eu ser de Belém não, mas é que sou muito ligado ao Instituto Evandro Chagas, fui seu primeiro funcionário. Então, passando por lá, encontrei um ex-aluno meu, também entomologista, o Habib Fraya, que me chamou e disse:

– Estou impressionado. Porque ontem, quando acabei meu banho, estava me enxugando, veio um mosquito picar meu joelho; vi aquele mosquito, tinha um brilho esquisito, parecido com o aegypti.

“Abriu uma caixinha e mostrou o mosquito, meio esmagado. Eu, que ando sempre com uma lente, olhei e...

– Puxa, rapaz, é aegypti mesmo! Tem certeza que é o que mataste no banho?

– Sim, senhor, também achei que parecia aegypti, pelo brilho, mas eu não podia ver porque estava muito estragado.

– Não, mas dá para ver. Dá para ver direitinho que é aegypti.

– Ótimo! Agora vou ter um aegypti em minha coleção particular.

– Certo, mas isso é muito secundário em comparação com outra coisa: o aegypti veio para cá de novo.

“Fomos procurar o Scarpa, que era médico-chefe da Sucam, ver se ele sabia de alguma coisa. Contamos o caso, mostramos o mosquito, e ele:

– Não, é impossível. Há algum engano, esse bicho não foi pego pelo Habib, é um bicho velho, da coleção do Instituto. Não pode ser, porque não existe aegypti aqui.

– Como você pode ter tanta certeza?

– Não existe porque nós temos os dois melhores guardas do Serviço de Febre Amarela, excelentes, eles é que dão treinamento ao pessoal da América Central, são eles nossos guardas para este serviço. Todas as semanas dão batidas no porto, examinam estes navios todos, canoas, pegando mosquito, fazendo o controle. Em todo caso – eu ia viajar para São Paulo no mesmo dia – eu passo um telegrama. Vou mandar fazer uma batida e lhe dou o resultado.

“Poucos dias depois, a notícia: – Confirmado. Segue carta. – E na carta dizia que tinha encontrado quatro mil focos de aegypti em Belém, dos quais três na própria sede da Sucam. Foi então investigar como tinham entrado os mosquitos. Chamou os guardas e perguntou:

– Mas como é que vocês nunca encontraram aegypti, se está cheio, como é que vocês deixaram passar, dois guardas treinadíssimos?

“E os guardas:

– Olhe, com os salários que temos, não podemos comprar óculos. (Os dois tinham mais de 60 anos, a vista péssima.) – Esse salário da Sucam não dá para a gente comprar óculos. A gente vê o mosquito, mas está tão acostumado a ser Culex fatigans que deixa passar. A gente não consegue distinguir.

E assim, pouco a pouco o mosquito se instalou outra vez, e foi se espalhando, do Norte para o Nordeste, para o Sudeste e para o Sul, numa lenta ocupação assistida e acompanhada por qualquer pessoa que se interessasse em saber. E nada se fez: há uma boa vacina contra a febre amarela, os tempos heróicos dos sanitaristas acabaram, ninguém mais tem a coragem de enfrentar um problema destas dimensões. Só que à falta de disposição para enfrentar a tarefa hercúlea se acrescentou a falta de competência: as autoridades sanitárias não tomaram conhecimento do fato de que o Aedes também transmite o dengue, resolveram não considerar que se trata de uma doença endêmica na área do Caribe, e o resultado aí está, uma epidemia anunciada e evitável, contra a qual as providências mais visíveis, até agora, têm sido esconder suas reais dimensões, acusar as autoridades de outros níveis de poder – e de outros partidos – e mobilizar as crianças das escolas de primeiro grau.

Seria patético, se não fosse trágico, se não significasse doença, dor, medo e morte. E ficamos assim: à mercê de autoridades que são extremamente cruéis em sua irresponsabilidade, dependentes de um sistema de saúde que vem sendo sistematicamente dizimado – e que nos dizima.

* Sergio Goes de Paula é historiador, pesquisador da Casa Oswaldo Cruz e sócio-fundador da Rits. Artigo originalmente publicado na revista eletrônica no..

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