Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Falar sobre questões de gênero no Brasil é falar sobre saúde da mulher, igualdade de oportunidades, inserção no mercado de trabalho, redivisão de responsabilidades no tocante a reprodução, aborto, educação infantil, macroeconomia e diversas outras questões. É o que nos mostra a pesquisadora Sonia Côrrea, coordenadora do Projeto Iniciativa Gênero – desenvovido pelo Ibase em parceria com a Rede Dawn –, membro do Comitê Nacional sobre Beijing+5 e da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento. Ela fala à Rets sobre o que tem melhorado e o que nada mudou no tratamento dispensado à mulher, desde a Conferência Mundial de 1995.
Rets - Em 95, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, foi elaborada a Plataforma de Ação Mundial, para orientar a luta por uma maior igualdade de gênero. Quais são os principais pontos acordados neste documento?
Sonia Correa - A Plataforma de Ação Mundial (PAM) é um documento muito ambicioso, que abrange diversas áreas da questão de gênero: violência contra a mulher, educação, economia (que aborda a criação de oportunidades iguais) etc. Assim, muita coisa do documento faz sentido, pois responde a demandas nas esferas mais heterogêneas e diversas. No entanto, ele é ambicioso justamente porque quer abranger tudo isso. Por exemplo: as demandas constantes na seção de educação, no Brasil, não são prioritárias. Por isso, é preciso ajustar ao caso brasileiro. Aqui, nós temos diversas particularidades. Por exemplo, a disparidade educacional pode ser a causa da violência contra a mulher. O homem que não tem argumentos verbais muitas vezes recorre à força física contra a mulher. Já para a Índia e África, a seção sobre educação é bem construída. Para o Brasil, as partes do documento que falam de direitos humanos, de saúde e da revisão da legislação punitiva ao aborto são, na minha opinião, um dos principais avanços.
No entanto, acho que tem uma falha importante na aplicação da PAM no Brasil, que é o Capítulo das Meninas. No Brasil, as definições acerca das crianças e adolescentes são feitas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas esse documento não faz menção às desigualdades entre meninos e meninas, não dá um tratamento diferenciado. Parece que há uma cegueira de gênero entre os atores e agentes que atuam com crianças e adolescentes no país. Talvez por isso não se consiga dar visibilidade ao capítulo sobre as meninas.
Rets - O que se tem conseguido implantar no Brasil e o que não sofreu nenhum progresso, na sua opinião?
Sonia Correa - Acho que um dos principais avanços foi legitimar e dar visibilidade a algumas políticas de saúde e de direitos humanos que já estavam em curso. No Brasil, a PAM acabou tendo responsabilidade pela revisão do Programa Nacional de Direitos Humanos, que acaba de ser feita. Pouco se avançou com relação a trabalho e pobreza, no tocante à macroeconomia. Chile e Honduras avançaram nesse sentido e têm propostas de orçamentos nacionais sob a luz da desigualdade de gênero. Acredito que esse déficit acontece no Brasil porque faltam mulheres economistas (com uma perspectiva feminista) e mulheres em posição de decisão. Os debates sobre o Fundo de Pobreza – que tiveram bastante destaque no Congresso e na mídia – não ampliaram a discussão sobre o acesso à educação infantil (até 6 anos), que é fundamental para liberar as mulheres da tarefa de reprodução. Se mais crianças tiverem acesso à educação, a mulher tem mais disponibilidade para trabalhar, ganhando maior autonomia econômica e social. Além disso, o sistema educacional é majoritariamente feminino, existe uma imensa maioria de professoras mulheres. Portanto, quando se investe em educação infantil de 0 a 6 anos, investe-se também em geração de emprego para a mulher.
Rets - Em um ano eleitoral, algumas organizações feministas pretendem se articular para construir uma plataforma política de ação. O que a senhora pensa sobre essa idéia e até que ponto pode surtir efeito?
Sonia Correa - Sei que existe um grupo de mulheres - a Articulação de Mulheres Brasileiras - que está trabalhando para a construção de uma plataforma com propostas políticas. Porém, não estou muito envolvida com essa questão, portanto não posso falar com propriedade sobre o estado do debate e prefiro não opinar sobre o assunto. Posso apenas dizer que acredito que pode surtir efeito, dependendo da estratégia adotada.
Além disso, nessas eleições, a situação já está diferente. Foi feita uma pesquisa pela Vox Populi há pouco tempo em que uma parcela significativa do eleitorado – não me lembro exatamente a porcentagem – afirmava que pretendia votar em uma mulher nas próximas eleições. Outro ponto é o fato de uma mulher ser candidata à Presidência, com chances grandes. Nesse cenário, acho que ações e projetos que envolvam a questão de gênero vão ter outra visibilidade, outra repercussão.
Rets - A senhora defende que há uma relação muito estreita entre reprodução e conseqüências econômico-sociais, muito mais do que implicações morais, jurídicas ou de saúde. A senhora poderia explicar seu ponto de vista?
Sonia Correa - Toda sociedade existe porque existem pessoas. Pessoas só existem porque nascem (sem considerar as novas técnicas de clonagem). E a reprodução biológica está intimamente ligada às relações de gênero, à sexualidade. As mulheres terem mais ou menos filhos tem impacto sobre a economia e sobre a sociedade. No entanto, as pessoas tendem a pensar a reprodução como um fato privado. Mas não é. A decisão da reprodução é, sim, um fato privado, mas tem repercussões sociais. Compreender isso é importantíssimo para a elaboração de políticas sociais e econômicas. Por exemplo, demógrafos têm apontado que a sociedade brasileira está próxima do nível de reposição de fecundidade (Esse nível é igual a 2. Ou seja, a prática tem sido o nascimento de dois filhos por casal. Duas pessoas substituindo outras duas pessoas. Isso é a reposição). Isso tem conseqüências no mercado de trabalho e na previdência social, entre outros. Se nascer menos gente do que o número que já existia, em pouco tempo haverá mais pessoas fora do mercado de trabalho, dependendo do trabalho da população economicamente ativa. Essa é uma das implicações sociais e econômicas da reprodução. Discute-se se esse nível de fecundidade irá aumentar. Sou pessimista a ponto de acreditar que não. Primeiro porque acho que a mulher brasileira não vai ter mais filhos do que é hoje o padrão de duas crianças, se o homem não se responsabilizar igualmente pela criação dos filhos. Isso passa por uma mudança nas relações de gênero. Segundo, porque é difícil reverter a tendência que já vem há décadas se desenhando, que é a esterilização cada vez maior das mulheres. Por que as mulheres, cada vez mais jovens, recorrem à esterilização? Esteriliza-se porque o aborto é ilegal. O modo que elas encontram de se prevenir de uma gravidez indesejada é fazer a esterilização. É uma decisão racional das mulheres, inclusive. Mas, se houver mais mulheres estéreis, as conseqüências socioeconômicas de que falamos vão ser inevitáveis.
Rets - Ainda em relação às conseqüências socioeconômicas do controle reprodutivo, a senhora defende que direitos como o aborto seriam de interesse de toda a sociedade. Nesse sentido, o debate sobre estas questões tem chegado à sociedade e esta compreende a dimensão da questão?
Sonia Correa - Vivemos um curioso paradoxo quanto à situação do aborto no Brasil. A estimativa (não temos dados oficiais, uma vez que a prática é ilegal) é de que são feitos 600 mil abortos anualmente. É um número significativo, revelando que é uma prática extensiva, em todas as classes sociais. O número de abortos vem caindo, devido ao uso maior de anticoncepcionais e ao aumento da esterilização. Mesmo assim, é uma prática corrente. E eu não acho que exista uma discriminação social, as pessoas não discriminam as mulheres dos seus círculos de relacionamento que realizaram um aborto. Se elas buscam os serviços públicos de saúde, aí sim são maltratadas. Mas as pessoas normalmente não discriminam. Eu vejo aí, então, uma contradição: a posição pública dos órgãos e a prática social. Além disso, a sociedade brasileira valoriza muito a sexualidade, nós nos consideramos um povo sensual, expomos o corpo etc. De novo um paradoxo: como que uma sociedade que valoriza tanto a sexualidade não discute mais questões como o aborto, que é uma conseqüência possível dessa mesma sexualidade? A sociedade brasileira tem que resolver esse paradoxo. Ou bem cultua a sexualidade, ou bem não cultua a sexualidade.
Rets - Recentes acontecimentos lançaram mais luz sobre o tratamento dispensado às mulheres em países de cultura árabe. A reação imediata dos países ocidentais é de querer mudar completamente a situação das mulheres de lá. No entanto, até que ponto a cultura do ocidente pode interferir nas relações de gênero no oriente e até que ponto deve respeitar?
Sonia Correa - Esse tem sido o grande debate de direitos humanos na última década. Minha opinião é a de que o reconhecimento da diversidade cultural não deveria significar que fôssemos complacentes com práticas que são inaceitáveis. Por mais que as culturas sejam diferentes, há uma humanidade comum. Nada justifica a prática da mutilação sexual feminina, assim como nada justifica a tortura. É curioso que a mutilação sexual feminina não produza a mesma indignação que existe quando se fala de torturas. Por que isso acontece? Na minha opinião, é justamente porque isso é feito com as mulheres. Se a mutilação fosse feita nos homens, tenho certeza de que as reações seriam diferentes. É surpreendente que só recentemente começou-se a questionar essa prática. Não entendo por que os argumentos do relativismo cultural são usados em questões como essa, que fere só a mulher, e não em outras como a tortura. É preciso, portanto, reconhecer que a mutilação sexual da mulher é uma prática inaceitável, como qualquer tortura.
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