Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Era o dia 8 de março de 1857. Em greve por salários iguais aos dos colegas homens e pela redução da jornada de trabalho, que chegava a 16 horas diárias, 129 funcionárias de uma indústria têxtil de Nova York decidem pela greve. Os patrões, inconformados, trancam as portas e incendeiam a fábrica, matando todas as mulheres. Mais de cinqüenta anos depois, em 1910, a data seria oficializada – durante o primeiro Congresso Internacional da Mulher, na Dinamarca – para simbolizar a luta feminista, que hoje, neste início de século – e muitas conquistas depois – ainda está longe de terminar.
“Com certeza, ainda falta muito”, afirma Guacira de Oliveira, secretária-executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). “Hoje o movimento de mulheres é muito forte, consegue colocar suas lutas na ordem do dia, mas isso não significa que tudo seja contemplado”. A AMB, juntamente com outras nove entidades, está organizando uma forte mobilização em torno da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, que será realizada nos dias 6 e 7 de junho, em Brasília, com o propósito de elaborar uma pauta com propostas para o país. “Queremos falar de segurança pública, do estado de violência em que vivemos e do que isso significa para as relações de gênero. Da mesma forma em relação à dívida externa e à redução de investimentos sociais”, exemplifica, justificando que é sobre a mulher que recai o ônus social das políticas públicas. “Em geral, são as mulheres que têm de levar a família ao hospital ou que têm de cuidar das crianças quando não existe creche”.
A poucos meses do evento, o lançamento de uma base de dados com indicadores de gênero pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – desenvolvida pela Fundação Seade-SP – oferece uma contribuição significativa para o debate. As informações estão disponíveis para consulta na internet (veja link para a página do CNDM, ao lado). A base de dados reúne indicadores sociais de praticamente toda a década de 90, provenientes de fontes diversas, referentes a trabalho, educação, saúde e direitos reprodutivos, violência e demografia, sempre divididos por estados e regiões.
Na nota em que divulga o lançamento desses indicadores, Wânia Sant’Anna, da AMB e do CNDM, explica que a iniciativa tomou como referência o projeto “Uso de Indicadores de Gênero em Políticas Públicas”, desenvolvido pela Unidade Mulher e Desenvolvimento e pela Divisão de Estatísticas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que tem como propósito “fortalecer a capacidade dos países latino-americanos para utilizar os indicadores de gênero no desenho de políticas públicas”.
A expectativa do CNDM é que a sistematização desses indicadores sociais colabore com uma melhor compreensão da realidade da mulher brasileira e dos seus problemas específicos. “O país é desigual, e essas desigualdades se sustentam sob diferentes formas de discriminação”, comenta Guacira. “Se hoje as mulheres conseguem ocupar espaços que não ocupariam há alguns anos, existe ainda uma dificuldade terrível para quem está nas camadas mais baixas da sociedade”.
Um exemplo dessas desigualdades é o baixo percentual de mulheres em cargos executivos. De acordo com recente pesquisa do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, apenas 6% dos cargos executivos nas empresas brasileiras são ocupados por mulheres – ao passo que, pelo Censo 2000, a população feminina é hoje ligeiramente superior à masculina. Já no ensino superior, as mulheres são responsáveis por 51% das matrículas universitárias. No entanto, afirma, Guacira, a grande maioria é branca, de classe média ou alta. “Essa estrutura de desigualdade tem de ser enfrentada”, reclama.
Elisabete Aparecida Pinto, coordenadora da área de Pesquisa da organização Fala Preta!, atesta que existe uma dificuldade para a mulher negra ocupar espaços de poder – como a universidade e a política. “Ainda é muito difícil a entrada de uma mulher negra em uma faculdade. E ainda, depois de terem acesso a ela, existe a dificuldade de continuarem a ver a realidade sob a sua perspectiva”. Para ela, o Brasil tem a capacidade de criar esquizofrênicos: “O Estado não se assume como racista, mas as pessoas esbarram no racismo em vários momentos”. Elisabete admite que a luta da mulher, ao longo dos anos, resultou em uma série de conquistas, mas acha que ainda é preciso buscar reconhecimento. E, mais do que isso, assumir que a luta principal é a mesma de todos – pela cidadania. “Vai além dos interesses estratégicos ou da busca de igualdade. É pelo direito à vida: por acesso a saúde, saneamento, tratamento digno e paz”.
Presidente do Centro de Liderança da Mulher (Celim), Rosiska Darcy de Oliveira considera fundamental a formulação de uma pauta de reivindicações, mas vê com ceticismo a incorporação dessas propostas pelos futuros candidatos a cargos públicos nas eleições deste ano. “O papel das articulações das organizações de mulheres tem sempre uma grande importância. Mas não sei se ainda acredito muito em plataformas, tampouco em uma suposta aceitação delas pelos candidatos. Mas esses encontros são importantes para a mobilização da sociedade e para a clarificação de idéias e objetivos. Confesso que aposto mais, hoje, no trabalho das próprias mulheres do que nas doutrinas políticas de gênero dos governos. Enfim, sempre há uma esperança”, anima-se. “Vale a pena tentar”.
Rosiska destaca a maior presença feminina nos espaços públicos, atualmente. Mas lamenta que alguns problemas ainda persistam. Entre esses problemas figuram a violência, a diferença salarial em relação aos homens e a sobrecarga de trabalho. Para ela, as mulheres, ao decidirem sair para trabalhar, acabaram caindo em uma armadilha. “Entraram no mercado de trabalho sob uma tal suspeita de transgressão que não ousaram, não puderam ou não souberam negociar o tempo que dedicam à vida privada. Precisamos de uma ‘reengenharia do tempo’”, afirma. E explica: é preciso que se levem em conta, na relação entre o trabalho e a família, valores como a responsabilidade dos pais com os filhos, o lazer e “o espaço interior necessário à construção de si”. Em artigo publicado no boletim do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), Rosiska acrescenta: “O mundo público foi invadido pelas mulheres, mas seu tempo continuou estruturado como se nada tivesse acontecido. O mesmo aconteceu na vida privada. Persistiu um grande mal-entendido na relação homem-mulher. (...) o papel feminino mudou sem que o masculino fosse fundamentalmente afetado. (...) Definiu-se como mundo igualitário aquele em que as mulheres teriam ‘apenas’ que continuar a ser as mesmas de sempre, acrescentando às suas vidas vivências até então reservadas aos homens”.
Rosiska recorda as resoluções da Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1995, em Pequim, e classifica a Plataforma de Ação Mundial, ali produzida, como um documento admirável. No Brasil, essas propostas foram traduzidas no Estatuto da Igualdade, que estabeleceu políticas públicas voltadas para a redução da discriminação de gênero, entre elas a igualdade de oportunidades em cargos públicos, a prioridade nos planos de compra da casa própria, a elaboração de um plano nacional de combate à violência contra a mulher, a abertura de 30% de vagas para cursos de capacitação no Ministério do Trabalho e uma campanha nacional de combate ao câncer uterino. Conquistas, sem dúvida, mas há quem esteja preocupado com o retrocesso.
Nilze Costa e Silva, presidente do Fórum de Mulheres Cearenses e também membro da AMB, teme a perda de direitos duramente conquistados com a possibilidade de alteração do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo Projeto de Lei Nº 5.483/2001, enviado pelo Executivo Federal. O texto, atualmente sendo examinado pelo Senado, prevê que “condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevaleçam sobre o disposto em lei”. Nilze revela-se preocupada com a manutenção dos direitos trabalhistas e previdenciários e manifesta-se, particularmente, contra possíveis ameaças à licença-maternidade. “É uma conquista da humanidade, não das mulheres, e tem que ser entendida como uma função social”.
A indignação chega também às trabalhadoras rurais, que procuram se mobilizar contra a possível ameaça a direitos como férias e 13º salário. Raimunda Celestina de Mascena, coordenadora da Comissão Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), diz que a entidade procura trabalhar com a auto-organização em sindicatos e federações, procurando o efetivo reconhecimento das trabalhadoras rurais. “Tentamos promover o empoderamento desses grupos e organizar a produção. A subordinação de gênero deve ser levada em conta como uma opressão à cidadania. As mulheres são duplamente oprimidas: em casa e pelo patrão”, argumenta. Dessa vez, a Contag não vai repetir a Marcha das Margaridas, realizada no ano passado, justamente no dia 8 de março. Margaridas foi o nome adotado pelas trabalhadoras do campo, numa homenagem à memória da líder sindical Margarida Maria Alves, assassiada em 1983, no interior da Paraíba, a mando de um grupo de fazendeiros da região – um crime ainda impune. A marcha já está, de antemão, programada para 2003. Para marcar o Dia Internacional da Mulher deste ano, porém, a Contag preparou o lançamento da sua revista, que, neste primeiro número, vai contar a história dos movimentos rurais de mulheres no Brasil. “É uma cartilha com a perspectiva feminina de atuação rural”, diz Raimunda. “E já é o primeiro momento de mobilização em torno da próxima marcha”.
A violência que vitimou Margarida Alves ainda não é incomum – particularmente no Nordeste brasileiro, e mais ainda no interior. Nilze Costa e Silva considera o homem nordestino ainda muito machista. E os casos de agressões se repetem. Se a violência é uma das principais questões abordadas pela Federação das Mulheres Cearenses, a prostituição não fica muito atrás. “Isso nos preocupa muito, principalmente porque, em alguns casos, conta com a conivência da família e da sociedade, que deveriam estar protegendo essas meninas”. Nilze reclama da falta de investimentos para controlar o problema. “O Estado preocupa-se com o desenvolvimento turístico, mas não dá a mesma atenção ao problema da prostituição”, revolta-se.
No próximo dia 8 de março, as mulheres cearenses pretendem fazer um acampamento em frente à Faculdade de Direito de Fortaleza, com a participação de trabalhadoras rurais e representantes de vários estados nordestinos. Durante todo o dia, serão realizadas oficinas e debates. E um dos principais temas será exatamente a degradação e a prostituição.
Antes disso, nos dias 6 e 7, em São Paulo, o Conselho Estadual da Condição Feminina realiza o evento “Novas tecnologias e valores humanos: a relação étnica e de gênero no milênio”, que pretende discutir a inserção da mulher no processo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro a partir do domínio das inovações tecnológicas, eliminando fronteiras e gênero e raça. Estarão participando, como debatedoras, Edna Roland (da organização Fala Preta!), Mariana Zats (coordenadora do Projeto Genoma) e Flávia Rodrigues (da organização internacional Brahma Kumaris), entre outras personalidades.
No Rio de Janeiro, o Celim, o Iets e o Conselho Empresarial de Responsabilidade Social do Sistema Firhan, vão realizar o III Fórum de Liderança Feminina –“Homens e Mulheres: as revoluções invisíveis”, na sede da Firjan. A partir das 9 horas e ao longo do dia, Rosiska Darcy de Oliveira, Luiz Chor (presidente do Conselho Empresarial de Responsabilidade Social do Sistema Firjan), Ricardo Henriques (secretário- geral do Iets), Barbara Musumeci (pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), Wânia Sant'Anna, André Urani (presidente do Conselho de Administração do Iets) e o jornalista George Vidor estarão participando de debates.
Também no Rio, um grupo formado por cerca de 40 entidades fará uma manifestação no Centro da cidade, no dia 8. Na Cinelândia, a partir das 10 horas, o Cemina estará presente com a rádio móvel Fala Mulher. Haverá também barracas das organizações participantes. O outro ponto de encontro é na Candelária, de onde partirá uma caminhada (com concentração às 16 horas). O tema será "Violação dos direitos humanos das mulheres como uma violência aos direitos de cidadania". Ao longo do percurso pela Av. Rio Branco com destino à Cinelândia, as mulheres farão uma troca simbólica dos nomes das ruas por que passarem, homenageando mulheres que tiveram atuação destacada na cidade do Rio. Ao final da caminhada, será lido um manifesto.
Em todo o Brasil, eventos se sucederão para comemorar a data, reivindicar, celebrar e expor a diversidade de visões, atitudes e propostas relacionadas à questão de gênero. O feminismo é plural. Mas todos os caminhos levam ao respeito e à cidadania
Fausto Rêgo
Colaborou Maria Eduarda Mattar
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