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As desrespeitadas APPs

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

Liana John*


Nesta semana, dois eventos trataram de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e ambos demonstram a cegueira da administração pública e mesmo de várias organizações da sociedade civil sobre sua importância.


Na terça feira, os membros do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), reunidos extraordinariamente em Brasília, não conseguiram chegar a um consenso sobre os limites das APPs na legislação federal e a discussão foi adiada para março. Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin enviou à Assembléia Legislativa seu projeto para modificar a Lei de Proteção aos Mananciais, que pretende regularizar as atuais ocupações nas margens das represas Guarapiranga e Billings, através da compra de outras áreas verdes, na mesma sub-bacia, a título de compensação.


No Conama, representantes dos setores agrícola e energético pressionam para mudar os limites das APPs nas margens de reservatórios e cursos d´água. Para a agricultura, a obrigatoriedade de preservar estas APPs é considerada perda econômica, porque a faixa de vegetação nativa diminui a área agricultável e atrapalha atividades, que dependem da proximidade da água, como culturas de arroz irrigado, suinocultura, aquicultura, etc. Para as concessionárias de energia, as APPs são um estorvo desde que a chamada Medida Provisória do Código Florestal transferiu, dos proprietários privados vizinhos aos reservatórios para as empresas, a responsabilidade de cuidar da vegetação (uma vez que são as concessionárias que obtém vantagem econômica dos reservatórios).


Confirmando o dito popular "o pior cego é o que não quer ver", nem produtores agrícolas nem concessionárias de energia reconhecem a função primordial das APPs, que é proteger a qualidade da água, usada por eles mesmos, além de toda a população das bacias hidrográficas às quais tais rios ou reservatórios pertencem. Sem matas ciliares, sem qualquer vegetação nativa nas margens, os rios recebem cargas absurdas de solo, carreado pelas chuvas, freqüentemente contaminado por agrotóxicos e outros poluentes, químicos ou orgânicos. E este assoreamento vai refletir na quantidade e qualidade da água de abastecimento e na produção de energia, como bem demonstrou a crise do apagão, cujas lições todos parecem já apagar da memória tão logo acendem as luzes do fim do racionamento.


É claro que é difícil preservar uma faixa de vegetação nativa, aparentemente "inútil", quando a competitividade exige o aproveitamento integral das áreas agrícolas ou quando seria tão mais fácil instalar aviários, pocilgas, currais e tanques na beira dos rios. É evidente que a redução do tamanho das faixas de vegetação em torno de reservatórios aliviaria a planilha de custos das concessionárias de energia. Mas a lógica econômica não é ecológica. Os ecossistemas tem sua própria lógica e sua capacidade de reter terra em enxurradas ou filtrar naturalmente pelo menos parte dos contaminantes não pode ser alterada por decreto, nem por lei, nem por medida provisória ou qualquer outra invenção humana.


E assim é também nas áreas urbanas, onde o homem tem a errônea impressão de dominar o território. Mesmo inseridos em meio a prédios, avenidas, estações de bombeamento e elevação ou confinados em canais retificados, os rios continuam rios e a chuva continua chuva. E ambos seguem a lógica da natureza, não as legislações do homem. Se um bairro, uma favela ou uma avenida se instalam nas várzeas de um rio, eles serão inundados na estação das chuvas. Não há apelo social ou eleitoreiro, que mude esta realidade. Por isso, as várzeas são APPs: porque são impróprias para ocupação.


E se as administrações públicas fecham os olhos à esta lógica porque o mal já está feito, porque é mais fácil urbanizar e depois declarar estado de calamidade, quem acaba pagando o ônus desta irresponsabilidade é a sociedade. E paga com vidas, com a sobrecarga dos sistemas de saúde pública, com a falta d´água, com a falta de energia, com o transtorno das enchentes urbanas.


Em São Paulo, segundo os últimos dados regionais do censo disponíveis (de 1996), existem pelo menos 650 mil pessoas vivendo nas margens da represa do Guarapiranga. É uma cidade inteira, que já está lá, empilhada sobre as vertentes do reservatório, ocupando Áreas de Preservação Permanente, jogando lixo e esgotos in natura diretamente na água. A lei do governador Alckmin quer fazer acordos de compensação ambiental com esta população, trocando o direto de permanecer ali por áreas verdes na mesma sub-bacia, porque "essas famílias, mesmo de forma irregular, construíram um lar e retirá-las teria um custo social muito elevado. A regularização da forma como está sendo proposta é menos traumática, resultando do envolvimento da própria população na questão da preservação e manutenção da qualidade e quantidade de água", como declarou seu representante, José Antônio Nunes.


Supondo, com extremo otimismo, que os acordos vinguem e existam áreas verdes para a compensação na mesma sub-bacia, ainda resta saber como a administração pública vai revogar a lei da gravidade, que faz as enxurradas (e tudo o que elas carregam) correrem para baixo e, sem a proteção da vegetação, para dentro do reservatório de onde sai a água de beber de 3,8 milhões de paulistanos.


Sem dúvida o custo social da retirada destas famílias é alto, altíssimo. Mas o custo ambiental também é. A diferença é que o custo ambiental é difuso, não reflete nas eleições, nem grita nas TVs, embora afete muito mais gente.


* Liana John é jornalista, editora de Ciência e Meio Ambiente da Agência Estado.


Esta matéria foi publicada originalmente no site da Agência Estado.


Para entender melhor este tema, faça aqui o download da proposta de Resolução do Conama que dispõe sobre limites e conceito de APPs da proposta de Resolução que trata dos parâmetros das Áreas de Preservação Permanente de Reservatório artificial e regime de uso e ocupação do seu entorno.

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