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As perguntas que não querem calar

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor






Bornal de Jogos




A roda, símbolo da instituição

"Nascemos para responder perguntas". Essa é uma explicação precisa sobre o que faz o Centro de Cultura e Desenvolvimento, verbalizada por seu idealizador, Tião Rocha. A instituição floresceu em 1984, quando o então antropólogo e professor universitário mineiro, Tião Rocha, decidiu que queria ser educador e não professor. Pediu demissão da faculdade em que lecionava e partiu para a luta, munido de uma lista de não-objetivos e a vontade de procurar resposta à seguinte pergunta, a primeira da história da instituição: é possível haver educação sem escola? Depois de dezoito anos, mais de dez projetos desenvolvidos, pedagogias e tecnologias próprias, a resposta, apesar de óbvia, já nem importa mais.


A atuação da instituição é simples e se assemelha às propostas de Paulo Freire: utilizar a cultura e o universo de significações da pessoa - os objetos, o folclore, o vocabulário de seu contidiano - para educar, "entendendo a cultura enquanto os fazeres, quereres e saberes do indivíduo", esclarece o antropólogo. Partindo de projetos simples, o CPCD conseguiu promover pequenas revoluções nas comunidades em que atua, criou metodologias próprias - como as pedagogias da Roda, do Sabão e do Brinquedo.


A primeira delas, a da Roda, é a base do modo de Educação exercido pelo CPCD. Partindo do princípio de que a formação de pessoas em círculo permite que todos vejam e interajam uns com os outros, a Pedagogia da Roda pretende fazer com que o aprendizado flua naturalmente, a partir da troca de experiências entre os participantes. Essa pedagogia surgiu logo no início da ONG, junto com o seu primeiro projeto, o Sementinha, que abrange a a pré-alfabetização de crianças de até seis anos e a interação escola-família-comunidade. O lugar para que esse aprendizado aconteça? Todos. “Educação só acontece no plural. Para a educação acontecer só é preciso ter gente. O resto é alegoria e adereço”, opina Tião. Quem são os educadores? Todos - mães, professores, líderes comunitários - bastando que o CPCD conceda uma capacitação para dotar os educadores - muitos deles voluntários - dos preceitos do Sementnha, que começou em Curvelo, cidade laboratório de quase todas as ações da organização. Esses, aliás, são princípios que norteiam não só o Sementinha, mas todos os projetos da família CPCD. Desse modo, cada projeto pode ser classificado como uma escola andarilha, podendo acontecer em casas, clubes, pastos, em qualquer lugar.


O Sementinha, depois de plantado, cresceu e rendeu frutos: expandiu-se para a cidade mineira de Araçuaí - onde há hoje 23 unidades do projeto, sendo 10 na zona urbana e 13 na rural, atendendo 370 crianças. Chegou também à baiana cidade de Porto Seguro, a convite da Prefeitura Municipal, atendendo um total de 148 crianças das comunidades do Mercado do Povo I e II e do bairro Paraguai. Além disso, já nos idos de 1987, foi considerado "exemplo de modelo educacional para os países do 3º Mundo" pela Organização Mundial de Educação Pré-Escolar.


Logo em seguida, quase como uma continuação do Sementinha, apareceu em 1989 o Ser Criança, que também pode ser chamado de Brinquedoteca. Destinado a crianças e adolescentes de 07 a 14 anos, o projeto acontece em horários complementares aos da escola formal e em espaços comunitários, com o objetivo de garantir oportunidades de educação integral para crianças e jovens em situação de risco social. Em 95, o Ser Criança ganhou o 1º lugar no Concurso Prêmio Itaú/Unicef -"Educação & Participação", entre 406 concorrentes de todo o país.


Estas duas experiências geraram mais uma pergunta-desafio para o CPCD: "É possível fazer educação só como prazer?" Na procura de resposta, começou a ser criado o Bornal de Jogos (foto), uma das tecnologias educacionais desenvolvidas pela instituição. Trata-se de vários jogos lúdicos e brinquedos artesanais, feitos de sucata, que servem como instrumento para passar noções de matemática, português, conhecimentos gerais, entre outras. É a aplicação da Pedagogia do Brinquedo. O Bornal é composto por 30 jogos de matemática, 15 de língua portuguesa, 15 de conhecimentos gerais, 15 de estimulação e 15 para multi-uso. Um exemplo é a Damática, adaptação do jogo de Damas para o ensino das quatro operações básicas de matemática.


Os jogos deste conjunto são um extrato de um total de 164 que foram criados ou adaptados pela instituição. "Estes 90 foram testados exaustivamente por educadores e crianças. Todos necessariamente tiveram nota acima de 7, sendo que a maioria ficou acima de 8,5", conta Tião. O Bornal começou a ser utilizado em Araçuaí e logo foi adotado em Santo André (SP) por toda a rede municipal de ensino. O projeto ganhou notoriedade também fora do Brasil e foi fazer brincar do outro lado do Atlântico: em Moçambique, onde o invento vinha sendo usado em caráter experimental. Tião participará em maio de uma reunião para tornar o Bornal política nacional de educação daquele país.


Uma extensão desta primeira experiência é o Bornal de Jogos da Paz, que também surgiu em Araçuaí e consiste na aplicação dos jogos para ensino e discussão sobre ética, cidadania, sexualidade e temas relacionados, a fim de construir consciência de cidadania e paz nas escolas. Para isso, o Projeto oferece dez oficinas de confecção e utilização de jogos, para capacitação dos professores das escolas públicas. Ao todo, mais de seis mil alunos de Araçuaí estão sendo ou serão beneficiados.

Se os projetos Sementinha, Ser Criança, Bornal de Jogos e Bornal de Jogos da Paz respondem às necessidades educativas identificadas pelo CPCD, utilizando a cultura própria dos educandos, os projetos Fabriquetas e Cooperativa Dedo de Gente respondem às necessidades de trabalho e geração de renda, entendendo a cultura também enquanto matéria-prima de desenvolvimento. A primeira das fabriquetas (ou núcleos de produção de tecnologias populares) foi para manufatura de sabão, fazendo nascer junto a Pedagogia do Sabão. Aos poucos foi iniciada a produção de diversos outros produtos de fácil aprendizado e confecção, criando oportunidades de trabalho a partir "dos saberes, fazeres, soluções e alternativas comunitárias" e gerando rendas para jovens e, principalmente, mulheres. Hoje em dia, são fabricados doces cristalizados, geléias, compostas, licores, embalagens, bornais, brinquedos, adornos de ferro e madeira, cestas e cerâmica. De acordo com o relatório de atividades do projeto, elaborado no meio de 2001, participavam das fabriquetas naquela época um total de 21 pessoas, divididas em 6 unidades de produção.


Dentro do projeto já foram criadas 1.700 tecnologias populares de produção, todas com a utilização de elementos típicos da região do Vale do Jequitinhonha, onde funcionam as fabriquetas. Por exemplo: frutas nativas do Cerrado (pequi, araticum, jenipapo, cagaita, umbu etc) dão origem a compotas, licores e geléias. Casca de pinus e aparas de madeira rendem cestas e os mais diversos objetos artesanais. Restos de rodas de trator ganham formas de castiçais e fruteiras. Terra de formigueiro é a base da tinta que pinta muitas das embalagens. E por aí vai. Mas, como comercializar ordenadamente os produtos das fabriquetas? A cooperativa Dedo de Gente nasceu justamente para responder a essa pergunta. Sediada no número 65 da Praça do Santuário, em Curvelo e dirigida por jovens, a Dedo de Gente reúne e vende a produção das fabriquetas.


A mobilização comunitária também é objeto de mais três projetos do CPCD: Agentes Comunitários de Educação (ACE), Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Polícia Solidária. O primeiro é quase uma reciclagem de pessoas, na medida em que encontra nova função social para recrutas dos Tiros de Guerra. Estes são unidades do Exército, existentes somente nas cidades com mais de cem mil habitantes onde não existem quartéis militares. Os recrutas normalmente passam cerca de dez meses nesta unidades, segundo Tião, "aprendendo um monte de besteiras, como atirar, se embrenhar na selva etc". O coordenador do CPCD viu que o tempo livre dos rapazes poderia ser aproveitado, capacitando os voluntários para atuarem protagonicamente na comunidade. A proposta foi feita à direção do Tiro de Guerra de Curvelo e lá nasceu a primeira unidade dos Agentes Comunitários de Educação. Gradativamente, novas unidades estão aderindo e o projeto já está presente também em Divino, Governador Valadares, Jequitinhonha, Varginha e Poços de Caldas, no estado de Minas Gerais; e Codó, no Maranhão. A meta é, em dez anos, atingir os 235 Tiros de Guerra do país, envolvendo um potencial de mais de 27 mil jovens.


"Os jovens que se tornam agentes comunitários de educação acabam ganhando uma importância maior dentro da comunidade e isso faz bem a eles, pois se vêem úteis e agentes de multiplicaçao de conceitos de ética e cidadania", comenta Tião. As turmas de agentes já criaram coisas novas, como o Dia da Solidariedade, envolvendo toda a comunidade, e o Banco do Livro, que funciona como um banco normal, em que as pessoas depositam e retiram livros.


Projeto semelhante, porém com outro foco, é o Agentes Comunitários de Saúde, realizado em parceria com o Governo do Estado do Maranhão. A intenção é capacitar os agentes regulares da Secretaria Estadual para atuarem como educadores sociais de crianças, adolescentes e adultos e como agentes de desenvolvimento comunitário de saúde. O estado estava passando por uma experiênca em que o número de agentes aumentava, porém os resultados não cresciam na mesma proporção. Os 8 mil agentes envolvidos no projeto passam por uma revisão de conceitos e são treinados para ver seu trabalho não sob a ótica da doença e, sim, pela ótica do educador em saúde. "Normalmente, os agentes faziam as visitas para passar receitas e não para aprender e instruir as mães a cuidarem da saúde de suas famílias", indigna-se Tião. Segundo ele, esse projeto foi implementado também no sul da Bahia, com o cunho um pouco mudado, mais voltado para a inclusão social.


Finalmente, o projeto Polícia Solidária é mais uma forma de criar interação entre um determinado grupo e a comunidade. Desenvolvido em Belo Horizonte, tem como parceiros a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, a Polícia Militar e o Bombeiro Militar de Minas Gerais. Os cadetes - alunos da Academia da Polícia Militar e do Bombeiro Militar - são treinados a se relacionar com a comunidade com olhar de educador, além do de policial. "Posteriormente, a idéia é envolver nessas oficinas - de duração total de 40 horas - os praças (policiais que atuam diretamente na rua) e os próprios oficiais professores da Academia", falou Tião Rocha, já se preparando para recepcionar a diretora da Área Social do BNDES, Beatriz Azevedo, que visitará esta semana o escritório curvelano do CPCD. Além de iniciativas bem encaminhas e métodos originais, a representante vai encontrar por lá pessoas que enxergam um copo meio cheio e não se cansam de fazer perguntas.


Maria Eduarda Mattar

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