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Crime contra o futuro

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Estudo sobre o envolvimento de crianças e adolescentes no tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no dia 1º de março mostra que, em relação à década passada, os jovens estão chegando mais cedo ao crime organizado. O trabalho (disponível para download apenas em inglês) foi realizado pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) em 52 favelas do município e faz parte de uma análise mais ampla da situação mundial em relação àquelas que são consideradas as piores formas de exploração infanto-juvenil – como prostituição, soldados mirins, tráfico de drogas, trabalhos forçados e lixões.


Realizado em 19 países e em uma zona de fronteira, o estudo dedica-se a fazer análises ao mesmo tempo rápidas e precisas a partir de uma metodologia conhecida como rapid assessment (diagnóstico ligeiro), desenvolvida em conjunto pela OIT e pelo Unicef. Ao grupo formado por Brasil, Tailândia, Filipinas e Estônia coube pesquisar o envolvimento infanto-juvenil no tráfico de drogas.


A OIT tem uma estimativa impressionante, que seria baseada em estatísticas oficiais obtidas em diversos países, segundo a qual existiriam aproximadamente 250 milhões de crianças trabalhando em todo o mundo. Pedro Américo de Oliveira, coordenador no Brasil do Programa Nacional de Combate ao Trabalho Infantil da OIT, acredita que o número pode ser ainda maior. “Os dados estatísticos camuflam muita coisa”, diz. “É difícil saber quantas crianças são exploradas sexualmente, submetidas a trabalhos forçados ou empregadas pelo tráfico”.


Ao comentar a pesquisa realizada no Rio de Janeiro, Oliveira revela que a grande preocupação da entidade é com a efetiva implementação no Brasil das convenções de números 132 e 182 e da recomendação nº 190, que estabelecem normas e compromissos para a erradicação do trabalho infantil. “As convenções obrigam os países a cumprirem essas determinações, e o Brasil já as ratificou”, diz ele. “Nosso papel é contribuir para que se encontrem saídas”.


Oliveira afirma que o estudo é simples, sem a pretensão de tornar-se um trabalho acadêmico, mas realizado de forma a não produzir resultados generalizados. A idéia, explica, é permitir um levantamento da situação, motivando governo e sociedade a pensarem em formas de combate ao problema. “No país, há muitos estudos sobre criminalidade, mas poucos com esse enfoque. Nós pretendemos fomentar outros estudos – de universidades, secretarias de governo e outras organizações –, mas sempre dentro da perspectiva de combate ao trabalho infantil, particularmente essas formas ‘invisíveis’, como o tráfico”, diz o coordenador da OIT, destacando a atuação do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, que congrega empresas, organizações governamentais e não-governamentais.


Embora ressalvando não ter tido então a oportunidade de ler a íntegra do trabalho encomendado pela OIT ao IETS, Allison Sutton, oficial de Projetos do Unicef no Brasil, na área de Direitos da Criança, garantiu que a entidade vem acompanhando o problema das piores formas de trabalho infantil. O tema estará na pauta da Sessão Especial sobre a Criança que a Assembléia Geral das Nações Unidas vai realizar de 8 a 10 de maio. “Estamos fazendo esse acompanhamento dentro do contexto do Fórum, que formou um grupo de trabalho para verificar quais os problemas existentes e que mecanismos e políticas poderiam ser usados para retirar crianças desse mercado. O estudo da OIT dá algumas pistas de possíveis temas que precisam ser trabalhados”, diz ela. “Uma das questões que já se manifestaram foi a dos adolescentes jurados de morte por pretenderem abandonar o tráfico, bem como as políticas que poderiam ser adotadas para protegê-los. Já houve uma audiência pública no Congresso Nacional e essa questão está sendo discutida”.


Desde o anúncio oficial dos resultados, Pedro Américo de Oliveira tem percebido uma repercussão positiva, diante do interesse demonstrado por setores do governo e da sociedade. “Há uma sinalização da aceitação desse trabalho como um elemento que pode motivar a implantação de políticas públicas voltadas para a infância e adolescência, mas ainda é cedo para afirmar qualquer coisa”, adverte, “pois esses setores ainda precisam aprofundar o estudo em suas áreas”.


Resultados


Ao comentar a pesquisa desenvolvida pelo IETS, o professor de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do Conselho de Administração da entidade, André Urani, anuncia boas e más notícias. Um dado positivo, segundo ele, é a redução do trabalho infantil no Rio de Janeiro. Em dez anos, afirma, o número de adolescentes no mercado de trabalho, que chegava a 27%, foi reduzido a quase um terço. “O trabalho infantil no Rio tem diminuído a passos largos, mais do que em qualquer outra região metropolitana brasileira”. As causas? Urani relaciona a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente e a formação de uma consciência de que entrar cedo no mercado de trabalho é entrar pela porta dos fundos.


Por outro lado, o aspecto negativo a ser considerado é que, nas comunidades de baixa renda, esses indicadores são bem piores – a pesquisa mostra 22% de adolescentes no mercado de trabalho, variando de favela para favela, em função, entre outros fatores, da renda familiar e da escolaridade dos jovens. “É preciso desenvolver políticas que se destinem a reduzir o trabalho infantil, mas elas não podem se voltar apenas para o jovem. Devem apostar no ambiente em que esses jovens vivem e em geração de trabalho e renda para os pais. Quanto melhor o trabalho que o pai tiver, menos a chance de o adolescente participar do mercado de trabalho”, afirma. “Investir na escolaridade de adultos também é uma medida efetiva”, assegura.


Urani destaca ainda uma preocupação especial com a ociosidade desses jovens. Quem está à toa – sem escola, sem opções de lazer – pode ser presa fácil para a marginalidade. O percentual é significativamente maior entre as meninas das comunidades analisadas (60%), o que talvez possa ser atribuído à gravidez precoce. “A imagem que as pessoas fazem é que o tráfico alicia o jovem. Nossos estudos sugerem que existe um enorme contingente de garotos vivendo à toa, e esses caras são um enorme manancial para o tráfico, até porque a renda que o crime pode pagar é bem elevada”, explica o professor.


A pesquisa verificou que a menor renda mensal paga pelo tráfico é para a função de olheiro (vigia): R$ 600. “É quase o dobro do que ganha um chefe de família nessas comunidades”, diz Urani. “Por aí se pode ver o tamanho da tentação. Eles estão em contato com o fetichismo vendido nas TVs da perspectiva de consumo e se deparam com a dificuldade do pai, se houver pai, até mesmo para comprar um pedaço de carne”, exemplifica.


Outro dado significativo aponta que os jovens que completam o Ensino Médio têm uma expectativa de renda inferior à de quem mora fora da periferia e completou apenas o Ensino Fundamental, o que é sintomático, por um lado, de uma deficiência do ensino oferecido nas comunidades de baixa renda e, por outro, de uma resistência do mercado de trabalho a empregar moradores dessas regiões. “Isso afirma a necessidade de políticas complexas para tratar do problema. E não basta escolaridade; é preciso ter qualidade no ensino”, completa Urani.


"Adrenalina"


Uma informação curiosa diz respeito às razões alegadas pelos jovens entrevistados para ingressar no tráfico. Além da natural ambição por dinheiro, prestígio e poder, figura a “adrenalina”. Ou seja, o adolescente busca no tráfico coisas como emoção, aventura, perigo. Por um lado, compreende-se: é da natureza dos jovens experimentar esse tipo de sensação. Por outro, vislumbra-se a possibilidade de uma influência de imagens e conceitos muito difundidos nos meios de comunicação. Carmem Moretzsohn, coordenadora da Editoria de Mídia Jovem da Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI), acredita que a mídia pode contribuir tanto de forma positiva quanto negativa. “Quando certos conceitos começam a ser lançados sem uma visão crítica, pode haver uma influência ruim. É impossível que as emissoras de TV se eximam de sua responsabilidade. A TV está dentro de casa e você não tem como proibir o adolescente de assistir. Os responsáveis pela programação deveriam ter uma consciência cidadã”, sugere.


André Urani também acredita em alguma influência da mídia nesse aspecto, mas insiste no problema da ociosidade: a vida desses jovens, afirma, é muito sem graça; faltam-lhes opções de lazer. “Eles têm uma preferência pelo aqui-e-agora brutal e não tem nenhum motivo para acreditar que poderão ter acesso a ‘adrenalina’ porque vão poder participar de um campeonato de futebol, por exemplo. Eles têm poucas opções de acesso a uma ‘adrenalina saudável’”. Sabem que, no tráfico, podem morrer cedo, mas querem viver intensamente”, lamenta. De fato, é o que acaba por acontecer. O estudo mostra que a expectativa de vida do jovem que entra para o tráfico é de apenas dois anos.


Perspectivas


O trabalho do IETS para a Organização Internacional do Trabalho não revela quantos jovens estariam hoje no tráfico de drogas – para André Urani, tudo indica que são poucos. A pesquisa compõe um perfil das crianças e dos adolescentes envolvidos no tráfico de drogas nessas regiões: são principalmente negros e pardos das famílias mais pobres das favelas, com escolaridade abaixo da média brasileira; moram com amigos ou com o(a) companheiro(a); casam-se bem mais cedo que a média dos jovens de sua idade; acreditam em Deus e estão mais próximos do neopentecostalismo do que das religiões afro-brasileiras. Quanto à possibilidade de abandonar o tráfico, a principal alternativa considerada é acumular dinheiro suficiente para abandonar a comunidade e fazer a vida em um outro estado.


O estudo é um ponto de partida para que se compreenda melhor a situação dessas comunidades e, em particular, como a vida se apresenta para essas crianças e esses adolescentes. A OIT espera concluir a análise mundial das piores formas de trabalho infanto-juvenil até a metade deste ano – até o momento, outros seis estudos já foram finalizados. Espera-se que os resultados apresentados possam abrir caminhos para a realização de estudos mais aprofundados e para a formulação de propostas efetivamente capazes de produzir um novo cenário. O próprio IETS já articula a realização de uma nova pesquisa para tentar identificar o que pode ser oferecido ao jovem para evitar que permaneça ocioso. Para isso, já iniciou entendimentos com um grupo de pesquisadores franceses. “O maior problema”, conclui Urani, “é a falta de políticas direcionadas para o jovem, a desatenção e o enorme potencial exclusivo. Não sei o que a gente vai pagar por isso no futuro”.


Fausto Rêgo

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