Autor original: Marcelo Medeiros
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Não deixar antigos mitos indígenas morrerem e mudar a imagem que as crianças da cidade têm dos habitantes das aldeias: foram essas as intenções do antropólogo Daniel Munduruku ao escrever o livro “As serpentes que roubaram a noite e outros mitos”. A publicação é a primeira de uma série de doze lendas a serem publicadas em linguagem infanto-juvenil e fez muito sucesso entre crianças e escolas. Todas as histórias são escritas por índios e ilustradas por curumins – as crianças indígenas.
Em entrevista à Rets, Daniel - que é índio, da nação Munduruku, e realiza trabalhos educacionais com crianças há mais de dez anos - fala sobre mitologia indígena e sua importância para o aprendizado infantil. “Quando vou a alguma escola falar sobre isso, 'babo' com as respostas dadas pelas crianças”, diz.
Rets – Como surgiu a idéia de lançar essa coleção de livros?
Daniel Munduruku – Era um sonho antigo meu lançar novos autores, sobretudo indígenas, que pudessem falar sobre mitos. Felizmente o projeto foi acolhido pela Editora [Peirópolis] e pudemos fazer os livros. Outra intenção era manter viva a tradição oral, pois, quando os autores não escrevem o texto, eles narram para que alguém os transcreva. É muito importante preservar essa parte da cultura de contar histórias para os mais novos.
Rets – Como foram escolhidos os autores e os temas?
Daniel – Estabelecemos alguns critérios. Como são livros voltados para o público infanto-juvenil, em primeiro lugar, as histórias deveriam ser amarradas à aldeia. Muitos livros sobre mitologia são feitos com narrativas puras, sem incluir os contextos da própria localidade. Se no dia-a-dia da aldeia a criança sempre é colocada dentro do contexto da história contada pelos velhos, no livro isso também deve acontecer. Assim, todas as histórias dizem quem faz o que, como e onde.
Outro critério foi o lingüístico. Dos doze livros a serem publicados, quatro são de tribos Tupi, quatro Jê e quatro Aruaki. Porém, se pudermos, outras línguas serão incluídas mais tarde no projeto.
Finalmente, as histórias devem ser tradicionais e, de preferência, narrar mitos de origem. Tudo isso levando em conta o fato de serem de fácil “digestão” para as crianças.
Rets – Qual a importância da mitologia para esses povos?
Daniel – A narrativa mítica é uma forma de manter o povo vivo, de dar sentido à vida de uma comunidade. Os povos escolhidos são os que mantêm essa tradição viva, e isso ajuda a nos entendermos como índios e mantermos o gosto pela narrativa. Hoje em dia, a televisão tende a mudar tudo, tirar as coisas de seu contexto e transformar tradições. As crianças, muitas vezes, não brincam mais na rua, não ouvem as histórias, e isso é negativo.
Rets – Mas a tecnologia não traz nenhuma vantagem para os índios?
Daniel – Claro que traz! Temos que nos inserir na globalização e entrar em sintonia com o mundo que nos cerca. Não podemos viver isolados. Mas isso não significa que devamos perder nossas tradições. Temos que reafirmá-las e, dessa forma, contribuir com o que nós temos para o mundo.
Rets – Como fica a tradição oral dos povos indígenas, hoje em dia?
Daniel – O risco de perdê-la é grande, pela invasão da tecnologia. O livro, neste aspecto, tem dois lados: por um, ajuda a resgatar as histórias orais, toda essa tradição tão importante. Por outro, é um risco de troca da narrativa oral pela escrita, mas temos que manter a história viva de qualquer forma.
Rets – O contato com o homem branco tem modificado ou então originado novos mitos?
Daniel – Com certeza. A cultura é dinâmica e é modificada sempre. Por isso o contato com novas realidades origina novas histórias ou releituras de outras. O mito do povo Guarani, por exemplo, fala de caçador com espingarda, barco a motor e avião. Tudo se adapta a seu tempo, mas o tradicional é mantido. O tradicional é narrar, trazer o mito para o presente. É claro que há mudanças, mas o importante é manter a identidade do povo.
Rets – Houve dificuldades em passar essas lendas para a linguagem infantil?
Daniel – A criança entende a linguagem quando ela é conduzida pelo coração. Se bem conduzido, o leitor entra na história, assim como entra nos contos de Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel etc. É importante fazer a ponte entre o tradicional e o que a criança vai ler, pois é essa ligação que vai fazê-la entender o sentido do que está sendo contado. Os dois primeiros livros ["As serpentes que roubaram a noite e outros mitos" e "Puratig: o remo sagrado"] são um exemplo disso. As crianças vão a fundo, pois se sentem bem com a verdade.
Rets – Qual é a influência da cultura indígena, principalmente a mitologia, na cultura brasileira?
Daniel – A mitologia está bastante presente. Figuras como o Curupira e o Boitatá são freqüentes no imaginário popular. Posso até mesmo dizer que 60% do imaginário é formado por elementos indígenas. O problema é que ele foi transformado em folclore, e isso é algo que questiono. O folclore é composto por antigas práticas e figuras que morrem com o tempo, mas para o índio isso é algo vivo e atual.
Rets – Qual a importância do conhecimento dessas mitologias para as crianças?
Daniel – A importância é muito grande. Em primeiro lugar, a criança vai conhecer lendas e histórias que ajudarão a formatar uma identidade brasileira. Dessa forma elas vão reconhecer que corre sangue indígena em suas veias e assim irão perceber a realidade como ela é. O mais interessante é que as escolas estão investindo nisso.
Já para as crianças indígenas, a mitologia é importante para reforçar sua identidade e tradição não só pelo que são como também pelo que não são.
Rets – Você falou que as escolas têm investido nos ensinamentos de mitologias. Como tem sido esse processo?
Daniel – É obrigação das escolas investir para reforçar a identidade. Elas têm buscado diferentes profissionais para passar essa mensagem, há uma terceirização da educação. E isso tem sido muito positivo, pois atividades como passeios, visitas e palestras cumprem bem essa obrigação.
Muitas escolas desenvolvem um trabalho bastante sério e competente em diversas áreas, como a escolha do material escolar. Existem muitos livros sobre índios no Brasil, o problema é a qualidade.
Por outro lado, a maioria das escolas se limita ao 19 de abril [Dia do Índio] e músicas da Xuxa para transmitirem a cultura indígena – o que é muito pouco e de péssima qualidade. Esses problemas acontecem tanto em colégios públicos quanto particulares, mas o ensino pago sempre leva vantagem, pela maior facilidade em organizar atividades extracurriculares.
Rets – Como as crianças, tanto das aldeias como das cidades, têm recebido o livro?
Daniel – Depois que escrevi meu livro, que foi o primeiro da coleção a sair, voltei à minha aldeia e, para minha surpresa, foi uma festa. Com o segundo autor, o mesmo aconteceu. Todos queriam exemplares para deixar na escola ou em casa. Por isso estamos fazendo força junto ao governo para imprimir mais cópias para distribuirmos nesses locais. Quanto às ilustrações feitas pelas crianças, são desenhos típicos das aldeias, e é isso que importa – que fiquem registrados.
A primeira edição foi vendida em seis meses, pois muitas escolas compraram exemplares e as pessoas têm gostado muito dos textos e das ilustrações. Cada vez mais há cursos para professores, para fazerem as crianças terem mais contato com essa cultura através de livros e histórias contadas oralmente. Quando vou a alguma escola falar sobre isso – realizo esse trabalho há cerca de 10 anos – 'babo' com as respostas dadas pelas crianças.
Rets – Como é esse diálogo entre você e as crianças?
Daniel – Procuro fazer uma conversa, um trabalho mais interativo, e não apenas uma aula sobre índios e sua cultura. Em primeiro lugar, é preciso tirar a imagem de índio malvado que boa parte delas tem –que, sinceramente, não sei de onde vem. Apesar do receio inicial, elas em pouco tempo entram na história, e aí pronto: cantam e dançam com a gente sem problema algum e se divertem muito.
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