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Quando os gatos são gatos e as lebres são lebres: a questão racial e a melhoria do ensino básico

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original:

* Samuel Aarão Reis

Algumas pessoas são contra o estabelecimento de uma política de cotas para favorecer a entrada de negros nas universidades brasileiras. Apesar de reconhecerem a gravidade do problema – há uma percentagem menor de negros nas universidades do Brasil, hoje, do que havia nas universidades da África do Sul, no tempo do apartheid. O atual Ministro da Educação declarou que é contra as cotas. Com aquela tranqüilidade de quem tem a educação de filhos e netos garantida, diz que a melhor solução viria a médio e longo prazo, com a melhoria da qualidade do ensino básico.

Já outras pessoas, ligadas ao movimento negro ou mais sensíveis à luta do povo negro, acham que deve haver uma política de cotas, como medida emergencial. Sem excluir, entretanto, naturalmente, a indispensável melhoria do ensino básico.

Assim que, aparentemente, no médio e no longo prazo, todos concordam. Certo? Não. Pura aparência. A utilização da mesma expressão, das mesmas palavras, esconde uma bastante significativa diferença de opinião. Com as mesmas palavras cada um dos grupos entende questões diferentes. E a diferença está em se aceitar ou não que a comunidade negra tenha uma identidade cultural, e que seja importante ou não para o conjunto da sociedade brasileira preservar e fortalecer esta identidade.

Quando na década de 50 se anunciava a massificação da escola pública foi Anísio Teixeira quem conseguiu tirar do papel e colocar na vida real o modelo de escola pública universal, de boa qualidade e democrática. Uma escola em tempo integral, onde além do estudo das matérias havia o esporte, as oficinas de arte e as oficinas de trabalho. Na época a questão do racismo não estava na pauta da sociedade. Anísio não tratou desta questão. Buscou inspiração em educadores dos EEUU, assim mesmo foi chamado de comunista, perseguido, e seu modelo de escola abandonado.

Na década de 70 o modelo de ensino básico da ditadura foi consolidado: uma escola pública de baixa qualidade para os filhos dos pobres, escolas particulares para os filhos da classe média e para os filhos dos ricos. No final da década, início dos anos 80, o movimento dos professores tenta resistir à desmoralização da escola pública. Greves prolongadas e anuais paralisam as escolas. Mas pelo menos para a sociedade como um todo não ficava muito claro qual alternativa os professores propunham para a construção da escola pública universal, gratuita e democrática, ainda que essa bandeira tenha sido sempre levantada pelo movimento, ao lado das reivindicações salariais.

É então que Darcy Ribeiro, o mais criativo discípulo de Anísio Teixeira, surge com a proposta dos CIEPs. Enfrenta, aliás, a oposição dos professores e de outros setores progressistas da área da educação. De novo uma proposta de escola em tempo integral, a arquitetura de Niemeyer, uma escola ampla, com biblioteca, sala de vídeo, ginásio de esportes e outras características que permitissem aos mais pobres uma educação “decente”. Darcy Ribeiro não enxergava o racismo no Brasil. Achava o brasileiro um povo “mestiço”. Por isso os CIEPs também passam ao largo da questão racial. Muitas críticas foram feitas aos CIEPs. Não cabe aqui discutir todas elas, mas é importante salientar uma das críticas, exclusiva dos movimentos negros, e que não ganhou receptividade na época: nas escolas públicas “normais” e nos CIEPs os índices de repetência e de abandono dos alunos negros se mantiveram os mesmos; as diferenças de aproveitamento entre alunos brancos e negros se mantinham, como se mantiveram durante todos estes anos.

E por que os índices não se modificaram? Porque os CIEPs, assim como as escolas públicas “normais”, eram “escolas brancas”. Onde estavam os negros nos livros didáticos? Como estavam os negros nos livros didáticos? Mas não era, como não é até hoje, apenas um problema dos livros didáticos. Havia toda uma pedagogia que agredia a tradição, os costumes, a identidade cultural dos alunos negros, que ao invés de reforçar a auto-estima desenvolvia nos alunos negros complexos de inferioridade. Na melhor das hipóteses passava-se para os filhos dos negros que “para ser alguém eles teriam que estudar o dobro dos outros”, uma idéia paternalista e racista.

Então existe isso de “escola branca”? E existirá uma “escola negra”? Existe, sim. E existem várias outras categorias de escolas na sociedade, tantas quantas segmentos com identidade própria e com força social conseguem instituir.

É assim que temos no Brasil escolas israelitas, católicas, batistas, muçulmanas, presbiterianas, luteranas, inglesas, francesas, alemãs, sindicais, indígenas. Cada uma delas é obrigada a seguir um núcleo curricular básico definido pelo Ministério de Educação. Fora este núcleo básico cada escola é livre para construir sua própria pedagogia de acordo com os interesses do segmento social que representa. A liberdade não está apenas no conteúdo do conhecimento que vai ser estudado, mas também na forma de estudar que vai ser desenvolvida.

As escolas indígenas são um exemplo interessante. Reconhecida a importância da preservação da cultura indígena, isso depois de muita pressão nacional e internacional, o Ministério da Educação passou a financiar uma quantidade de escolas indígenas. Formação de professores bilíngües, pesquisas, livros didáticos específicos, construções, transporte e alimentação para os alunos.

Também, em construção, há, no Brasil, escolas negras. Na Bahia diversas experiências apontam, sem o mesmo apoio que o Ministério da Educação presta às escolas indígenas, para a construção de uma pedagogia adequada aos descendentes dos africanos. Entre elas a Escola Mãe Ilda do Ilê Aiyê, a Escola Criativa do Olodum, a Escola do Ilê Axé Opô Afonjá, algumas Escolas Comunitárias.

Em todas estas escolas há uma pedagogia de muitas cores, a presença da musicalidade e da dança, a capoeira, as tradições religiosas, a força da natureza, a oralidade, o exemplo de Zumbi e das mulheres negras, a resistência e a força da cultura negra. Sempre tendo como núcleo central aquele definido pelo Ministério da Educação para o ensino básico. Espaços de afirmação e de auto-estima. Quilombos e terreiros em construção.

“Melhorar a qualidade do ensino fundamental” não é, assim, um conceito puramente técnico, destituído de conteúdo político e étnico. Quem quer despolitizar este conceito são os dominantes. Eles sempre preferem exercer sua dominação da forma mais despercebida possível: escondidos por trás de conceitos pretensamente “universais”.

Quando se falar, portanto, em melhoria do ensino básico é necessário deixar bem claro qual escola se pretende construir e para quem, quais escolas se pretende favorecer numa sociedade como a nossa – multiétnica e pluricultural. Dizer apenas que o objetivo é a “melhoria do ensino básico” é mais uma vez procurar tornar invisível a questão do racismo no Brasil.

* Samuel Aarão Reis é educador popular e assessor da agência de desenvolvimento Kirkens Nodhjelp. Este artigo foi transcrito da revista Afirma.





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