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Tecnologia assistiva para o acesso universal ou acesso universal às tecnologias?

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Jorge Márcio Pereira de Andrade*


Seria possível pensar numa inclusão social a partir de uma inclusão digital? Seria ou será possível que, neste nosso mundo do global e das desigualdades se acirrando ainda mais, superaremos os abismos que separam os que têm acesso às Tecnologias de Comunicação e Informação dos sem-computador, sem-net, sem-participação social econômica ou política?


Segundo Jeremy Rifkin, estamos entrando na Era do Acesso, onde uma economia hipercapitalista faz e fará com que comprar e ter propriedades serão coisas do passado. Para este autor de best-sellers sobre o futuro do mundo econômico e das revoluções digitais, por exemplo, os ciclos de vida dos produtos tecnológicos vêm diminuindo em todas as indústrias. Antigamente, para nós, chamados de anacrônicos utópicos, os produtos eletromecânicos duravam décadas. Você se lembra daquela velha máquina de escrever, onde eu e vocês "catávamos milho"? Deixamos ela mofar no armário dos porões... ou, pior, jogamos no lixo. Hoje, ironicamente o diretor de Tecnologia da Microsoft, Natham Myhrvold, nos joga na cara: "Não importa quanto um produto seja bom, você tem apenas 18 meses até ele ser um fracasso". Vem aí o lixo high-tech. Jogue aqui seu velho PC.


Daí a lógica do mercado hipercapitalista de que seu maior concorrente passa ser você mesmo. Você será mais um no Big Brother a ser eliminado, de forma naturalizada, e até premiado com um carro novinho (que deve durar apenas um ano, até o próximo recall). O chip que está dentro deste meu computador, da Intel, já está obsoleto, pois esta empresa, por exemplo, trabalha com três gerações de chips ao mesmo tempo. Enquanto eu continuo a pensar Pentium I, escrever com Pentium II, já estava à venda o Pentium III. Velocidade e tudo se torna obsoleto, velho.


Dentro deste panorama, ainda sonho com os recursos tecnológicos de ponta? Como brasileiro, continuo sonhando com os recursos usados em tecnologia assistiva, naturalmente oriundos do Primeiro Mundo, para que alguns "paralisados cerebrais", que nunca emitiram um único som ou palavra, sem grande e sensível esforço, pudessem se comunicar e dominar os macro e micromundos que os cerceiam. Mas, ao navegar pelas ondas infinitas do ciberespaço, buscando novidades tecnológicas para deficientes, muitas vezes me lembro de um filme: Gaby – uma história verdadeira, que muitas vezes exibo como parte de conscientização sobre as paralisias cerebrais. Nele uma mulher com DEF (Distúrbio de Eficiência Física), Gaby, após muitas barreiras, consegue chegar à universidade, atravessando a escola especial e a regular, contando sempre com uma fiel empregada-companheira e uma máquina de escrever. Uma velha máquina de escrever mecânica, digitada com o dedo do pé. Aliás, ela também tem uma prancha de comunicação. Um simples pedaço de madeira que contém o alfabeto pintado. Foi Gaby que inspirou um webmaster brasileiro, deficiente físico, paralisado cerebral, pernambucano, Ronaldo Correia Jr, a criar uma prancha que o levou ao computador, do computador à Internet, de lá à criação de sites, como o seu Dedos dos Pés. Um caminho das chamadas baixas (low) para as altas (high) tecnologias. Porém só uma diferença permanece entre o Ronaldo e a Gaby. Ela consegue, no México, entrar e sair da universidade; aqui, o Ronaldo foi até o segundo grau, onde foi barrado por sua condição humana e quadriplegia. Conheçam pessoalmente sua história no site criado e mantido, com todas as dificuldades e pedras no caminho. Visitem: www.dedosdospes.hpg.ig.com.br.


Mas pra que contar toda esta história? Apenas para situar os milhões de outros Ronaldos que ainda nem acesso a velhas máquinas de escrever têm tido por aí. Louvemos os esforços para a democratização dos meios e recursos tecnológicos, dos governos, das empresas, das ONGs e dos muitos defensores da inclusão digital. Porém a nossa realidade ainda se situa bem próximo ou abaixo do que estamos precisando. Embora contando com muito poucos avanços no campo da distribuição e universalização das tecnologias dedicadas a pessoas com deficiência, temos um dos melhores campos de pesquisa e investimento nas descobertas e aprimoramentos destas tecnologias na América Latina, principalmente nas universidades públicas.


Teremos, pois, infelizmente, de falar em exclusão digital por vários anos. E, mais ainda, de combatê-la. Se, para os não-deficientes, estimamos uma exclusão da Internet de mais de 100 milhões de cidadãos brasileiros, multipliquemos para os chamados 10% destes cidadãos com deficiência, os 10 milhões de deficientes, com uma média de 5% deles sem nenhuma forma de acesso às tecnologias, inclusive o telefone.


Portanto é mais que urgente a retomada do direito à universalização de tecnologias, aí pensadas desde as materiais até as simbólicas. Precisamos das tecnologias assistivas, dos recursos de comunicação alternativa e aumentativa, para todos e muitos deficientes. Mas também precisamos de uma conscientização dos políticos e dos empresários sobre os investimentos para a socialização destes recursos. Precisamos de uma afirmação de direitos garantida pelos diversos atores sociais implicados com a questão, principalmente os ditos "militantes", para que políticas públicas viabilizem o que foi difundido e proclamado, como, por exemplo, na Oficina para a Inclusão (www.inclusaodigital.org.br), promovida pelo governo federal, em Brasília, que completará um ano em 14 de maio, com premissas, diretrizes e propostas para a inclusão digital da pessoa portadora de deficiência. Dentro das premissas gerais está a resposta à primeira pergunta deste editorial: "1. A exclusão digital aprofunda a exclusão socioeconômica". Para tal foram elaboradas algumas propostas ligadas às pessoas com deficiência, equipamentos especiais e acessibilidade, destacando-se: "Fomentar a criação de linhas de produtos especializados (com tecnologia de baixo custo) que atendam aos portadores de necessidades especiais".


Enfim o que afirmamos é o cumprimento destas metas, o que precisamos é a realização das propostas, com participação efetiva e democrática de todos. Aí , talvez, estaremos indo além dos discursos e caminhando, juntos para enfrentar as muitas armadilhas na Era do Acesso, que, segundo Rifkin "o acesso tornou-se o bilhete de ingresso para o avanço e para a realização pessoal, sendo tão poderoso quanto a visão democrática foi para gerações anteriores". Acessar, hoje em dia, diz respeito a quem pode ser incluído e quem será excluído.


Não podemos continuar barrando as cidadãs-Gaby e os cidadãos-Ronaldo, mesmo fornecendo-lhes recursos de tecnologia de ponta para sua suposta inclusão social. Precisamos ir, juntos, para além das exclusões...


Que tal escrevermos juntos uma mesma frase: desigualdade nunca mais!


* Jorge Márcio Pereira de Andrade é presidente do DefNet.

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