Autor original: Fausto Rêgo
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Há um ano, o israelense Michael Haradom conversava com seus companheiros do então movimento Shalom Salam Paz – hoje organização não-governamental que reúne judeus, palestinos e árabes – sobre o aumento da violência no Oriente Médio. “Se as coisas continuarem assim, vamos incendiar o mundo inteiro e nos tornar persona non grata em todo o planeta”. A situação atual em Israel, os atentados a mesquitas e sinagogas na Europa e nos EUA mostram que, infelizmente, Haradom estava certo.
A solução para o conflito, segundo ele, é a imediata retomada das conversas de paz e a mobilização das pessoas em torno do tema. Em entrevista à Rets, Haradom fala sobre os conflitos e os interesses por trás deles, a proposta da Liga Árabe e a possibilidade de convivência entre israelenses, árabes e palestinos. “Temos que ter muito estômago e coragem para ver a paz na região’, diz.
Rets: Como e quando surgiu a Shalom Salam Paz?
Michael Haradom: Em setembro de 2000, um grupo de empresários progressistas – de ascendência ou origem judaica e árabe – ligados à Cives (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania) recebeu a visita de uma senhora israelense vinda de um kibutz. Ela falou bastante sobre a escalada da violência naquela época. Pensamos então: nós que somos progressistas, judeus, árabes e brasileiros devemos fazer algo e dar o exemplo da possibilidade de convivência pacífica entre os povos. Daí surgiu o movimento, hoje composto por brasileiros e estrangeiros de diversas origens e que em 12 de janeiro de 2002 se transformou em organização não-governamental.
Rets Desde então, que atos vocês fizeram pela paz?
Michael Haradom: Já fizemos passeatas e redigimos manifestos para serem assinados. Em 8 de junho do ano passado fizemos um grande ato no vão do Masp com a Women In Black, organização de mulheres, pela paz em Israel. Chegamos a ser indicados pela Assembléia Legislativa de São Paulo para receber o Prêmio Santos Dias em dezembro, mas ainda não éramos uma organização e por isso não ganhamos. Em 10 de abril vamos inaugurar nossa sede. Aproveitaremos a ocasião para reafirmar nossa carta de princípios, onde está a Declaração Universal de Direitos Humanos e a resolução da ONU que manda Israel devolver os territórios ocupados depois de 1967. A Convenção de Genebra [que regula o tratamento a ser dado aos prisioneiros de guerra] será adicionada à nossa carta e ainda faremos algumas colocações sobre o Oriente Médio.
Rets: Como você vê as reivindicações palestinas?
Michael Haradom: Acreditamos no direito do povo palestino a um Estado democrático, educação e cultura próprios. Além disso, é importante ressaltar o direito de retorno de todos os povos do mundo, inclusive os índios. Sei que é difícil, mas é possível criar mecanismos de reparação. No caso dos indígenas – que ocupavam, por exemplo, um espaço onde hoje está um shopping –, poderíamos calcular quanto valia o terreno na época da desocupação e quanto ele vale atualmente. A diferença seria paga aos descendentes.
Após o Holocausto, foi calculado que os judeus deveriam ser indenizados em US$ 133 bilhões pela morte de seis milhões de pessoas. Porém vidas não têm preço e por isso é impossível fazer essas contas. Ainda assim, se hoje falarmos nos palestinos, acho que têm todo o direito a compensação, custeada por Israel, Europa (responsável pela partilha do território), EUA (que mantêm forte interesse na região por causa do controle de recursos naturais e da geopolítica) e pelos países árabes, que – mesmo não tendo obrigação de fazê-lo – não absorveram seus irmãos.
O planeta deveria compensar todos os que foram expulsos de suas terras: índios, judeus, palestinos etc.
Quanto a Jerusalém, ela é uma cidade onde várias religiões se concentram. Por isso defendo acesso livre a todas as religiões e não transformá-la numa capital internacional. Haveria uma guarda de patrimônio da humanidade, que pode ser composta por seguidores de todas as crenças.
Rets: Qual sua avaliação da proposta de paz da Liga Árabe?
Michael Haradom: É uma proposta extraordinária, que dá certa segurança e tranqüilidade, apesar de não ser total. Isso principalmente para Israel, que diz estar cercado por 40 árabes agressivos que não o reconhecem. É um momento histórico.
Em primeiro lugar, acho que Israel deveria aceitar a oferta e daí avançar: partir para uma cooperação cultural, econômica e tecnológica. As tecnologias da região são simples se comparadas à do resto do mundo e os países árabes são mercados não disponíveis para Israel. É uma oportunidade para os israelenses ampliarem seus negócios, aumentarem sua influência positiva na região, integrarem-se ao Oriente Médio, ao invés de se manterem como ocidentais no Oriente, e ainda receberem investimentos de árabes para se desenvolver.
Os bilhões gastos em armas poderiam ir para a recuperação do meio ambiente, por exemplo. Organizações como a Shumart Hateva (Guardiões da Natureza) poderiam receber grandes somas e aumentar seu trabalho. Além disso, poderiam incentivar o turismo religioso, histórico e ecológico na região. Essa atividade já foi importante fonte de renda e hoje é praticamente zero num lugar onde cada pedra tem uma história.
A alegação de que não há espaço físico para o retorno dos palestinos é falsa. No Japão, a concentração de pessoas é muito maior e o nível de vida é alto.
Rets: Mas há recursos naturais suficientes?
Michael Haradom: Quando se fala em recursos naturais naquela região, está se falando de água. Já há uma tecnologia muito avançada de dessalinização naqueles países, falta apenas investimento. Na verdade, é mais barato construir canos até o pólo sul para trazer água do que manter a guerra, isso sem contar as vidas gastas e as pessoas internadas em hospitais por causa da violência, que resultam em números catastróficos.
A indústria de tanques poderia ser convertida em de transporte alternativo, sem o uso de combustíveis fósseis. O problema é que há muitas grandes companhias lucrando com a guerra e o uso de combustíveis. São gastos 1 trilhão de dólares por ano em guerras no mundo todo. Com 600 bilhões, dá para recuperar todas as terras erodidas do planeta; com 100 bilhões, que foi a previsão de aumento de gastos militares dos EUA depois de 11 de setembro, dá para acabar com a miséria; com 200 bilhões acabo com a pobreza em todo o mundo. Tudo é uma questão política.
A água não é problema, o solo também não. Havendo tecnologia e humanos que trabalhem na mesma direção, poderíamos viver uma vida extraordinária. Pode parecer sonho, fantasia. Somos capazes de criar fantasias e materializá-las, mas também podemos materializar monstros. É uma questão de prioridades.
Rets: Os extremistas de ambos os lados estão dispostos a fazerem acordos de paz?
Michael Haradom: As agendas são diferentes, mas o número de extremistas nos dois lados é inferior a 5% da população. Os excluídos são muito mais numerosos e sua condição facilita a arregimentação. Se acabar a exclusão, os conflitos diminuem. Mas é importante não confundir fundamentalistas com extremistas. Fundamentalistas existem em todo credo, mas são os extremistas que realizam ações. Quando há um povo massacrado, com fome, que é uma forma de terrorismo, sem direito à sua cultura –outra forma de terror –, é óbvio que boa parte irá aonde lhe oferecem proteção. Se essa vida não tem mais jeito, quem sabe na outra – é o que pensam.
A exclusão leva à marginalidade, que leva a faltas com a sociedade e daí para a criminalidade ou o terrorismo. Aqui acontece o mesmo, mas lá há estudos e tradições para isso. Temos que conviver com extremistas, eles também têm direito a viver. O que precisamos é de diálogo e não de agressividade. Esse é o ponto de vista da Shalom Salam Paz.
A pobreza leva as pessoas, em qualquer lugar, a tomarem atitudes radicais, resolver pela força seus problemas. Elas também são massacradas e isso não deixa de ser terrorismo.
Rets: As Intifadas prejudicam o processo de paz?
Michael Haradom: Elas são um levante popular, algo que não há como segurar, por emanar do povo. Antes de condenar, nós, judeus, precisamos perguntar: há algo de errado? Estar ocupando por 35 anos aquela terra? Quando estávamos sob mandato britânico, não fizemos o mesmo? Não manifestamos repúdio? Também não explodimos bombas? Também não nos revoltamos contra quem nos oprimia? Em várias partes o mesmo acontece. O MST é um exemplo. É um movimento que pede espaço para viver. Há falhas de alguns componentes, é claro, porém o grosso quer plantar, pagar impostos etc. Agora, se você mantém um grupo por 10 anos na beira da estrada, fica inevitável algo mais radical acontecer. Há um momento em que não se distinguem mais as coisas como se deveria.
Uma coisa é certa: todos são povos sofridos, que têm o direito a uma parcela ideal de todos os recursos naturais e intelectuais do planeta. A Intifada é uma reação normal de qualquer povo. No Timor Leste tinha um nome, na África do Sul, outro. O que devemos fazer é esgotar todos os recursos antes dessa reação. Mas, admito, nem sempre as coisas estão em nossas mãos, que estamos sentados no sofá vendo toda a violência pela televisão. Fica difícil dizer que devemos dialogar quando não estamos vivendo aquela situação. Se eu estivesse lá, minha opinião seria muito mais contundente.
Rets: Qual a importância e influência dos grupos pacifistas na região?
Michael Haradom: O mundo árabe tem menos organizações do que Israel. Posso dizer que em Israel 18% da população é ativista de alguma causa que no fim das contas acaba sendo ligada à paz. Há uma dúzia de organizações palestinas e israelenses bastante influentes e com várias atividades na região. Procuramos manter contato com todas elas.
De qualquer jeito é difícil manter esses grupos. Nós mesmos nos dividimos em dois grupos. Alguns integrantes, mais conservadores, fundaram a Taba, que também trabalha pela paz, mas são sionistas. Aceitamos sionistas, qualquer um pode fazer parte da Shalom Salam Paz, mas eles não podem exercer o sionismo, pois os palestinos vêem essa atitude como agressão. Não podemos ter uma atitude de permitir esse tipo de coisa para os judeus e não para os palestinos. Existem alguns palestinos que querem a devolução não só dos territórios de antes de 1967, como também rever as fronteiras de 1947-48, quando foram criados os dois estados. Por mim, não há problema que defendam essa idéia, mas esse não é momento. Temos que respeitar a todos.
É difícil manter essa diversidade em qualquer lugar do mundo – ela cria freios de mão. Temos que ser pacifistas “ghandianos”, militar sempre pela paz. E essa militância inclui abrir mão de muitas coisas, ter coragem, estômago e principalmente capacidade de enfrentar a comunidade, que é “fogo”! Muitas vezes ela não perdoa opiniões contrárias.
Enfim, o pacifismo depende mais dos indivíduos do que das organizações.
Rets: Digamos que as reivindicações de ambos os lados sejam atendidas. A paz seria imediata ou há outros processos a serem desenvolvidos?
Michael Haradom: Realmente a paz não é um jogo de futebol, onde apitou, acabou.Haveria muitas etapas a serem cumpridas como demonstração de boa vontade. No momento, se Israel libertar Arafat e voltar às fronteiras de 2000, tenho convicção de que serão raros os casos de terrorismo. Óbvio que não cessarão, pois, como disse antes, são incontroláveis. Veja o exemplo do homem que matou [Ytzhak] Rabin e as mesquitas que foram explodidas na Europa.
Esses atos não querem dizer que esteja tudo fora do lugar, mas que uma coisa está e podemos recolocá-la. Devemos ter estômago para agüentá-los. Rabin dizia: “Não adianta, por mais terror que haja, continuarei negociando a paz”
Esse retorno às fronteiras seria uma demonstração de boa vontade dos dois lados. A volta dos soldados deveria ser feita para proteger pessoas de atos isolados e não fronteiras. Isso já seria uma demonstração de paz entre todos.
Os governantes devem sentar imediatamente e começar a conversa, que deve ser acompanhada por ações. Primeiro recuem, depois esperem os atos. Essa atitude seria contrária ao que há hoje. Se não houver atos de violência, recua-se um pouco mais e assim fica criado um círculo virtuoso em oposição ao atual vicioso.
Há possibilidade de um voto de confiança. Tenho certeza que os dois povos não permitiriam atos terroristas. O que falta é coragem para dar o primeiro passo.
Rets: Por que a ONU não intervém? Uma missão de paz resolveria a situação?
Michael Haradom: Existem interesses por trás dessa guerra, sejam eles da indústria de armas, políticos ou de força econômica. As Nações Unidas já ordenaram a retirada imediata de Israel dos territórios ocupados, mas o país não obedece. Poderia ser enviado um exército de capacetes azuis para a região, inclusive com soldados brasileiros.
Rets: Por que o senhor apóia o envio de tropas brasileiras?
Michael Haradom: Porque o brasileiro não se incendeia, tende a contornar problemas pela conversa, dar um jeitinho. Além disso, é um povo querido em todo o mundo, não só pelo samba, café, futebol, Pelé. Aqui se permite a mistura, sempre com respeito pelo outro. É claro que há discriminação, mas no geral e em comparação com outros lugares o Brasil é um vale dourado para os imigrantes. Temos no Brasil 10 milhões de árabes ou descendentes e 120 mil judeus e isso gera respeito e carinho naquela região.
Capacetes azuis brasileiros não vão puxar o gatilho tão rápido e são isentos, ao contrário de norte-americanos e europeus.
Rets: É possível um bom relacionamento entre palestinos e israelenses no cotidiano?
Michael Haradom: Sem dúvida. Quando conseguirmos que dirigentes inflexíveis, como Sharon é e Arafat é em algumas ocasiões, se proponham a negociar e se afastar de elitistas que lucram com o conflito, isso será possível. Em outubro estive em Israel e todos pediam tranqüilidade. O que esse combate não custa para o contribuinte? Os israelenses já tiveram excelentes escolas públicas e um alto nível de vida, semelhante ao de países como Suíça e Holanda. Hoje, as escolas públicas estão deterioradas e já há grandes diferenças sociais.
Há uma possibilidade de paz. Nós israelenses queremos a paz, qualificada e duradoura. Os palestinos, uma pátria com paz, dignidade e segurança. É simples.
Para finalizar, gostaria de dizer que se continuarmos com essa violência, os povos semitas, não só os judeus, serão considerados persona non-grata no planeta. Não poderemos transitar livremente e seremos alvo não só de revistas, como também de mais discriminação. Isso nos obriga a não mais permitir que haja conflitos e muito menos que extrapolem nossas fronteiras. Esse é um compromisso que tento passar a todos com quem falo, convocando para tirar o pêndulo da extremidade e trazê-lo para o centro.
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