Você está aqui

Inocência ultrajada

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets







Max Andersson

Um é pediatra, brasileiro, respeitado, renomado, diretor de um instituto voltado para a adolescência. Outro é bispo auxiliar de Paris, influente. Um terceiro é síndico, tem mais de 60 anos, pacato. A estes se somam milhares em todo o mundo. Diferentes e diversos, eles têm em comum o gosto sexual por crianças e adolescentes. Recentes denúncias, no Brasil e no exterior, fizeram pessoas como essas saltarem aos olhos da opinião pública, causando repúdio, revolta e, o que é muito importante, alerta.

Os crimes sexuais contra crianças comumente são divididos em duas classificações: Abuso sexual e Exploração sexual. O abuso envolve a vítima - a criança - e o abusador. A exploração, que geralmente é feita com fins comerciais, envolve um terceiro ator: o aliciador. Esta prática - a exploração - tem sido amplamente discutida desde a Cúpula Mundial pela Criança - uma das várias conferências temáticas organizadas pela ONU durante a década de 90 - até o 2º Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, ocorrido em dezembro de 2001, no Japão. A cúpula estabeleceu metas que deveriam guiar os países na garantia da sobrevivência, educação, desenvolvimento e proteção da criança. Em maio próximo acontece a Sessão Especial sobre a Criança, em Nova Iorque, encontro da Assembléia Geral das Nações Unidas, que reunirá líderes de governo e Chefes de Estado, ONGs, defensores da criança e as próprias crianças na sede das Nações Unidas para rever o que tem sido feito para se atingir tais metas.

Já o Congresso tinha o objetivo de discutir e acompanhar a implementação das diretrizes que haviam sido acordadas na primeira edição do encontro, em 1996, em Estocolmo, na Suécia. Na ocasião, os países participantes haviam elaborado a Declaração de Estocolmo e Agenda de Ação, que elencava uma série de ações a serem tomadas pelas nações, a fim de acabar com o comércio, trabalho e pornografia infantis, além de prever a elaboração de planos nacionais de combate à exploração sexual de crianças.

Ano passado, eles se reuniram novamente para conferir os êxitos que já havia sido alcançados. Os cerca de 3 mil participantes do congresso puderam conhecer a tradução brasileira do Plano de Ação, cujo carro-chefe é o Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. A iniciativa começou em 1997, através da ação da Abrapia - Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência, com o objetivo inicial de combater o turismo sexual, com a campanha "Diga não ao Turismo Sexual - Cuidado, o Brasil está de olho". Logo depois, a instituição notou que as denúncias envolvendo turistas representavam apenas 9,8% (no período de 05.02.97 a 30.04.97) e que o número de abusos "nacionais" eram mais significativos. A partir de algumas revisões que a Abrapia fez em cima dos resultados iniciais da campanha, a instituiçao elaborou um programa que reestruturava a iniciativa já existente, dotando-a de condições para receber, retransmitir, tratar, divulgar, monitorar e avaliar denúncias de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Enviou a pesquisa e o novo programa ao Ministério da Justiça, que o adotou e incorporou ao Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, política pública nacional.

O abuso mora ao lado

"O pedófilo é qualquer um, ele se cerca do seu objeto de desejo, então é claro que ele vai procurar lugares cheios de crianças, onde possa ter oportunidades", afirma Lauro Monteiro, presidente da Abrapia. O caso Eugênio Chipkevitch é um exemplo de que o abusador está em todo lugar. As denúncias contra membros da Igreja, surgidas recentemente, dão outra prova da imprevisibilidade da incidência desta prática. Há casos de grande repercussão sendo investigados na Irlanda, na Inglaterra, na França, nos EUA (onde pipocam denúncias por todo o lado) além do Brasil, entre outros. As denúncias contra padres renderam um comentário do Papa João Paulo II, na carta endereçada a todos os sacerdotes, por ocasião da semana-santa, em que ele dizia: "...Neste momento nós, sacerdotes, temos sido pessoal e profundamente perturbados pelos pecados de alguns irmãos nossos que atraiçoaram a graça recebida na Ordenação, chegando a ceder às piores manifestações do mysterium iniquitatis que atua no mundo. Originaram-se assim escândalos graves, com a conseqüência duma pesada sombra de suspeita lançada sobre os restantes sacerdotes benfazejos, que desempenham o seu ministério com honestidade, coerência e até caridade heróica. Enquanto a Igreja manifesta a sua solicitude pelas vítimas e procura dar resposta, segundo verdade e justiça, a cada penosa situação, todos nós - cientes da fraqueza humana, mas confiando na força sanante da graça divina - somos chamados a abraçar o mysterium Crucis e empenhar-nos ainda mais na busca da santidade." Em nenhum momento, entretanto, é citada a palavra pedofilia.

Além disso, o papa teria ordenado que a Congregação para a Doutrina da Fé - órgão do Vaticano - redigisse uma carta e enviasse aos bispos com normas recém-estabelecidas pela Igreja Católica para combater a pedofilia dentro das paróquias. No Brasil, um dos que receberiam esta carta seria o bispo Dom Angélico Sândalo, à frente do Setor de Vocações e Ministérios da CNBB - Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Cabe ao bispo de Blumenau cuidar do comportamento dos padres. "Há meses ouço falar dessa carta e até agora, não chegou nada. Acho que não virá nenhuma carta", afirmou o bispo. Ele é enfático na opinião sobre o abuso sexual infantil: "É inadmissível, acho que é um desvio e tem que ser tratado. E quando isso acontece com um padre é duplamente severo." Segundo Dom Angélico, no caso de alguma denúncia contra padres, o procedimento é chamar o implicado, prescrever uma mudança de rumo e tratamento psicológico. Perguntado se o celibato pode ser um dos motivos que levam um padre a dar vazão aos seus desejos com uma criança, que teoricamente não sabe do que se trata, o bispo diagnosticou do seguinte modo: "Vivemos num mundo cercados pela generalização do sexo. O celibato é como o casamento. Ninguém joga o casamento pro alto por causa de algum deslize de uma das partes. Responsabilizar o casamento é responsabilizar o casamento. Cada pessoa tem suas limitações. No entanto, se o sujeito pega uma criança e a profana... isso não existe."

Punição ou tratamento?

Pelo menos nisso a Igreja e as entidades que trabalham na luta contra o abuso sexual de menores concordam: é inadmissível. Mas, o que leva alguém praticar a pedofilia? Há quem considere a pedofilia uma opção sexual, assim como é o homossexualismo e que, tal como esse, pode vir a ser aceita um dia como tal. Era esse o teor da entrevista concedida por Eugênio Chipkevitch à revista Época, meses atrás, antes de ser denunciado. "As pessoas podem ter o gosto que quiserem, mas nada muda o fato de que sexo com crianças é crime. E são consideradas crianças todas as pessoas com até 18 anos incompletos", lembra Monteiro. No entanto, os abusadores não são julgados por "pedofilia". O Código Penal brasileiro, de 1940, não prevê esse crime. Ainda. Atualmente os abusadores ou exploradores são enquadrados em crimes de Estupro (Código Penal, art. 213), que consiste em constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, dizendo respeito só às mulheres; Prostituição (Código Penal, arts. 227, 228 e 229), classificada como "induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone; Atentato Violento ao Pudor (Código Penal, art. 214), classificado como "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal".

Existem ainda os crimes de Rufianismo, Sedução, Corrupção de menores, Incesto, Pornografia, Tráfico de Crianças e Adolescentes e Tráfico de Mulheres. (Mais detalhes sobre os enquadramentos do Código Penal, no link Legislação sobre violência sexual, ao lado) Na proposta do novo código, ainda em tramitação, estão previstas as tipificações de crime de "Abuso sexual de Menor ou Incapaz", "Ofensa ao Pudor do Menor" e "Satisfação da própria Lascívia". Além disso, haverá um capítulo especial pra Exploração Sexual, que terá as tipificações "Tráfico de Pessoas" e "Lenocínio (prestar assistência à libidinagem alheia ou dela tirar proveito)", ou seja, o aliciamento. No Estatuto da Criança e do Adolescente, dos 17 ''crimes em espécie'' previstos, só dois têm relação com sexo. O artigo 240 prevê reclusão de um a quatro anos para quem utilizar menor em peças, novelas ou filmes ''em cena de sexo explícita ou pornográfica''. O 241 estipula a mesma pena para quem ''fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente''. Para Rubens Amador, editor-executivo da Andi - Agência de Notícias dos Direitos da Infância, é "a combinação das leis que garante e amplia os direitos das crianças e adolescentes."

Lauro Monteiro, da Abrapia, (que também é pediatra) afirma que o pedófilo, "na maioria das vezes é um doente, que teve algum tipo de perversão na sua formação, que o leva a ter esse tipo de interesse sexual. Rubens Amador - que faz questão de ressaltar que não é profissional da área médica - concorda com a opinião de Monteiro.

Denúncia

Para punir os criminosos - ou doentes -, a denúncia ainda é a maior arma. Rubens Amador defende que "a denúncia deve ser feita, pois é o primeiro passo para a punição. Quando você silencia, facilita a vida do abusador e do aliciador". A denúncia passa por uma série de fatores, desde a educação sexual em casa e nas escolas até a participação da imprensa na investigação dos casos. Para Monteiro, a educação sexual deve começar pela ação dos pais em casa, ainda por volta dos 1,5 anos, 2 anos. Os pais devem começar ensinando para a criança o que é cada parte do seu corpo, dando os nomes. Depois, por volta dos 3 anos, devem ensinar aos filhos quais são as partes do corpo que ficam cobertas, explicar por que e orientar que eles só mostrem para quem e se eles quiserem. Além disso, a educação sexual nas escolas também é fundamental, pois munindo crianças e adolescentes de informações é mais provável que não se deixem abusar e que denunciem - caso tomem conhecimento de algum caso.

Monteiro não deixa de lembrar que o envolvimento da imprensa é essencial: "A imprensa tem um papel importante e tem que começar a conscientizar a população, principalmente a classe média (que costuma acreditar que esse tipo de coisa só acontece nas classes menos favorecidas) de que a pedofilia está em qualquer lugar". O papel da imprensa na cobertura sobre crimes sexuais contra menores é objeto de uma pesquisa recém-publicada pela Andi, intitulada O Grito dos Inocentes (leia mais sobre a pesquisa na sub-matéria Violência sexual em pauta). A responsabilidade dos profissionais de imprensa parece já ter sido reconhecida pelos próprios que, durante uma conferência internacional sobre jornalismo e direitos da criança, em Recife, em maio de 1998, elaboraram o documento "Direitos da Criança e a Mídia: Diretrizes para os Profissionais da Mídia". Este documento tem a chancela da Federação Internacional dos Jornalistas, que o adotou em junho de 2001, durante o XXIV Congresso Mundial da Federação em Seoul, Coréia. As diretrizes preconizam que todos os jornalistas e profissionais de mídia têm o dever de manter os mais altos padrões éticos e profissionais e devem promover dentro da indústria a maior disseminação possível da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.

Mas, só o esforço da mídia não adianta. A sociedade também pode - e deve - colaborar. Uma dica que pode ajudar as pessoas a identificarem crianças que sofreram abusos são alguns sintomas básicos: introspecção, baixa auto-estima, voltar a fazer xixi na cama, odor, sentimento de vergonha e de culpa. O segredo é os pais ficarem em contato e prestarem atenção nos filhos, pois assim vão perceber uma possível mudança significativa de comportamento. Existem também as marcas físicas deixadas pelos abusos. O site da Abrapia tem uma boa página com alguns indicadores físicos da violência, com imagens (link, ao lado).

Para denunciar abusos ou exploração sexual, as pessoas podem se dirigir aos Conselhos Tutelares que, de acordo com o 13º artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), são as entidades locais às quais devem ser feitas as comunicações. Existem 3000 Conselhos Tutelares no país, mas, se o município não conta com uma unidade, a denúncia deve ser feita na Vara da Infância e Juventude.

Um jeito mais fácil é através do número 0800 99 0500, o já citado disque-denúncia ligado ao Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. As denúncias recebidas pelo telefone são repassadas às polícias locais e para as unidades de referência do sistema, espalhadas por todo o país, para que façam o acompanhamento das denúncias.

Quem quiser se engajar um pouco mais pode se juntar à campanha do site Censura.com.br. A campanha luta para que sejam aprovados os Projeto de Lei 84/99 (que versa sobre crimes cometidos na área da informática e, no art. 15, fala especificamente sobre pedofilia na internet) e o PL 3016/00 (dedicado exclusivamente à exploração sexual de crianças e adolescentes via internet). Segundo a advogada Roseane Miranda, uma das pessoas à frente da iniciativa, "o site nasceu em 1998, quando nos depararamos, em uma sala de bate-papo, com uma foto de uma criança, que aparentava ter uns cinco anos de idade, sendo abusada. Uma das pessoas estava oferecendo essa foto, em troca de outras". Para participar da campanha, as pessoas acessam o site Censura.com.br (link ao lado), fazem download do abaixo-assinado e mandam para os organizadores. Outro apelo, feito aos provedores de acesso à internet, é bloquear ao menos um dos 17 mil sites internacionais de pedofilia. Até agora, conseguiu-se uma adesão, do provedor mineiro Triang.

Maria Eduarda Mattar

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer