Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() ![]() Claudia Andujar ![]() | ![]() |
Ao se aproximar mais um 19 de abril, os índios pretendem não somente se fazer lembrar. Querem resgatar sua identidade, divulgar sua cultura e lutar por seus direitos (veja a agenda completa de eventos nos links ao lado). São cerca de 350 mil vivendo nas aldeias em todo o país. Estima-se que, somando aqueles que vivem fora das terras indígenas, esse número possa chegar a 500 mil. Considerando que houve quem no passado previsse que estariam extintos nos dias de hoje, os números surpreendem. O espanto é maior, no entanto, se lembrarmos que eram milhões há apenas 500 anos. Na verdade, não faz muito tempo, a própria lei brasileira previa que os índios pouco a pouco se integrariam à sociedade e deixariam de ser índios – uma concepção estabelecida no Código Civil de 1916 e reafirmada no Estatuto dos Povos Indígenas de 1973, que permanece em vigor.
Tramitando há onze anos na Câmara dos Deputados e praticamente sem qualquer evolução desde 1994, o novo Estatuto dos Povos Indígenas é ainda – e apenas – uma esperança. A mudança fundamental que o documento traz é justamente o abandono da idéia de que os índios deveriam ser tutelados pelo Estado, uma vez que seriam “incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil”, como expresso no Código. Ocorre que a Constituição de 1998 jogou por terra essa concepção ao assegurar aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O que o novo Estatuto faz, portanto, é regularizar o que já está previsto.
Mudança de paradigma
O Projeto de Lei 2.057/91, que institui o novo Estatuto, foi retirado da Comissão Especial em que se encontrava em 1994, para apreciação pelo plenário da Câmara, e jamais novamente posto em votação. Discutir estratégias para mobilização da sociedade em torno desse documento é uma das prioridades da Semana dos Povos Indígenas, evento que será realizado de 15 a 19 de abril, em Manaus (AM), pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pela Fundação Estadual de Política Indigenista do Amazonas (Fepi), com a participação de ONGs, organizações governamentais e do próprio relator do projeto, o deputado federal Luciano Pizzatto.
O advogado e especialista em direito indígena Carlos Frederico Marés, também diretor do Instituto Socioambiental (ISA), será um dos participantes. Ele garante que não existe explicação razoável para a tramitação do projeto estar suspensa há tanto tempo. “O relator parece empenhado em que ele ande, mas a bancada não faz avançar. A única explicação possível talvez seja a questão da demarcação de terras. Ainda existe quem ache que o índio atrasa o desenvolvimento. O problema é que a discussão não transparece para a sociedade. Por mais má vontade que se tenha contra os povos indígenas, não se vê no Estatuto nada diferente do que a Constituição determina”, lamenta.
A mudança de paradigma determinada pela Constituição mudou também o processo de demarcação de terras. Como exemplo do que acontecia até 1988, Marés cita o Parque Nacional do Xingu. “Uma área relativamente grande foi demarcada de forma arbitrária e os índios próximos foram incorporados a ela. As nascentes ficaram de fora. Hoje, como todo o entorno foi poluído, eles estão sofrendo”. Depois de 1988, o exemplo maior é o do território cedido aos ianomâmis, na área que eles já habitavam. “Só isso, o reconhecimento das terras, já foi uma grande evolução”, afirma. Segundo Marés, é exatamente nas áreas demarcadas antes de 1988 que costumam ocorrer conflitos pela posse de terras como os que têm sido registrados, por exemplo, em regiões de Rondônia e Mato Grosso. “A fronteira agrícola gera o conflito – não só o conflito físico, mas também o da assimilação dos povos indígenas, sua descaracterização cultural e os problemas de saneamento. Acho que o governo está demorando muito a assumir a nova Constituição. O problema é como fazer as políticas públicas se parecerem com a nova Constituição. A questão da saúde teve alguma melhora. Há sinais de que houve mudanças e de que terá de haver outras mais, mas o poder executivo ainda não conseguiu pôr em prática uma política indigenista”, analisa.
O líder indígena Jorge Terena, hoje assessor da Fepi, é mais incisivo. Ele acredita que o governo e alguns segmentos da sociedade querem ver o índio sempre tutelado. E aponta outros interesses para a não aprovação do Estatuto. “Os setores de mineração e os madeireiros não são favoráveis”. Terena vê com certo ceticismo a perspectiva de aprovação do documento. “Se na Câmara já está parado há onze anos, imagine quando chegar ao Senado!”.
Conhecimentos tradicionais
Mantendo como deveres do Estado a educação e a saúde dos povos indígenas, o novo Estatuto assegura às comunidades os seus direitos civis, territoriais e autorais. O documento também dispõe sobre a propriedade dos conhecimentos tradicionais, um tema que está sendo discutido em Haia, na Holanda, na 6ª Conferência das Partes, que analisa a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada há dez anos, no Rio de Janeiro, durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Um dos itens da convenção diz que os signatários do documento (183 países, dos quais 168 já o ratificaram) devem, “em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicional relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas”.
O ISA participa do encontro (que se encerra justamente em 19 de abril) e está apresentando aos conferencistas um documento, produzido em conjunto com a Coiab, no qual comenta a posição oficial brasileira. No documento (veja íntegra na submatéria), as organizações apóiam a determinação de “não aceitar qualquer proposta tendente à criação de banco de dados ou de registros internacionais sobre conhecimentos tradicionais”. Por outro lado, manifestam-se veementemente contra as atitudes contraditórias do governo brasileiro, “que vem se manifestando nos diversos fóruns internacionais como favorável à participação da sociedade civil, dos povos indígenas e das comunidades locais nos instrumentos de gestão do patrimônio genético sem, no entanto, incorporar tal discurso na prática de sua política interna”. Como exemplo, o documento cita a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, órgão governamental que não inclui representantes indígenas ou da sociedade civil.
Embora aborde a questão dos conhecimentos tradicionais, o Estatuto dos Povos Indígenas não se aprofunda, daí a importância, segundo Carlos Marés, das discussões em Haia. “O problema é quando você conceitua o conhecimento tradicional. O Estatuto não avança muito nesse ponto, apenas apresenta a questão, garante os conhecimentos tradicionais e a participação no que resultar desses conhecimentos”. A pouca referência ao tema talvez seja reflexo dos anos que o documento tem passado “adormecido” no Congresso. Outras questões, como o subsídio ao artesanato indígena, não são contempladas pelo texto porque não eram significativas na época em que o Estatuto foi redigido. Mas serão debatidas em Manaus, durante a Semana dos Povos Indígenas. “Vamos falar nos direitos desses povos, nos cuidados que as políticas públicas devem ter, especialmente na concentração populacional e na questão do desenvolvimento sustentável, o etnodesenvolvimento. Vamos procurar esclarecer que as populações indígenas não vivem num mundo de mercado e que isso transforma o que seria desenvolvimento em uma desagregação cultural. Acho impossível que os povos indígenas entrem nas regras de mercado, por isso deve haver subsídios”, diz Marés. “O artesanato deve ser altamente subsidiado, ou não se sustenta, pois não há como competir com o produto industrializado, a menos que entre no mercado de arte. E isso o novo Estatuto não resolve, porque não discute, até porque não era o foco dele na época em que foi criado. Existe, portanto, depois desses onze anos, uma defasagem”.
Ao analisar a situação dos índios no Brasil de hoje, Jorge Terena considera alguns pontos fundamentais. O primeiro é a demarcação de terras – “mas assegurando o desenvolvimento das condições de vida dos povos indígenas, um desenvolvimento pensado pelos próprios povos”. O segundo ponto é a saúde. “Apesar de a Funasa [Fundação Nacional de Saúde] ter assumido a saúde dos índios, com o apoio de algumas ONGs, é preciso que o Ministério da Saúde assegure recursos para treinar essas pessoas e viabilizar o tratamento para as populações indígenas”. Por fim, a educação. “Hoje temos alguns povos com membros terminando o Ensino Médio e procurando entrar na universidade. O governo precisa olhar um pouco mais para isso”, reivindica.
Terena percebe que os índios mais jovens estão começando a reafirmar sua identidade, especialmente no Sul e no Nordeste. “Para nós, é uma conquista. Quanto mais pessoas assumirem sua identidade, melhor, porque fortalece a nossa cultura. Aqui em Manaus, tem gente que não diz que é índio, por temer discriminação – principalmente ao procurar emprego”. Dentro dessa perspectiva, ele acompanha com otimismo a escolha do tema da Campanha da Fraternidade deste ano pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Com o lema “Uma terra sem males”, a campanha volta-se para os povos indígenas e pode ter um papel importante no fortalecimento dessa identidade. No texto de apresentação da campanha, Dom Raymundo Damasceno Assis, bispo auxiliar de Brasília e secretário geral da CNBB, diz que o objetivo da Igreja é “interpelar o governo e a sociedade sobre a difícil situação das comunidades indígenas, isto é, dos descendentes dos primeiros habitantes do Brasil, e convidar a todos à solidariedade para com eles, combatendo toda forma de discriminação e marginalização, defendendo seus direitos – principalmente o direito à terra – e respeitando-lhes o desenvolvimento cultural. Trata-se, em breves palavras, de promover o cumprimento da Constituição Federal (art. 231), que reconhece ‘aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’".
Observando que o Brasil é um país de formação católica, Terena revela a esperança de um novo olhar por parte de governos e sociedade. “A Campanha da Fraternidade pode contribuir para fazer com que a população veja com outros olhos a situação dos índios. Não como empecilhos ao desenvolvimento, mas como aliados importantes”.
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