Você está aqui

Fazendo arte por um mundo melhor

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets













Fotos: Cristina Pedroza de Faria


A arte não distingue gênero, raça ou situação social. É para todos. Está nos sons dos instrumentos tocados por adolescentes de favelas do Rio de Janeiro ou da periferia de Recife. Nos talentos que se revelam em oficinas com moradores de bairros pobres em São Luís, no Maranhão. Na dança e na atitude de meninas e meninos de morros cariocas ou guetos paulistanos. No bom gosto de peças de decoração e vestuário produzidas por mulheres de diversas idades, de baixa renda e enorme talento. Em toda a parte, em todo o país, multiplicam-se iniciativas que procuram combater a segregação social e racial através da arte – em sua infinidade de expressões.

Recentemente, o Instituto Ayrton Senna anunciou as 30 organizações semifinalistas de dez estados diferentes – dentre as 305 inscritas – do Programa Cidadão 21 Arte, que pretende selecionar, no final de maio, até 16 novas parceiras. A seleção obedece a critérios como distribuição geográfica, práticas educativas mais alinhadas com o uso da arte para o desenvolvimento de potenciais e, sobretudo, capacidade de produzir conhecimento. Durante a última semana, o Instituto realizou seminários com a intenção de compartilhar com as entidades classificadas os conceitos que orientam o programa. “O objetivo é que as organizações percebam se estão em sintonia com o que o programa propõe”, explica a coordenadora do Cidadão 21, Simone André. “A partir daqui, eles vão ter de propor um plano de trabalho para responder a seguinte pergunta: como trabalhar com arte para melhorar o futuro das novas gerações?”.

O Cidadão 21 é apenas um reflexo da dimensão que iniciativas desse tipo vêm obtendo. Além dessas, outras igualmente interessantes estão sendo desenvolvidas. Naturalmente, é impossível falar de todas. Mas as poucas aqui mencionadas são representativas. Estão fazendo a sua parte – e a sua arte – por um mundo melhor.

Tirando a vida para dançar

Desde 1997, a comunidade do Morro do Andaraí, na zona norte do Rio de Janeiro, se acostumou a conviver com a música e a dança. A atriz e coreógrafa Carmen Luz aportou ali com a sua Cia. Étnica de Dança e implantou um Centro de Pesquisa Contemporânea em Dança e Teatro, que, mais do que arte, pretende dar às crianças e aos adolescentes da favela uma consciência crítica da realidade, associada ao sentimento de solidariedade. Carmen milita na arte cidadã há mais de 20 anos, mas criou sua companhia somente em 1994, com foco no desenvolvimento de espetáculos profissionais priorizando a participação dos afro-descendentes e na formação de “um novo público e um novo artista”. Ou seja: levar a arte a lugares onde ela não chega e formar artistas socialmente engajados. A idéia é mostrar que um espetáculo produzido na favela não está necessariamente vinculado a formas ultrapassadas de arte. E que a arte contemporânea não precisa ser hermética – o que muitas vezes acaba por excluir o próprio espectador. “Sou uma mulher negra, vinda de uma família de baixíssima renda e sempre me interessei por arte. Faço teatro engajado desde adolescente. E tenho a preocupação de que a platéia compreenda a nossa mensagem. Quando me tornei professora, sempre escolhi trabalhar em escolas próximas à periferia, onde eu pudesse fazer esse intercâmbio com a minha arte”, lembra.

Coordenadora do grupo de teatro da organização não-governamental Criola, Carmen ficava impressionada com a ociosidade dos jovens no Morro do Andaraí. Como não havia ali nenhuma iniciativa semelhante, plantou a semente do seu projeto, que atende atualmente 88 alunos e está montando seu terceiro espetáculo. As estréias, invariavelmente, acontecem no próprio morro. Segue-se um pequeno circuito pelas comunidades vizinhas. Só depois a encenação chega ao asfalto.

“A gente prepara essas crianças e esses adolescentes para o mercado de trabalho das artes cênicas”, explica. O currículo inclui balé, dança moderna, jazz, dança afro, teatro, produção de espetáculos, iluminação e sonoplastia. E o que faz a diferença: cidadania e ética. “O que norteia o nosso trabalho artístico é que a gente tem uma questão social a responder. Eu não perdi o meu poder de indignação, e tento passar isso para os meninos. O nosso trabalho tem que ser uma referência positiva para as outras pessoas. É uma proposta de liberdade e de não querer deixar o mundo do jeito que está. Portanto o nosso discurso tem que ser na mesma proporção da ação. Eu não quero formar jovens que façam sucesso e dêem as costas para o lugar de onde vieram. O nosso objetivo é formar uma consciência solidária”, afirma.

Hip-Hópera

Em São Paulo, onde o rap ganhou força e seu discurso foi incorporado pelos jovens da periferia, o movimento hip-hop tornou-se uma referência para iniciativas como o Hip-Hop Hurra!, desenvolvido pelo Projeto Quixote. O trabalho foi iniciado em 1999, com núcleos de dança, grafite e música e a proposta de fazer intervenções públicas periodicamente em espaços estratégicos da capital paulista, a partir de temas que digam respeito à cidadania. A repercussão dessas intervenções tem sido bastante gratificante, segundo o coordenador do Hip-Hop Hurra!, Auro Danny Lescher. “É um bom indicador de resultados. Já passaram por aqui cerca de 1.500 jovens e outros 1.500 educadores. E nós ficamos felizes quando alguém de Rio Branco, no Acre, conta que viu a gente na TV e decidiu fazer um projeto semelhante por lá. Temos tido vários casos desse tipo”, afirma.

A grande novidade deste ano é a montagem de uma ópera-rap que deverá ser encenada na primeira semana de dezembro. A Hip-Hópera, como já foi batizada, conta com o apoio do British Council, está ainda em fase inicial de montagem e terá a participação de crianças e adolescentes vinculados a projetos sociais. Paralelamente à montagem, a idéia é realizar oficinas sobre cidadania e arte-educação.

Auro mostra-se animado com a encenação, mas revela duas utopias: “Uma é que o nosso projeto não precise existir. Afinal a gente só existe porque uma rede fundamental – que inclui a escola, a família e a sociedade – não conseguiu acolher essas crianças. A outra, que na verdade nem é tão utópica, é a possibilidade de nós, juntamente com muitos outros projetos que são realizados em São Paulo, contribuirmos para o processo educativo formal no nosso país. Eu acredito que a gente vai poder olhar para trás, daqui a uns dez anos, e perceber como esses projetos foram importantes para a educação formal nas escolas. Eu tenho essa confiança”.

Sons da paz

Desarme-se/você não é bandido/Tortura nunca mais/Paz, diz a letra da música Desarme-se, da Banda Macambira, formada por onze adolescentes saídos da periferia de Recife. “Tortura nunca mais” não é uma frase solta, mas uma referência explícita à organização responsável pela oportunidade que tiveram de mudar o rumo das próprias vidas. Todos os integrantes do grupo deram seus passos iniciais na música nas oficinas do Movimento Tortura Nunca Mais realizadas em vários bairros da periferia. Michel Carneiro, um dos instrutores de percussão contratados pela organização, conta que todos os participantes eram adolescentes em situação de risco social, em comunidades como Mangabeira, Mustardinha, Mangueira da Torre, Imbiribeira e Prado. Outro instrutor, o guitarrista Onir, da banda Faces do Subúrbio, selecionou alguns meninos e montou a Macambira há cerca de cinco meses.

“Eles confeccionam os próprios instrumentos, aprenderam a fazer isso nas oficinas. Dois ou três tinham alguma experiência com música, mas a maioria não tinha nenhuma relação maior”, conta Michel. Em suas letras, o grupo fala da realidade da periferia e da violência urbana, com uma variedade de estilos musicais que vai do maracatu ao rap. Os meninos já estão preparando um CD, que deve ser lançado em maio.

Caravana da alegria

De tempos em tempos, quase sempre fora do período de chuvas, as comunidades carentes de São Luís (MA) aguardam com ansiedade a chegada da Caravana Laborarte. Organização fundada em 1972 para promover as manifestações artísticas populares na música, na dança, no teatro e nas artes plásticas, a Laborarte também produz discos e cordéis. Fundado numa época de pleno vigor da ditadura, o grupo manteve a proposta de uma atividade socialmente engajada e crítica que resultou no inevitável: o trabalho com crianças e adolescentes de baixa renda. Uma das principais atrações é a Caravana Laborarte, que desembarca em um bairro qualquer da capital maranhense e promove uma semana de oficinas culturais com os moradores. “Aproveitamos cerca de 30 pessoas em cada oficina [de fotografia, serigrafia, pintura, cerâmica, confecção de tambores e capoeira, entre outras]. No final, fazemos uma apresentação com eles e mostramos também alguns dos nossos espetáculos”, diz Nélson Brito, integrante e ex-coordenador da entidade.

Futuro ‘amarradinho’

Quando iniciou suas atividades, em 1993, a Aldeia do Futuro pretendia oferecer ensino profissionalizante a adolescentes de baixa renda da região de Americanópolis, em São Paulo, onde existem 41 favelas. Seria uma forma de desenvolver seus potenciais, fortalecer seus valores humanos e sociais e dar a esses jovens a perspectiva de uma vida melhor. Três anos depois, a entidade encomendou uma pesquisa e descobriu que muitos adolescentes eram obrigados a parar de estudar devido às dificuldades financeiras de suas famílias. Surgiu, então, a idéia de um projeto com as mães dos alunos que pudesse qualificá-las profissionalmente delas e aumentar a renda familiar. E o caminho seguido foi o do artesanato. Hoje, 150 mulheres participam dos cursos de artes manuais, costura, fuxico (pequenas flores de pano costuradas lado a lado) e amarradinho (uma técnica que consiste em amarrar restos de tecidos cortados no mesmo tamanho).

Irene Bullara, coordenadora dessas atividades, conta que a entidade aceita a participação de mulheres a partir de 18 anos. As alunas, em sua maioria, estão na faixa de 20 a 45, mas há senhoras de mais de 70 anos aprendendo e produzindo. “Elas primeiro participam de um curso de um semestre. As que têm criatividade e gostam do trabalho entram para o grupo de produção e geração de renda. O salário varia conforme o que produzem. Em média, elas conseguem tirar algo em torno de 150 reais. A gente vende a produção para lojas do Rio, de São Paulo, de Brasília, Curitiba, e já mandamos até para o exterior”, diz a coordenadora.

O projeto ainda precisa de apoio financeiro e vem conseguindo se manter com o dinheiro das vendas. Apesar das dificuldades, o talento das senhoras da Aldeia do Futuro já é bastante reconhecido. Tanto que a organização foi uma das escolhidas por uma indústria de malhas para produzir peças criadas por estilistas brasileiros que serão levadas para uma exposição em Lyon, na França, no meio do ano.

Maracatu digital

No mais antigo maracatu em atividade regular no país, a tradição caminha lado a lado com a modernidade. O Maracatu Leão Coroado, de Olinda (PE), mantém um trabalho social na comunidade de Águas Compridas que atende cerca de 30 jovens e oferece cursos de balé, dança afro e capoeira, além de oficinas de informática, em parceria com o CDI – Centro de Democratização da Informática.

O trabalho começou há dois anos e se mantém com muito esforço e trabalho voluntário. As aulas são realizadas em um terreiro de candomblé que pertenceu ao pai do presidente do maracatu, Afonso Gomes de Aguiar Filho. “Estamos com um projeto para fazer a nossa sede”, diz Afonso. “E queremos também montar a nossa biblioteca. Conseguimos reunir cerca de mil livros. Já temos um terreno, que é do próprio Leão Coroado. Faltam os recursos para começar a construir”

Não tão fácil, mas igualmente sedutor

“A arte se mostrou uma linguagem capaz de atrair os jovens”. Quem afirma é o assessor da Coordenação Executiva do Grupo Cultural AfroReggae, Écio Salles. O projeto teve início em 1993, inicialmente em Vigário Geral, no Rio de Janeiro, mas hoje conta com ramificações em três outras comunidades: a vizinha Parada de Lucas, a Cidade de Deus e o Cantagalo.

A primeira conseqüência desse trabalho foi o surgimento da banda AfroReggae, composta por jovens de Vigário Geral cujo talento já foi atestado por artistas como Caetano Veloso, João Bosco e Fernanda Abreu. Na Cidade de Deus, onde a organização mantém uma casa que atende pessoas da terceira idade, foi formado um coral de idosos. Em Parada de Lucas, o trabalho é com informática. No Cantagalo, desde 1996, realizam-se oficinas de circo, com o objetivo de formação de um grupo profissional. O projeto teve o apoio dos franceses do Cirque du Soleil, um dos maiores circos do mundo, que eventualmente envia um instrutor para reforçar as aulas, e do SAAP/FASE. Écio conta que um dos artistas circenses revelados pelo projeto conseguiu emprego no circo norte-americano Ringlin’ Brothers. “Em setembro, pretendemos montar um espetáculo circense com elementos teatrais, comandando pelo diretor Amir Haddad, em que pretendemos contar a história da formação das favelas. Vamos fazer a estréia na comunidade e depois nossa intenção é percorrer o circuito tradicional de teatros. Futuramente, a gente pretende incorporar esse espetáculo ao projeto Conexões Urbanas”, diz Écio.

O Conexões Urbanas, aliás, tem sido uma das mais bem sucedidas iniciativas do grupo. O projeto leva para dentro das favelas shows de grandes artistas, com uma estrutura profissional de grande qualidade. Dele já participaram nomes como Elba Ramalho e O Rappa, entre outros. Atualmente, o Conexões está sendo desenvolvido paralelalemte a outro projeto: o Escolando a Galera, que propicia um diálogo com os alunos das escolas municipais das regiões onde são realizados os shows. Todos os meses, na semana do evento, o Escolando a Galera visita quatro escolas selecionadas pelo Conselho Regional de Educação. Durante uma hora e meia, a banda AfroReggae se apresenta para os alunos e depois seus integrantes conversam com os jovens e falam sobre sua história e sobre o trabalho do Grupo Cultural.

“Nosso objetivo maior é dar uma alternativa para os jovens que estão na iminência de entrar no narcotráfico. Estamos falando, em sua maioria, de jovens negros de favelas, com sua auto-estima lá embaixo. O AfroReggae oferece um caminho que não é tão ‘fácil’, mas que é igualmente sedutor. Ao contrário do narcotráfico, nós oferecemos uma expectativa de vida muito mais duradoura. Tráfico é uma preocupação muito grande no Rio de Janeiro, onde os contrastes sociais são muito evidentes. E a gente quer criar um modo de inclusão social”, diz Écio, que acrescenta: “Há mais ou menos oito anos, a gente conheceu uma quantidade de jovens que não tinha opção de vida, a não ser o crime organizado ou o subemprego. Hoje temos vários jovens que conseguiram conquistar um espaço de forma digna. O que esses jovens da banda AfroReggae, por exemplo, conseguiram fazer de positivo em suas comunidades é um grande exemplo para todas as pessoas. As pessoas vêem que é possível criar um caminho alternativo ao narcotráfico e à vida sem perspectivas que muitas vezes os seus próprios pais levaram”.

Fausto Rêgo

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer