Autor original: Marcelo Medeiros
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“Se a democracia não acabar com o oligopólio das comunicações, o oligopólio acaba com a democracia”. É assim que Wallace Hermann, programador da Rádio Bicuda, localizada no subúrbio do Rio de Janeiro, e ex-diretor da Abraço (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias), define a importância da democratização dos meios de comunicação no Brasil. As rádios comunitárias, segundo Hermann, têm grande importância nesse processo. Apesar disso, elas sofrem com repressão policial e com a má vontade dos políticos para acelerar sua legalização e a concessão de faixas de transmissão. A própria Rádio Bicuda foi vítima de busca por agentes da Anatel em meados de março. “Há muitas manobras no Congresso”, diz.
Em entrevista à Rets, Wallace Hermann fala sobre os problemas enfrentados pelas rádios comunitárias, em especial a Bicuda, seu funcionamento. A rádio comunitária “funciona à base de amor à causa e trabalho voluntário”, afirma.
Rets: Como surgiu a Rádio e qual o seu alcance?
Wallace Hermann: Surgiu em março de 96, quando vários grupos da região se reuniram em torno dos problemas da Serra da Misericórdia, entre eles o reflorestamento. Queríamos fazer um movimento ambientalista, mas levando em conta a questão social, pois o local é cheio de favelas. A Bicuda surgiu, portanto, para ser a voz do movimento local. Além disso, ela estava inserida também no debate pela democratização da comunicação, onde as rádios comunitárias têm grande importância. Foi assim que ela nasceu, reunindo pessoas de diversas tendências políticas e de diferentes regiões do Rio. Hoje a rádio alcança 14 bairros da região da Leopoldina, que é bastante populosa [cerca de 210 mil pessoas].
Rets: A programação é voltada para o meio ambiente?
Wallace Hermann: Em parte. Na verdade, ela é bastante variada. Temos uma parte ambientalista, mas também existe uma “prancheta comunitária”, pela qual todos os programadores passam, que traz notícias locais, informação sobre saúde, meio ambiente etc. Eu desenvolvo um programa para o Ministério da Saúde chamado Ponto com Saúde, do nosso Núcleo de Comunicação e Saúde. Fazemos um programa semanal na Rádio Bicuda e produzimos material em CD para outras rádios comunitárias veicularem. Além disso, capacitamos pessoas que trabalham em rádios para falarem sobre saúde, com ênfase em prevenção à Aids.
Também temos programas mais populares, de música, com bandas novas e samba de raiz. A pauta ambiental não é imposta nunca. Há ainda outras atividades, como a visita de crianças à Serra da Misericórdia uma vez por mês.
Rets: Falando não só da Bicuda, como está a situação das rádios comunitárias hoje em relação a dificuldade de legalização?
Wallace Hermann: Eu já fiz parte da Associação Estadual de Rádio do Rio e fui fundador e diretor da Abraço (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias), que surgiu em 96. Porém, desde 95 estávamos envolvidos na formulação de um Projeto de Lei de regulamentação de rádios comunitárias, realizando encontros e debates. O primeiro a apresentar politicamente o projeto foi o então deputado federal Fernando Gabeira. Entretanto, o deputado Arnaldo Faria apresentou primeiro no Congresso um projeto baseado na lei colombiana de rádios comunitárias. Mas foi um projeto modificado e piorado, apresentado para ganhar as rádios do interior. Depois o Gabeira apresentou o nosso e ainda foram lidos mais uns seis ou sete, inclusive um do próprio governo, que limitava o alcance da transmissão a 400 metros – o que é ridículo.
Em 98 a lei das rádios comunitárias foi sancionada, com o número de 9612/98. Do original, elaborado por nós, só 10% foi mantido. Restou apenas a caracterização das rádios comunitárias como apartidárias, ecumênicas, de gestão participativa, plural e sem discriminação. O restante foi bombardeado, pois éramos minoria na Comissão de Comunicação e a maioria dos deputados tinha ligações com donos de rádios. Ainda tivemos que fazer um esforço para que alguns deputados, identificados conosco, não saíssem da Comissão.
Todos dizem estar atentos à questão da comunicação, mas é da boca para fora. Se fossem mais ativos, muitas coisas teriam sido diferentes, como a privatização das teles. Caso houvesse mais gente gritando, a situação seria diferente.
Quanto à Bicuda, entramos com a papelada naquela época e até agora nada. Acontecem manobras no Congresso: trouxeram o limite de um quilômetro de alcance de volta por pressão da Abert [Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão], mesmo depois desse item ter sido vetado e a lei aprovada, por exemplo.
Nenhuma rádio comunitária com intuito social consegue autorização para funcionar, principalmente em centros urbanos. Tanto que quase não existem rádios comunitárias operando legalmente em cidades como Rio, Belo Horizonte e São Paulo.
Rets: Agentes da Anatel procuraram a Rádio no dia 22 de Março.Como foi essa ação?
Wallace Hermann: Eles fizeram uma investida, fizeram perguntas aos moradores, trouxeram dois carros, um deles com equipamento de rastreamento de sinais de transmissão. Tomamos algumas providências para dar segurança ao local. Fizemos um aviso geral aos programadores, medidas de precaução para não sermos invadidos.
O interessante dessa situação é que o Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar que impede esse tipo de procedimento da Polícia Federal e da Anatel, mas ela não é respeitada.
Não temos medo de um processo judicial, temos argumentos e legitimidade para questionar qualquer ação. A transmissão comunitária não é nenhum crime hediondo para ser tratada assim. Por isso funcionamos na arbitrariedade da lei.
Rets: Um dos argumentos utilizados para a não autorização de funcionamento das rádios comunitárias é o uso que igrejas e políticos fazem delas. Como evitar o mau uso e reconhecer as que prestam serviços?
Wallace Hermann: Não sei bem, mas o caminho com certeza passa pela democratização dos meios de comunicação, pela revisão da política de concessão de canais e faixas. Essa é uma política arraigada desde os tempos de Getúlio Vargas. Hoje em dia a mídia está sob o comando de seis famílias. Esse setor tem que ser considerado estratégico, tem que haver uma política séria para isso.
Não dá para os políticos ficarem reclamando do poder da mídia durante as eleições e depois passar quatro anos relegando medidas efetivas ao segundo plano. Vários falam, inclusive os da esquerda, sobre o poder da mídia, mas na prática as ações são poucas.
Uma solução seria os movimentos sociais perceberem a importância dos meios de comunicação. O MST, por exemplo, só recentemente tem dado mais atenção a esse ponto, depois de acusações de que a mídia estava manipulando suas ações.
Rets: De que forma os movimentos sociais podem colaborar?
Wallace Hermann: Fundando ou participando de rádios e TVs comunitárias. Isso é extremamente necessário, mesmo que se chegue a um caos, que os canais fiquem entupidos. Precisamos ocupar e resistir nesses latifúndios do ar. Mas esse processo é muito devagar, os políticos e mesmo alguns movimentos não querem se indispor com a grande mídia.
A sociedade é refém desse oligopólio e subestima seu poder.
Rets: E qual é o poder desse oligopólio? O que ele traz de tão ruim?
Wallace Hermann: Para começar, ele tira e põe presidente a hora que quiser. Além disso, faz um trabalho de escamoteamento da dinâmica social e produz uma programação de péssima qualidade. As rádios, por exemplo, só tocam música, narram futebol e notícias de agências – é um só cardápio. A luta tem que se radicalizar inclusive na cultura. As rádios comunitárias politicamente são de vanguarda, mas culturalmente estão um pouco atrasadas. As universidades, movimentos sociais e redes cidadãs têm que se engajar nessa luta.
Rets: Como está a situação das rádios comunitárias lá fora?
Wallace Hermann: Na Colômbia, elas possuem melhores condições e na Argentina, a legislação tem mais brechas. De maneira geral, entretanto, sempre são problemáticas, principalmente na América Latina, apesar de sua importância histórica. O movimento mineiro da Bolívia, por exemplo, organizou-se com a ajuda de uma rádio no começo dos anos 40 e daí deflagrou uma greve.
Rets: Como está o poder de influência desse veículo hoje em dia?
Wallace Hermann: Com a televisão, menor. Mas no meio rural, o rádio ainda é muito forte, pois fala com os pobres. Eu mexo com rádio pois trabalho com pobreza. No último Censo do IBGE, o rádio foi o segundo utensílio doméstico mais encontrado, perdendo apenas para o fogão. E mesmo quem não tem rádio, ouve a programação, seja no vizinho ou no boteco. É uma influência subestimada, mas não é para vender cachorro-quente.
Rets: A municipalização da Lei da Radiodifusão comunitária seria benéfica?
Wallace Hermann: Taticamente, ela seria importante. O juiz Paulo Fernando da Silveira, de Minas Gerais, afirmou que o governo federal legislar sobre algo de alcance local fere o princípio federativo. Algumas cidades, como São Gonçalo (RJ), baseadas nesse princípio, já municipalizaram suas concessões. É importante para provocar discussão e colocar em pauta esse problema.
Rets: Algumas rádios comunitárias veiculam propaganda institucional dos ministérios da Saúde e da Educação, por exemplo. Essa atitude não seria contraditória?
Wallace Hermann: Sim, claro. Há uma portaria do Ministério da Saúde, do programa de prevenção a Aids, que prioriza a comunicação comunitária, pois a fortuna gasta com as grandes redes não têm surtido o efeito esperado. Se quiser falar na língua da população e diretamente com ela, tem que falar nas rádios comunitárias. Na televisão, pobre só aparece em desgraça.
Mas essa ligação não deve ser alardeada, pois possibilita que rádios comunitárias tenham apoio. As coisas são assim mesmo. Alguns setores percebem a importância, mas o Ministério da Comunicação não liga. Afinal, concessão é dinheiro.
Se a democracia não acabar com o oligopólio, o oligopólio acaba com ela.
Rets: Como a Bicuda se financia? Qual sua opinião sobre a criação de fundos para rádios comunitárias? Como isso poderia ser feito?
Wallace Hermann: A Bicuda funciona à base de trabalho voluntário, amor à causa e apoio comunitário. Quanto ao fundo, se as rádios comunitárias devem ser sem fins lucrativos e sem publicidade, elas têm que sobreviver de alguma forma. Nos EUA as rádios recebem dinheiro de fundos, na Europa também. Isso não é nenhuma novidade. Parte do Fust [Fundo para a Universalização de Serviços e Tecnologia] deveria ser destinado à comunicação comunitária, às rádios públicas locais. Prefiro esse termo, pois “comunitário” é muito abrangente. Há comunidade judaica, islâmica, portuguesa etc e não necessariamente elas têm rádios.
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