Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
Uma nova escola, com conteúdo novo e outro olhar para quem vê o mundo de maneira diferente. Assim pode ser definido o projeto Escola de Índios, do Centro Cultural Luiz Freire, de Pernambuco. Criado em 1995 para atender a reivindicação do povo Xukuru por uma educação diferenciada, há quase quatro anos abrange crianças de todos os nove povos indígenas do estado.
Desde o tempo da catequese, a ação educativa do povo branco para com os indígenas sempre foi justificada como tentativa de proteção e integração desses povos à cultura da sociedade "civilizadora". O problema é que a maioria dessas iniciativas acabou agredindo ou destruindo as tradições dos índios, pois impunham seus valores e não davam espaço para o envolvimento dos primeiros habitantes do Brasil. Em 1999, entra em vigor uma resolução do Conselho Nacional de Educação que cria a categoria Escola Indígena. A medida nada mais faz do que pôr em prática o artigo 210 da Constituição, que afirma que “o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.
Essas novas escolas, inclusive a Escola de Índios, têm autonomia para organizar seu calendário, treinar seus professores e formular seu conteúdo. Os dias letivos variam de acordo com os costumes de cada povo. Os Fulni-ô, que residem no sertão central de Pernambuco e possuem uma unidade da iniciativa do Centro Luiz Freire, por exemplo, possuem um ritual religioso que vai de outubro a novembro. As férias escolares, por conseguinte, são nesse período. Já os Uxukuru, moradores do município de Pesqueira, também localizado no sertão pernambucano, realizam feiras às quartas-feiras, o que impossibilita as aulas, pois famílias inteiras participam do evento. De acordo com Eliene Amorim de Almeida, educadora e coordenadora da Escola de Índios, a própria concepção de dias letivos deve ser modificada. “Qualquer noção de tempo é cultural e a noção de tempo escolar não deve, ou pelo menos não deveria, ser diferente. Logo, a ordem de que o ano letivo deve ter 200 dias ou 800 horas de aula tem que ser revista, pois cada povo tem seu tempo.”
Os professores da Escola, todos oriundos das aldeias, são capacitados no Luiz Freire por uma equipe de três educadores, dois antropólogos e um professor de História. Além de discutir um novo currículo, adaptado às necessidades de cada aldeia, elaboram o material didático a ser utilizado. O Centro produz livros e outras peças educativas internamente e já formou cerca de 240 professores indígenas. Para elaborar o material, são utilizados registros da história oral, teses acadêmicas, documentos oficiais e entrevistas com moradores das tribos.
Dessa forma, o conteúdo leva em conta os conhecimentos tradicionais de cada povo, além de discutir o currículo – sempre levando em conta a participação dos índios em episódios da História. Um exemplo é o envolvimento deles com a Guerra do Paraguai, geralmente relegado a segundo ou mesmo terceiro plano. Outro ponto trabalhado é a relação do Estatuto da Criança e do Adolescente com a cultura indígena através de oficinas. “O trabalho faz parte da cultura dos índios. O cultivo da terra pelas crianças é educativo, é uma forma de integração delas com a natureza e com a tribo e por isso o ECA deve ser considerado de forma diferenciada nesses casos”, explica Eliene Amorim.
A discussão não pára aí. Já há uma organização de professores, o Copixo (Conselho de Professores Indígenas Xucuru do Ororubá), que debate, sempre que necessário, os problemas encontrados e luta pelos direitos dos índios e das escolas diferenciadas. Participam do Conselho 13 professores e uma liderança de aldeia - devido à distância dessa localidade, que impossibilita a vinda do professor com freqüência. No total, são representadas 23 aldeias.
O impacto tem sido positivo. As crianças que freqüentavam as antigas escolas rurais apresentavam um alto índice de repetência e evasão, que têm sido diminuídos desde a introdução do novo currículo. A principal mudança, entretanto é cultural. “Muitas crianças não se consideravam índias, mas depois do ensino diferenciado, esse aspecto mudou bastante. Agora elas percebem qual a realidade de ser índio –que não é aquela apresentada na TV. Ser índio não é ter cabelo preto e liso, é ser guerreiro, saber lutar pelos seus direitos e identidade”, lembra a professora Lucinéia Santos da Silva.
A existência de uma escola diferenciada de índios é importante para resgatar a identidade cultural dos povos e introduzir o respeito às suas tradições. Mais do que isso, serve também para divulgar a sua cultura para quem pensava não existirem mais índios em Pernambuco. O Centro Cultural Luiz Freire já organizou diversas mostras com fotografias, vídeos e contação de histórias da mitologia indígena em grandes cidades. “Pernambuco pensa que lá não existem mais índios, que isso é coisa da Amazônia”, diz a coordenadora do projeto - para depois explicar o real sentido da Escola: “se um povo é diferente, esse outro modo de viver deve ser preservado e não esquecido. Isso torna a sociedade brasileira mais rica, bonita e democrática. Quanto mais diferença cultural houver, melhor para todos, que podem aprender uns com os outros”.
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