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Mulheres invisíveis

Autor original: Marcelo Medeiros

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O mais recente caso registrado de desrespeito aos direitos das índias foi a morte da índia Pataxó Hã-Hã-Hãe Marilene Xavier, em março deste ano. Dias depois de ir a um hospital para retirar um cisto, Marilene faleceu. A causa mortis apontada foi peritonite aguda, que acontece em cirurgias de laqueadura. Ela teria sido vítima de uma campanha de esterilização de mulheres em andamento há muito tempo, de acordo com Eliane Potiguara.


Fundadora e diretora-executiva do Grumin (Rede de Comunicação Indígena sobre Gênero e Direitos), a escritora Eliane luta desde 1986 pelos direitos das mulheres indígenas no Brasil e acompanhou o desenrolar do caso. A batalha nunca foi fácil – tanto que já foi ameaçada de morte. “Fiquei várias vezes confusa, achando-me louca por estar levando adiante uma bandeira que pouquíssimas pessoas queriam ouvir ou tampouco iniciar um processo de compreensão”, lembra ao falar à Rets sobre as dificuldades encontradas.


Rets: Quais foram as circunstâncias da morte de Marilene Xavier?


Eliane Potiguara: Segundo documento do Cimi/Itabuna enviado ao Grumin, “a índia Maria Aparecida Xavier de Oliveira e o cacique Gerson de Souza Melo, ambos Pataxó Hã-Hã-Hãe de Pau-Brasil, compareceram à Procuradoria da República em Ilhéus, no dia 9/04/2002, para denunciar mais uma crueldade cometida contra o seu povo no sul da Bahia. Perante o procurador Dr. André Luiz Batista Neves, Aparecida Xavier relatou que a sua irmã Marilene Xavier de Oliveira, 37 anos, deu entrada no Hospital São Jorge de Ilhéus, no dia 12 de março de 2002, após ter passado pelo Hospital Arlete Magalhães, em Pau Brasil. Segundo Aparecida, a informação inicial do referido hospital seria para a retirada de um 'cisto' e que a cirurgia foi realizada pelo médico Dr. Jorge Viana. Logo depois da cirurgia, sua irmã voltou para a aldeia, mas seu estado de saúde ficou bastante delicado por vários dias, sendo necessário um novo internamento no dia 19, no Hospital de Pau-Brasil, quando Marilene veio a falecer".


Os parentes de Marilene e as lideranças Pataxó Hã-Hã-Hãe ficaram bastante surpresos com a sua morte, mediante uma simples cirurgia para retirada de um “cisto” e, a partir daí, começaram a solicitar informações sobre o que causou a morte de Marilene. Prestaram queixa na delegacia de Pau-Brasil, mas enfrentaram as negativas do Hospital de Pau-Brasil, através de seu diretor – o medico Sílvio Rabelo –, em expedir o atestado de óbito. A declaração de óbito foi fornecida pelo médico legista em Itabuna, onde consta peritonite aguda como causa da morte.


Aparecida afirmou diante do procurador que sua irmã Marilene com certeza foi “ligada” ou fez laqueaduras de trompas – segundo o próprio médico Sílvio Rabelo, do Hospital de Pau Brasil. Segundo ela, havia um encaminhamento há cerca de um ano junto à Funasa para este procedimento – pelo fato de Marilene não poder ter mais filhos –, mas Aparecida afirma que a Funasa não havia feito nenhum encaminhamento até o momento.


O que mais uma vez causou indignação e revolta junto à comunidade foram os procedimentos dos envolvidos. O Hospital de Pau-Brasil encaminhou Marilene para o Hospital São Jorge de Ilhéus para fazer a cirurgia de laqueadura, sem os exames e cuidados necessários para esta cirurgia, além das autorizações das autoridades competentes (necessárias quando a cirurgia envolve indígenas). Também revolta a omissão de informações verdadeiras para os familiares, inclusive a “causa mortis”.


O procurador André Luiz, diante dos fatos expostos pelos índios, abriu processo para apuração das denúncias imediatamente, solicitando dos hospitais envolvidos a lista de pacientes nos dias citados por Marilene Xavier, para investigar os procedimentos médicos e o nome dos mesmos.


O Conselho Indigenista Missionário, preocupado com a gravidade das denúncias e com receio da retomada da prática de esterilização de índias (tão divulgada e repudiada nestes últimos anos e sem providências concretas e punições para seus praticantes), vem novamente exigir que providências sejam tomadas urgentemente para a apuração desta denúncia. Se comprovados culpa médica e procedimentos irregulares, que os envolvidos sejam devidamente punidos, para que se possa pôr fim a esta terrível prática contra as mulheres indígenas, negras e pobres da nossa região”.


Rets: Quase não há registros desse incidente na grande mídia. A que isso se deve? O tema mulheres indígenas não interessa?


Eliane Potiguara: Lamentavelmente, como escritora e militante indígena que sou há mais de 20 anos, tenho observado que a invisibilidade da situação das mulheres indígenas no Brasil é mais grave do que eu pensava. E como tem sido difícil quebrar dezenas de barreiras para fazer exercer os direitos humanos dessas mulheres!


Temos dezenas de provas concretas, pois nós mesmas passamos por experiências. Uma delas trata-se de quando lançamos o primeiro jornal do Grumin em Altamira, no Pará, no famoso e internacional Encontro dos Povos Indígenas, sobre Hidrelétricas do Xingu. Naquele Encontro, sentíamos os olhares de críticas de alguns antropólogos e insinuações da própria vanguarda do movimento indígena enquanto distribuíamos o nosso jornalzinho.


Quando havia reuniões internas em São Paulo, ficávamos do lado de fora com olhos compridos. Numa reunião de que participei em Dourados (MS), a convite do Cimi, as próprias mulheres tinham medo de participar, porque reunião era um assunto para homens e elas ficavam do lado de fora, mirando pelos cantos com os filhos no colo. No Encontro de Altamira, a índia Tuíra mostrou um facão para um empresário, como forma de contestação sobre o que estava acontecendo com aqueles povos do Xingu, o que foi realmente um impacto, mas esse fato não foi suficientemente decisivo para abrir a discussão ou fazer as pessoas perceberem os problemas extremamente específicos das mulheres indígenas.


Eu mesma fiquei várias vezes confusa, achando-me louca por estar levando adiante uma bandeira que pouquíssimas pessoas queriam ouvir ou tampouco iniciar um processo de compreensão. O impulso que tive neste processo deveu-se ao fato de que minha família indígena Potiguara, da Paraíba, teve que exilar-se de sua própria terra por ação violenta do neocolonialismo do plantio de algodão, por volta de 1927. Meu bisavô foi assassinado (crime impune até hoje) e, pior, foi uma situação totalmente invisibilizada. Quando tentei buscar subsídios para esclarecer o fato, sofri todos os tipos de ameaças, fui até mesmo incluída numa lista de marcados para morrer divulgada em pleno Jornal Nacional, da Rede Globo. Quem duvidar pode buscar nos arquivos.


Minha avó saiu grávida da aldeia, assim como suas três irmãs, tudo rememorado, em 1979, pelo velho índio Marujo, homem cego e muito velho mesmo, que infelizmente faleceu e não pode testemunhar por nossa família. E eu estou com cara de tacho até hoje, tendo inclusive a minha identidade indígena duvidada. E como mulher indígena que sou, filha, neta de mulheres sofridas, mas guerreiras, não consigo calar o meu sangue e me grita nas veias ardentes essa injustiça e o direito à minha cidadania, mesmo tendo nascida no “gueto”, onde aprendi com as mulheres a cultura e a espiritualidade. Minha família “desplazada”, imigrante, terrivelmente pobre, mendigando nas ruas de Recife e depois do Rio, teve que se contentar em viver num gueto indígena constituído por ela mesma, na área de baixo meretrício e de estrangeiros refugiados da Segunda Guerra, que trabalhavam como carvoeiros, bananeiros, tamanqueiros etc.


Naquela época não havia cestas básicas, ONGs de proteção aos direitos indígenas, intervenção internacional. Minha família não teve a quem recorrer. E posso dizer, após anos de estudos nesse assunto, milhares de famílias indígenas fugiram de suas terras para sobreviverem, caindo no racismo da sociedade envolvente. Urge um estudo sobre isso!


E que se faça justiça neste caso. Os negros, na Conferência sobre Racismo, na África, acontecida em setembro de 2001, lutaram e lutam para conseguir reparação. Minha família conseguiu a morte, e eu, várias marcas em minha saúde por viver um clima eterno de instabilidade de cidadania, racismo, pressão política, violências psicológicas, medos.


Os povos indígenas continuam sofrendo violações de seus direitos humanos.Quando eu não identificava essa situação, mas tinha o inconsciente gritando, me achava louca ou achava que o assunto que eu levava adiante era fruto da minha imaginação. Eu me acreditava realmente uma pessoa louca, fora da sociedade. De 1986 até 1996, foi um inferno trabalhar dentro do Grumin. Foram muitas as perseguições políticas. Aí parei tudo para fortalecer-me. E retomei há um ano.


Muita pressão política sofri por levar temas extremamente invisíveis, como, por exemplo, saúde e direitos reprodutivos das mulheres – até entre as próprias mulheres indígenas havia problemas. Antes que o assunto gênero entrasse na moda, nós já estávamos cansadas de gritar no deserto. Houve uma abertura, porque as fontes de doação internacional, exigiam das associações – e, mais tarde, das ONGs – a participação das mulheres e a discussão sobre a relação homem x mulher. A meu ver, temos avançado um pouco, assim como avançou o movimento indígena no Brasil. Mas ainda há muito que fazer.


Rets: Há uma política de esterilização de índias em andamento? Há dados sobre o assunto?


Eliane Potiguara: Sempre houve, e camuflada. Por quê? Porque é mais cômodo para as políticas públicas, assim como a cesariana é mais fácil e a esterectomização também o é.


Quando eu ia aos Encontros do Movimento Indígena, sempre ouvia das próprias mulheres que elas iam ou queriam esterilizar-se porque não podiam ter mais filhos por diversas razões – entre elas, já ter tido bastantes filhos ou por estarem enfermas ou por sofrerem algum tipo de violência, inclusive familiar, causada pelo alcoolismo. Então o que acontece? As mulheres estão desinformadas de seus direitos reprodutivos, os problemas existem, existe uma facilidade para a prática da esterelização devido ao comodismo, as mulheres estão desinformadas sobre seu próprio corpo, as jovens ficam grávidas muito cedo, os homens não têm responsabilidade de sua função dentro da paternalidade, os homens jovens muito cedo estão tendo relações sexuais.


Se perguntarmos se há dados oficiais de esterilizações, eles podem até existir, mas não refletem a realidade, porque estão invisibilizados. Para dar uma contribuição às pessoas que estarão lendo essa entrevista, disponibilizo aqui algumas propostas que podem ser trabalhadas, que foram levantadas no último seminário do Grumin sobre Saúde e Direitos Reprodutivos das Mulheres Indígenas, em 1996, apoiado pela Comissão Européia [leia em Veja Mais].


Rets: Se há uma política de esterilização, ela é mais freqüente em áreas de conflito por causa de terra e acesso a recursos naturais, por exemplo?


Eliane Potiguara: Certamente. Os conflitos dentro das áreas indígenas são causados por invasões relacionadas a interesses políticos, sociais e econômicos, nacionais ou internacionais. Um líder Kaiapó me contou que sua esposa foi-se embora com um pequeno empresário branco. Essa mulher ficou deslumbrada com as ofertas coloridas da sociedade envolvente, assim como outras ficaram atraídas pelos garimpeiros, madeireiros, comerciantes. O fenômeno é que eles atraem essas mulheres com migalhas para as abandonarem mais adiante.


Os Yanomami têm denunciado sempre o assédio, o abuso e a violência sexual contra suas mulheres por parte dos neocolonizadores. As mulheres indígenas que são empurradas para o racismo da sociedade acabam em áreas de prostituição nas grandes cidades, como Manaus, Belém, São Luiz, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo etc. e em todos os meus textos e entrevistas tenho enfocado esse ponto importante.


Urge uma política imediata sobre saúde e direitos reprodutivos para as mulheres e os homens. E as organizações de apoio, sejam elas Igreja, universidade, governo local, partidos políticos, centrais sindicais, inclusive o próprio movimento indígena regional e nacional, devem assumir essa luta.


Tenho dito que em todos os fóruns de debates sobre qualquer assunto deve-se incluir o tópico “Como se situa a mulher indígena naquele ponto?”. O que fazer para melhorar as condições de vidas das mulheres? Como caminhar juntos para a conscientização dos homens e mulheres sobre seu corpo, sobre sua sexualidade e sensualidade? Qual a sua responsabilidade no processo de...?


Na agenda temática desse ano sobre saúde indígena, apesar da solicitação do Grumin, não foram incluídos tópicos sobre direitos reprodutivos. As pessoas não estão sensibilizadas, não conseguem perceber que lutar pela demarcação das terras indígenas, ou direito à propriedade intelectual, ou biodiversidade e desenvolvimento indígenas, ou outro assunto tem que ter também, e obrigatoriamente, a discussão sobre gênero, saúde e direitos da mulher. O que acontece é que esse assunto não diz respeito a ninguém, somente às pobres mulheres que devem se virar para solucioná-lo. Aí, acontece o que aconteceu com dezenas de Marilenes Xavier, que perdem suas vidas na flor da idade.


Na Conferência sobre Mulher Indígena acontecida em novembro de 2000, no Rio Grande do Sul, quando se iniciou a discussão sobre direitos reprodutivos, os homens foram se levantando. Por isso tenho dito: essa luta é de todos!


Rets: Qual o nível de informação das mulheres índigenas quanto a métodos contraceptivos? Como chega esse tipo de informação e qual a sua qualidade?


Eliane Potiguara: Existem os métodos contraceptivos tradicionais, mas muitas vezes podem falhar. Nessa minha trajetória, tenho visto pouco desenvolvimento de políticas públicas neste sentido. Falta verba, no sentido de oferecer capacitação na área de direitos reprodutivos.


O Grumin esforçou-se bastante para promover a capacitação de mulheres indígenas, o que aconteceu com uma parceria que fizemos com a Fundação Oswaldo Cruz e a Funasa, que, me parece, tinha outro nome na época. Foi muito bom, mas ainda ficou aquém. Apenas jogamos as sementes. As médicas e os agentes ilustravam os métodos contraceptivos a alguns homens e mulheres e todos se surpreendiam com aquele conhecimento. Recebiam capacitação, materiais, livros, viam slides, filmes, assistiam palestras etc. Percebi que muitas outras organizações de mulheres pipocaram em suas aldeias, quando eu clamava: mulheres, criem suas organizações dentro de suas próprias casas!


Tudo isso é porque eu via o sofrimento delas, principalmente as mulheres Potiguaras, que esvaíam-se em sangue menstrual e assim mesmo percorriam a pé, horas e horas, para pegar camarão, lolô, entrar no difícil mangue repleto de lama até a cintura, para pegar o caranguejo para seus filhos. Muitas vezes, voltavam com o balaio vazio e cozinhavam o feijão puro, para comer com farinha, feita por elas mesmas.


E as organizações de mulheres indígenas que eram criadas pelo Brasil afora levantavam timidamente a bandeira dos direitos reprodutivos e, de uma forma ou de outra, conseguiam expor a situação, mas não tinham apoio. O governo tenta se esforçar, tenho sabido de alguma coisa. Esperamos que esse empenho cresça, e o governo pode contar conosco, porque muito falta ainda! Apenas as sementes foram lançadas e temos que enfrentar esse desafio!


Rets: Quais os riscos do uso de métodos contraceptivos para as populações indígenas e para a saúde dessas mulheres?


Eliane Potiguara: Os métodos contraceptivos já existem tradicionalmente dentro da cultura indígena. Os métodos não indígenas tentam ser implementados com muita discussão ou conscientização, mas muito timidamente ainda. Os riscos existem, os abortos clandestinos existem. As mortes existem. Os índices? Estão invisibilizados. É preciso realmente uma ampla discussão neste sentido, onde todos estejam envolvidos, como situei acima.


Marcelo Medeiros

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