Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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A ciência avança a uma velocidade impressionante. Temas como biotecnologia, alimentos geneticamente modificados e clonagem de células – impensáveis há alguns anos – trouxeram à tona discussões sobre propriedade intelectual, patentes industriais e biopirataria. Basicamente, o que permeia as descobertas e práticas desse novo mundo é a questão ética. Os avanços da ciência se sucedem, velozes. Não ultrapassar o limite do bom senso é o desafio.
É consenso entre os diversos e diferentes profissionais ligados ao tema: a discussão ética necessária não acompanha a velocidade dos avanços da biotecnologia. “Está muito distante. O brasileiro tem mania de atirar primeiro e pensar depois”, afirma o advogado ligado à questão ambiental Nivar Gobbi. Ele é um dos organizadores do 1º Congresso Brasileiro de Legislação Ambiental, Bioética e Biodireito, que acontece nos próximos dias 9 e 10 de maio, em Ribeirão Preto. A intenção é discutir temas como patentes, genes e bioética – o que, para ele, é de fundamental importância e até agora tem sido feito de forma segmentada. “Temos que juntar todos – o químico com o microbiólogo, com o advogado de direito ambiental e outros – para fazer a informação circular, para articular o debate e o trabalho em torno das questões de biodiversidade e biotecnologia”, afirma.
O presidente da seção paulista da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB, Dr. Renato de Paula Magri, concorda e acredita que a falta de debate é também causa da pouca legislação sobre o assunto: “Infelizmente, não há uma legislação específica e completa. Há inúmeros projetos de lei – mesmo assim, acerca de temas específicos. Hoje em dia, o legislador, o agente do direito, vai buscar base na legislação existente ou nas resoluções da CTNBio e dos Conselhos Regionais de Medicina”.
Um exemplo claro de que a ética não acompanha a ciência está no campo da clonagem. Discute-se a possibilidade da criação de clones humanos enquanto não há sequer uma lei no Brasil sobre o assunto. Além das óbvias questões levantadas, como a interferência do homem em algo que, por natureza, não seria da sua competência – ou, em outras palavras, a perigosa brincadeira de ser Deus -, há questões práticas a discutir. Por exemplo: quem é mãe de um clone? Aquela que gera ou a mãe da 'matriz'? No caso de patentes de remédios, outra questão exemplar: em casos de saúde populacional e de emergência nacional, as patentes de medicamentos podem ser quebradas, para permitir uma produção local a preços mais acessíveis?
Defasagem
A preocupação em estabelecer limites para as práticas científicas envolvendo manipulação genética não é uma novidade. Mas o que se tem hoje, no Brasil, em termos de legislação ligada ao tema, é, basicamente, a Lei de Crimes Ambientais, de 1998; a Lei de Biossegurança, de 1995, que estabelece as diretrizes para o uso da tecnologia do DNA recombinante; e a Medida Provisória 2.186, que regulamenta a Convenção da Diversidade Ambiental, aprovada pelos países participantes da Rio 92. Tramitam diversos projetos de lei que, por causa da vagarosidade do processo legislativo, demoram a entrar em vigor, com chances mesmo de já estarem defasados ao serem sancionados. É o caso do novo Código Civil Brasileiro - que passará a valer a partir de 1º de janeiro do ano que vem - que aborda superficialmente a reprodução humana e falha ao não prever clonagens e crimes de informática, entre outros tópicos.
A defasagem atinge também o projeto de lei encaminhado em 1999 pelo senador Sebastião Rocha (PDT-AP). Atualmente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o projeto determina a proibição da clonagem humana no Brasil e regulamenta a experimentação na área de engenharia genética. Porém, em uma demonstração de que as opiniões ainda não estão devidamente sedimentadas, o próprio autor afirmou recentemente, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, que o texto da proposta já está ultrapassado. Tanto que será realizado um seminário, em junho, no próprio Senado, para discutir com cientistas, líderes religiosos e juristas todas as implicações do tema – afinal, do jeito que está, o projeto impede até mesmo a manipulação genética em benefício do tratamento de doenças – única situação considerada aceitável pelo advogado Renato de Paula Magri. Segundo ele, é preciso lembrar que a tecnologia em reprodução humana vem para beneficiar o ser humano. Magri defende que a clonagem de um ser é “antiética, imoral, despida de fundamento e de praticidade”. Já a clonagem terapêutica, acrescenta, é perfeitamente compreensível e aceitável.
Há, de fato, muito a debater. Trata-se de um universo inteiramente novo. As perguntas que surgem nem sempre encontram resposta adequada nas leis, nos códigos e regulamentos. A bioética ainda está em construção. É preciso que haja um consenso sobre normas – e isso leva algum tempo.
Polêmica
Durante a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, em 1992, no Rio de Janeiro, os países participantes aprovaram um documento com o objetivo de conservar a diversidade biológica e promover “a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado”. Esse documento recebeu o nome de Convenção sobre Diversidade Biológica e foi promulgado pelo governo brasileiro no Decreto nº 2.519, de 16/03/1998.
Mais tarde, a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23/08/2001, regulamentou alguns pontos da CDB e aspectos referentes ao acesso ao patrimônio genético e à proteção ao conhecimento tradicional associado, bem como seus benefícios e o acesso à tecnologia. Nessa mesma MP foi prevista a formação de um Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que se reuniu pela primeira vez no último dia 25 de abril – não sem alguma polêmica.
Na ocasião, foi realizada a primeira reunião do órgão que terá, entre outras atribuições, a responsabilidade pelo estabelecimento de normas técnicas e critérios para gestão e autorização de acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado. O órgão é formado exclusivamente por representantes de órgãos governamentais, o que tem sido duramente criticado por entidades como o Instituto Socioambiental (ISA).
Nurit Bensusan, coordenadora de Biodiversidade do ISA, elogia a criação do Conselho, mas lamenta sua composição. “Ter um Conselho de Gestão do Patrimônio Genético é muito importante, porque quando as regras do jogo são claras isso não abre portas para a pirataria. Mas do jeito que ele está criado, sem a participação da sociedade, dos detentores de conhecimentos tradicionais e até mesmo das empresas, é uma piada”.
O ISA marcou presença como observador na primeira reunião do Conselho, mas o representante da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) questionou a participação da entidade. Segundo Ana Lúcia Delgado Assad, coordenadora geral de Biotecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia e integrante do Conselho, “não era um problema específico em relação ao ISA ou a qualquer outra organização. O que aconteceu foi o levantamento de uma questão de ordem sobre a participação de pessoas externas ao órgão, porque temas sigilosos vão ser debatidos ali”, explica.
O ISA, mais uma vez, critica a postura do Conselho e refere-se à MP para afirmar que ali está prevista a obrigatoriedade de dar publicidade aos seus atos. Da mesma forma, prossegue, a transparência dos processos é recomendada nas Diretrizes de Bonn – que regulamentam o uso de informações genéticas de vegetais e animais e a distribuição das vantagens econômicas resultantes. Essas diretrizes foram aprovadas no início de abril, na 6ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada em Haia, Holanda, com a participação do governo brasileiro.
“O Brasil foi à Conferência defender as Diretrizes de Bonn, mas na prática ele não faz isso. É uma prática contraditória. Para termos repartição justa e eqüitativa de benefícios, é preciso que todos participem da construção e implantação das regras”, diz Nurit.
Ana Lúcia Delgado, no entanto, pede que seja dado um voto de confiança. “Tem que haver uma análise de como vai ser desenvolvido o trabalho do Conselho. Ele não é um ponto final. Está prevista a criação de Câmaras Técnicas para o debate de temas específicos, com a convocação de pessoas conceituadas. Nós estamos aprendendo fazendo. Vamos errar em alguns casos, acertar em outros. E vamos ouvir os especialistas que forem necessários. Agora, o que a gente precisa é de um crédito de confiança”.
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