Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Novidades do Terceiro Setor
Pesquisa realizada com as 20 maiores empresas farmacêuticas mundiais revelou que, nos últimos cinco anos, nenhuma delas fez chegar ao mercado qualquer droga voltada para o tratamento de doenças cuja incidência esteja limitada às regiões mais pobres do planeta. A informação consta do documento “Desequilíbrio fatal”, recém-divulgado pela organização Médicos sem Fronteiras, que demonstra o descaso da indústria farmacêutica e do poder público em relação às enfermidades que atingem os países em desenvolvimento.
A falta de investimento em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos é o critério utilizado para classificar as doenças como negligenciadas ou extremamente negligenciadas. No primeiro caso estão aquelas que atingem predominantemente os países pobres, embora também se manifestem em alguns países do Primeiro Mundo – por exemplo, a tuberculose e a malária. No segundo caso incluem-se doenças que afetam exclusivamente as regiões pobres, como o Mal de Chagas e a doença do sono. Uma vez que as populações vitimadas têm poucos recursos e seriam incapazes de arcar com os custos do tratamento, deixam de ser um mercado atraente para os grandes laboratórios. Justamente por isso, acabam ficando à margem dos esforços de produção de novas drogas.
Elaborado pela Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais e pelo Grupo de Trabalho para Doenças Negligenciadas (DND), o documento mostra que 80% da população mundial beneficia-se de apenas 20% dos remédios produzidos. Nos últimos 25 anos, apenas 15 novas drogas foram desenvolvidas para o tratamento de doenças tropicais e tuberculose (que atingem sobretudo regiões pobres), contra 179 para doenças cardiovasculares. Para Michel Lotrowska, representante no Brasil da campanha, as empresas farmacêuticas priorizam o lucro, daí a nítida preferência para o atendimento aos países desenvolvidos. “Não se trata de uma alocação inadequada da indústria farmacêutica. Trata-se de uma falha de mercado para as doenças negligenciadas que é acompanhada de uma falha de política pública, já que nesses últimos 25 anos o setor público tem deixado cada vez mais nas mãos do setor privado farmacêutico a escolha das prioridades de desenvolvimento de novos medicamentos. Essa escolha sempre será baseada no mercado potencial e não nas necessidades de saúde pública”, explica.
O investimento em pesquisa, no entanto, acontece quando a doença até então negligenciada chega aos países mais ricos. “A Aids é um bom exemplo de doença parcialmente negligenciada”, diz Lotrowska. “Apenas 5% das pessoas com HIV/Aids vivem nos países desenvolvidos e têm acesso aos anti-retrovirais desenvolvidos pelas empresas multinacionais e vendidos caríssimos para populações ou países de alto poder aquisitivo. Esses medicamentos foram desenvolvidos para estes 5%. Na África, onde a maior parte das pessoas com HIV/Aids reside, o acesso a essas medicações não é uma realidade. Trata-se de doentes negligenciados”.
Lotrowska não acredita na possibilidade de surto epidêmico de doenças que hoje se manifestam de forma restrita, pois há limites para a negligência. “Quando uma doença começa a ser ameaçadora para toda a população, em geral, ela não continua a ser totalmente negligenciada”, esclarece. Como exemplos, ele cita a tuberculose e a malária, que ainda são objeto de pesquisas pelo fato de ameaçarem cidadãos de países ricos – “ou, pelo menos, os cidadãos que viajam para os países em desenvolvimento”. Outras, porém, como a leishmaniose e o Mal de Chagas, permanecem negligenciadas por não constituírem uma ameaça política. “O setor público tem que assumir o seu papel nesse processo de desenvolvimento de drogas, baseado em evidências de saúde pública e em necessidades, não em fatia de mercado”.
Propostas
O documento “Desequilíbrio fatal” apresenta algumas recomendações. Entre elas, o incentivo a projetos de transferência de tecnologia em pesquisa e produção de drogas para países em desenvolvimento e a sugestão de que a Organização Mundial de Saúde (OMS) lidere um movimento por uma agenda essencial de pesquisa e desenvolvimento. Os governos, por sua vez, deveriam criar estruturas favoráveis à criação de remédios, de modo a preencher os espaços deixados pela indústria farmacêutica. O poder público deveria ainda obrigar – possivelmente a partir de um tratado global – as indústrias a investirem um determinado percentual de sua receita em pesquisa e desenvolvimento voltados para doenças negligenciadas.
Lotrowska critica a falta de uma política clara de inovação para doenças negligenciadas nos países em desenvolvimento. Além de ter acesso aos recursos tecnológicos, diz ele, é preciso que o poder público determine a prioridade de uso dessa tecnologia. “O dinheiro público tem que ser utilizado da melhor maneira para a população, inclusive para as populações excluídas”, afirma. “Não conheço totalmente os avanços para a dengue, mas, certamente, se a dengue estivesse espalhada nos Estados Unidos ou na Europa, haveria mais pesquisas sobre essa doença que afetou tanto o Rio de Janeiro neste verão. Quem pesquisa a dengue no Brasil? Quem desenvolve uma vacina para a dengue no Brasil? São áreas prioritárias que vão se definindo aos poucos, e o poder público está entrando ativamente nesta empreitada criando o fundo setorial da saúde e discutindo justamente as prioridades desse fundo. É fundamental que as doenças negligenciadas entrem como prioridades nesse tipo de fundo e que haja uma visão não mercantilista para o desenvolvimento de novas drogas para essas doenças”.
DNDi
Uma das principais propostas apresentadas no documento diz respeito à criação de uma entidade sem fins lucrativos voltada para o desenvolvimento de drogas para doenças negligenciadas. Essa entidade teria origem no próprio Grupo de Trabalho DND, que é formado por especialistas de todo o mundo – entre eles, dois brasileiros: Eloan Pinheiro, da Fundação Oswaldo Cruz, e Jorge Bermudez, da Escola Nacional de Saúde Pública. Seu objetivo seria coordenar, monitorar e organizar redes de pesquisadores, institutos e empresas farmacêuticas em torno de projetos que possam fazer chegar à população, em médio prazo, novos medicamentos.
A criação da DNDi (Iniciativa de Drogas para Doenças Negligenciadas) é, ao que tudo indica, questão de tempo. No momento, o estatuto da futura entidade está em discussão. “O DNDi terá como membros fundadores institutos e fundações públicas governamentais e não-governamentais e trabalhará com as empresas farmacêuticas sobre projetos específicos financiados pelo setor público. A Fundação Oswaldo Cruz será, provavelmente, um membro-fundador”, informa Lotrowska.
Faça aqui o download do documento “Desequilíbrio fatal”.
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