Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Reza o dito popular que "ser mãe é padecer no paraíso". Se isso for verdade, "paraíso" – o utópico lugar, cheio de delícias, para onde iriam as pessoas a fim de encontrar descanso depois de viverem percalços e se manterem firmes – é um termo e um desfecho apropriados para o que vivem muitas mulheres no processo de conceber e ter filhos. Hoje, as mulheres não querem simplesmente reproduzir quando seus corpos dizem sim. Querem ter controle e autonomia para dizer quando e como vão surgir seus herdeiros. Agora, além de mãe e dona de casa, a mulher é profissional, às vezes arrimo de família, e quer, além de tudo, ser feminina e exercer sua sexualidade. O desenrolar dessa nova ordem – que no Brasil teve como um dos marcos a conquista do direito ao voto, em 1932 – foi acompanhado pela tecnologia, que trouxe o bebê de proveta, a indução à ovulação, a laqueadura de trompas, as pílulas anticoncepcionais, os preservativos – tanto masculinos quanto femininos –, a administração de hormônios, várias técnicas de esterilização e demais subterfúgios para se ter controle da reprodução humana e prazer sexual sem riscos. Essas técnicas recebem a denominação de "tecnologias reprodutivas" e são uma parte do debate sobre direitos reprodutivos.
Falar em tecnologias reprodutivas é falar do famigerado aborto. A luta pela sua descriminação já não é mais novidade nas reivindicações de organizações feministas ou femininas. Conta, inclusive, com menções públicas a favor por parte da primeira-dama Ruth Cardoso. Não se trata apenas de permitir à mulher um maior controle na reprodução, possibilitando que se planeje a formação da família e dando maior autonomia a ela para decidir sobre sua vida. Existe também o componente do risco à saúde. É simples: a proibição não impede que aconteçam os abortos. Eles acontecem do mesmo modo, porém clandestinamente. Dados trabalhados pela Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (RedeSaúde) indicam que, no Brasil, o total de abortos clandestinos em 2000 variou entre 750 mil e 1,4 milhão. As estimativas foram feitas levando em conta, entre outras coisas, as internações para abortos e curetagens no Sistema Único de Saúde, das quais 85% se devem a complicações por abortos provocados ou clandestinos. Essas mulheres chegam aos hospitais públicos precisando de tratamento, pois – como a grande maioria não tem dinheiro para pagar uma clínica clandestina que forneça um bom serviço – acabam fazendo as microcirurgias em estabelecimentos de condições precárias. Nesses casos, as complicações decorrentes de um procedimento mal-executado são comuns. Muitas ficam estéreis. Outras tantas morrem – "o aborto é a quarta causa de mortalidade materna", afirma a coordenadora da RedeSaúde, Maria Isabel Baltar.
O aborto induzido só é permitido no Brasil quando se trata de risco para a vida da mulher ou de gravidez resultante de estupro, ambos previstos no art. 128 do Código Penal Brasileiro. Depois disso, em 1998, o Ministério da Saúde expediu Norma Técnica dispondo sobre "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes", que reforçou o respaldo legal aos hospitais públicos que pudessem oferecer os serviços de aborto permitido. Assim, hoje em dia, são 27 hospitais, espalhados por 12 estados, dando atendimento oficial nos casos de aborto legal. "Essa inovação, iniciada dos anos 90, podemos dizer que foi um avanço no reconhecimento e na promoção da saúde da mulher. Mas não podemos esquecer que foi resultante, em grande parte, das pressões realizadas pelo movimento feminista", lembra Maria Isabel.
Porém outros aspectos da reprodução assistida ainda precisam de atenção, como a regulamentação das técnicas mais recentes de medicina reprodutiva. Nessa área, o Brasil não contraria sua fama de terra de contrastes: apesar de o Código Penal, da década de 40, já prever aborto nos casos de risco à saúde da mulher e de estupro, ele não foi atualizado para incorporar as novas demandas do movimento feminista. Além disso, desde 1984, quando nasceu o primeiro bebê de proveta brasileiro, a medicina reprodutiva no país desenvolveu-se a passos largos. Sua regulamentação, no entanto, continua em ritmo de tartaruga. Em 2000, três eram os projetos de lei sobre reprodução medicamente assistida tramitando no Congresso Nacional. "Hoje em dia, continua rigorosamente a mesma coisa", testemunha Débora Diniz, antropóloga e uma das diretoras da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), criado em 1983 pelo Ministério da Saúde, é outro avanço no papel que precisa ser mais bem concretizado. Considerado uma das principais conquistas do Movimento Feminista no Brasil, o Paism incorpora uma série de demandas específicas à saúde das mulheres, buscando o atendimento integral a suas necessidades em todas as fases da vida, e não apenas na fase reprodutiva. Sua aplicação prática, como referência para a otimização dos serviços do Sistema Único de Saúde, no entanto, ainda deixa a desejar.
Segundo Elizabeth Saar, do Cfemea, além dos três projetos tramitando no Congresso sobre reprodução medicamente assistida, existem outros tantos de alguma forma relacionados a saúde feminina, sexualidade e direitos reprodutivos. No entanto, a demora na conclusão e aprovação dos processos, segundo ela, deve-se em parte ao receio dos legisladores de se exporem e defenderem temas ainda polêmicos para a maioria da sociedade. "A velocidade da medicina não é acompanhada pela discussão moral. O que pega atualmente não é a discussão técnica, mas a discussão moral", afirma Elizabeth, pessoa responsável no Cfemea por acompanhar junto ao Poder Legislativo os projetos de lei na área de saúde, sexualidade e Aids.
Outros direitos
De fato, a discussão moral não acompanha e tampouco privilegia todos os aspectos necessários. Os direitos reprodutivos exigidos pelas mulheres têm facetas sociais, econômicas e psicológicas que ultrapassam o simples controle de natalidade, sendo uma das conseqüências deste último. Para Débora, o debate sobre reprodução fica, na maioria das vezes, restrito à Medicina, ao Direito e à Igreja, pecando em não levar em conta as perspectivas feministas. Sonia Corrêa – pesquisadora do Projeto Iniciativa Gênero, desenvovido pelo Ibase em parceria com a Rede Dawn, e membro do Comitê Nacional sobre Pequim +5, entre outras atribuições – tem vasto estudo demonstrando a relação íntima entre a reprodução e a realidade socioeconômica. Em entrevista à Rets no mês de março, Sonia afirmou: "A reprodução biológica está intimamente ligada às relações de gênero, à sexualidade. As mulheres terem mais ou menos filhos tem impacto sobre a economia e sobre a sociedade. No entanto, as pessoas tendem a pensar a reprodução como um fato privado. Mas não é. A decisão da reprodução é, sim, um fato privado, mas tem repercussões sociais. Compreender isso é importantíssimo para a elaboração de políticas sociais e econômicas". Débora Diniz, da Anis, concorda: "Esse é um aspecto que pouca gente lembra, mas que é, sem dúvida, de extrema importância".
Para fazer valer no dia-a-dia essas conquistas é que grupos como SOS Corpo, Anis, Cfemea e RedeSaúde propõem, acompanham e demandam políticas públicas, regulamentação e aplicação das leis relativas a saúde e sexualidade. O SOS Corpo, por exemplo, promove pesquisas e capacitações na área de atendimento médico à mulher. Baseada em Recife, Pernambuco, há vinte anos a instituição acompanha o debate. "O que se percebe é que a idéia de direitos no campo da reprodução está muito mais disseminada atualmente. Mesmo nas classes menos favorecidas, que têm pouco acesso à informação e às técnicas referentes, há pelo menos a manifestação do desejo de ter autonomia sobre a reprodução", afirma a coordenadora de pesquisa da entidade, Ana Paula Portella, que conclui: "Essa popularização da informação é fruto direto da ação do movimento feminista". Débora acredita que a mídia também é muito responsável pelo fato. No entanto faz isso "carregada de fascínio, de forma acrítica".
A instituição onde Débora atua, a Anis, promove a pesquisa e o ensino da ética e da bioética, relacionando-a à temática dos direitos humanos, do feminismo e da justiça entre os gêneros. A RedeSaúde, articulação do movimento de mulheres do Brasil reúne hoje 110 instituições, realiza estudos, dossiês e cartilhas, presta serviços e realiza o acompanhamento das políticas públicas. O Cfemea, sediado em Brasília, acompanha de perto o andamento dos processos na Câmara dos Deputados e no Senado, além de propor aos legisladores novas políticas públicas. Segundo Elizabeth, a intenção "é garantir, acima de tudo, a saúde integral da mulher, inclusive a psíquica, e reafirmar que a garantia dos direitos reprodutivos trata, em última instância, da possibilidade das mulheres poderem falar: 'nosso corpo nos pertence'".
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