Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
De acordo com o Unicef, 18 mil crianças e adolescentes são espancados no Brasil todo ano; no mundo, são 500 mil vítimas anuais; em São Paulo, quase metade das mortes de crianças de 5 a 9 anos se deve a acidentes e à violência doméstica; em Pernambuco, a cada 15 segundos, uma mulher sofre algum tipo de agressão em casa. Os números são impressionantes, mas há gente realizando trabalhos para tentar denunciar e minimizar esse grave problema, que atinge todas as classes sociais. Uma dessas iniciativas é o projeto Atos (Atendimento Psicológico, Psicopedagógico e Orientação Social), do grupo Tortura Nunca Mais.
Presente desde agosto de 2001, em oito comunidades de baixa renda espalhadas pelas cidades pernambucanas de Goiana, Cabo, Ipojuca e Recife, o Atos orienta pais e professores de alunos de escolas públicas a melhorar as relações interpessoais.
A idéia do projeto é antiga. Em outros programas do Tortura Nunca Mais, como o “Ação para Cidadania”, foi detectada a carência de psicólogos atuantes naquelas comunidades. “As pessoas nos procuravam para falar sobre seus problemas pessoais e pediam ajuda”, lembra a psicóloga Mônica Guarines. Já no trabalho de prevenção à violência nas escolas, os participantes perceberam que algumas crianças freqüentemente apareciam machucadas, com hematomas e cortes. Um grupo de profissionais de psicologia foi reunido para discutir essas demandas e assim surgiu o Atos, que hoje conta com seis psicólogos.
A decisão pelo trabalho em escolas se deve ao fato de a violência doméstica geralmente migrar para a sala de aula, pois esta, de acordo com os idealizadores, é a primeira célula social depois da casa. A situação se agrava ainda mais, pois muitas vezes os profissionais lidam com um histórico familiar de abandono. “Esses netos de pessoas que um dia também foram crianças sem atenção chegam cada vez mais carentes à sala de aula, com um comportamento que se choca com o do professor e de outros alunos. Isso é reflexo da violência sofrida em casa”, explica Guarines. Crianças que sofrem violência doméstica geralmente apresentam dificuldade de aprendizado, são violentas, hiperativas e lideram brincadeiras agressivas.
O processo é simples. A equipe busca uma escola e se propõe a ficar nela durante um ano, procurando melhorar as condições de vida das famílias indicadas pela direção ou pelos professores. A primeira etapa é uma reunião com os pais. Mas a eles nunca é dito que se trata de um tratamento psicológico, e sim de uma proposta pedagógica para melhorar o desempenho dos alunos e as relações pessoais – o que não deixa de ser verdade. A intenção é atrair o maior número de pessoas possível, e não afastá-las por medo ou preconceito com a psicologia. A tática dá resultado, pois a presença dos pais tem sido massiva.
Depois de serem ouvidos, os pais dão lugar aos mestres. Estes, pela convivência com os alunos, devem indicar os que têm mais urgência de acompanhamento. Antes, porém, são capacitados para perceberem melhor os problemas infanto-juvenis e a violência praticada por eles mesmos, sem notarem. Isso porque brincadeiras feitas em sala também são consideradas formas de violência. Ao todo, dez famílias são indicadas por semana.
A consulta é feita apenas com os pais, que em 71% dos casos são os agressores. O objetivo, além de tentar resolver problemas já existentes, é prevenir novos casos. Os parentes recebem atendimento convencional – o mesmo dado em clínicas particulares –, ou seja, falam sobre seus problemas e depois recebem orientação. Casos enviados pelos Conselhos Tutelares também são examinados. O acompanhamento é feito semanalmente durante seis meses (tempo de duração do patrocínio do projeto), apesar de a duração ideal ser de, no mínimo, um ano, de acordo com os organizadores.
Para receber os pais, espaços fora da escola são reformados. Em Cabo, por exemplo, a prefeitura cedeu a sala de uma creche em péssimas condições. O Tortura Nunca Mais entrou com o material e o município com a mão-de-obra. Apesar de não atingir toda a unidade, ao menos um espaço foi melhorado.
Geralmente creditada à pobreza, a violência social tem outras causas. Envolve questões de gênero, contexto histórico-social e psicológico. “É algo que acontece em todas as classes sociais”, afirma Amparo Araújo, coordenadora do Atos. “A classe média, porém, a camufla mais. As delegacias da mulher recebem poucas mulheres com boas condições de vida, mas isso não quer dizer que não haja violência sobre elas”, completa.
Além dos maus-tratos com as crianças, o Atos também trata da violência contra a mulher. Quando, por exemplo, um homem abusa da filha de sua companheira, muitas vezes ela deixa de tomar uma atitude por medo de perder o namorado e até mesmo por vergonha. “Em alguns casos, temos que mostrar que amar não é apanhar. Algumas pessoas crescem apanhando e por isso pensam que isso faz parte do amor”, diz, triste, a psicóloga Guarines.
Apesar do pouco tempo e da indisciplina de muitos pacientes – que faltam às consultas marcadas ou abandonam o acompanhamento –, já estão surgindo resultados, como a melhoria da auto-estima dos atendidos. “A psicologia era vista como tratamento exclusivo da elite, mas agora ela chega também às classes populares. Pobre também é humano, tem crise existencial, complicações na família etc. Somos todos iguais, o que difere é a nossa classe social. E isso traz frutos”, diz Araújo.
Para os integrantes do projeto, as palestras, conversas e reuniões com pais e mestres, além de esclarecerem diversas dúvidas sobre violência doméstica, também fortalecem a cidadania. Dessa inovação surgiram crianças mais calmas, mulheres mais valorizadas e ativas, além de professores mais atentos aos problemas de seus alunos e a si mesmos.
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