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Saltando obstáculos aos plenos direitos

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Com a promulgação, no dia 26 de abril, do decreto legislativo nº 57/2002, os brasileiros passaram a contar com a possibilidade de recorrer a mais um comitê internacional para fazer denúncias envolvendo violações aos direitos humanos. O decreto reconhece a competência do Comitê Internacional para a Eliminação de Discriminação Racial (CERD), conforme previsto no artigo 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Até então, o Brasil já havia reconhecido outras duas instâncias internacionais de defesa dos direitos humanos: o Comitê contra a Tortura e Formas de Tratamento Cruéis e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

James Cavallaro, diretor executivo do Centro de Justiça Global, considera que a promulgação do decreto é um avanço significativo, pois o país demorou a aceitar a fiscalização desses comitês, embora manifestasse apoio às normas da Convenção. “Isso democratiza muito o processo, pois permite que se investiguem denúncias de qualquer cidadão que alegue violação de direitos humanos”, afirma. Os recursos somente poderão ser encaminhados ao comitê internacional depois de esgotadas todas as instâncias jurídicas.

O Brasil ratificou a CERD em 1968 e o documento entrou em vigor no ano seguinte. Desde então tem obrigação de cumpri-la. Um dos deveres assumidos é o de encaminhar relatórios periódicos sobre a situação de raças e etnias e os abusos cometidos. Segundo Cavallaro, o governo federal vem cumprindo com essa obrigação, mas os relatórios têm sido entregues com atraso.

O secretário de Estado dos Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, não nega que haja atrasos eventualmente, mas contra-argumenta: “Apesar disso, nossos relatórios são extremamente transparentes. Não há país no hemisfério Sul que pratique tamanha transparência”. O secretário pretende que em breve seja formado um grupo de trabalho misto – com representantes do governo e da sociedade – para a elaboração dos relatórios. “O decreto já está pronto”, afirma

Adiamento

O Brasil também está próximo de reconhecer um outro comitê internacional de defesa de direitos humanos. No dia 5 de junho, o plenário do Senado Federal se reúne para votar o Projeto de Decreto Legislativo 01/2002, que aprova o texto do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). A aprovação já poderia ter ocorrido no dia 25 de abril, quando a votação estava inicialmente marcada. Na mesma manhã, no entanto, Dom Raymundo Damasceno, secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi o portador de uma carta aos senadores que solicitava o adiamento da votação, sob o argumento de que a ratificação do protocolo seria admitir ingerência externa em assuntos internos do país. O documento dizia ainda que o comitê internacional responsável por fiscalizar a implantação da CEDAW estaria cometendo abusos em defesa do aborto, do homossexualismo e da prostituição. A carta, embora sem a assinatura do presidente da CNBB, era subscrita por vários bispos. Em função desse documento, alguns parlamentares decidiram solicitar – com sucesso – o adiamento da sessão.

O movimento feminista reagiu com surpresa, uma vez que o projeto tramitara durante aproximadamente um ano no Congresso Nacional, sem qualquer manifestação semelhante. O adiamento motivou a realização, em 21 de maio, do debate público “Protocolo Facultativo à CEDAW: um compromisso internacional com os direitos humanos das mulheres”, no próprio Senado. O objetivo do encontro foi esclarecer as dúvidas dos senadores e da sociedade sobre o significado do protocolo e a importância da sua aprovação. Participaram do evento representantes do governo, do Legislativo e de organizações da sociedade civil, entre eles a presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Solange Bentes Jurema; a professora de Direitos Humanos da PUC-SP Flávia Piovesan e, representando a CNBB, D. Aloysio José Leal Penna, arcebispo de Botucatu (SP) e responsável pela Pastoral da Família.

A opinião de D. Aloysio, naturalmente, era a mais aguardada. Ele enfatizou a importância dos tratados, acordos e protocolos internacionais em torno da garantia de políticas públicas sociais e agradeceu aos senadores por terem concedido “um pouco mais de tempo para que setores interessados pudessem aprofundar tão importante assunto”. Lamentou, porém, que essa providência não tivesse sido tomada pela Igreja com mais antecedência.

Diretora executiva da organização não-governamental Agende (Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento), que apoiou a realização do debate, Marlene Libardone lembra que D. Aloysio, em seu pronunciamento, reconheceu que o Estado é laico e que a Igreja não pode interferir. “Ele não afirmou categoricamente que apoiava o Protocolo, mas, ao final, admitiu que a carta havia sido uma falha”, revela. Marlene considera que o evento foi extremamente importante, em particular por trazer uma posição mais moderada da CNBB. “Houve um recuo e criou-se um clima favorável à aprovação”.

Dom Aloysio Penna, em viagem, não foi localizado por nossa reportagem. D. Raymundo Damasceno, que entregou a carta aos senadores, preferiu não se pronunciar a respeito do que disse D. Aloysio. Admitiu, no entanto, que o documento não continha uma opinião oficial da CNBB. “Aquela carta foi uma posição encaminhada por alguns bispos”, disse.

Secretário não se lamenta

Quanto à longa demora de todo o processo envolvendo as convenções internacionais, o secretário de Estado dos Direitos Humanos responde que não pretende “ficar chorando pitangas”. “O que me importa”, afirma, “é que foi aprovado agora. O retardo à aprovação do artigo 14 cabe exclusivamente ao legislativo, que está sobrecarregado”. Paulo Sérgio Pinheiro reconhece que a estrutura de que dispõe é insuficiente, mas não se lamenta. “A Secretaria dos Direitos Humanos é recente, tem apenas quatro anos e algo em torno de 150 a 170 funcionários, mas fizemos um convênio com cerca de 20 estados para cooperação mútua. Evidentemente a Secretaria está numa situação inicial. Se ela se consolidar no próximo governo, eu já fico extremamente satisfeito”.

Para James Cavallaro, do Centro de Justiça Global, o Brasil deveria ter uma Comissão Independente de Direitos Humanos, com um presidente escolhido pela sociedade civil. “Talvez façamos uma campanha nesse sentido no ano que vem”, diz.

Paulo Pinheiro é favorável, mas pondera: “Enquanto não se cria essa comissão, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDPH) vem desempenhando esse papel. Ele tem uma composição paritária com a sociedade civil e seus membros têm enorme independência. É o órgão de direitos humanos mais antigo das Américas. Acho mesmo que seria fundamental que uma comissão tivesse alguma vinculação estatal. Uma comissão que não pudesse contar com a Polícia Federal não teria função em país algum”, explica. “Quem cria obstáculos às decisões do CDPH comete um crime federal. Agora, fazer uma comissão só para criar mais uma ONG de direitos humanos não teria sentido, até porque as ONGs já fazem esse trabalho muito melhor”.


Fausto Rêgo


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