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Hematoma interno

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

Alzira Rufino*


Perguntamos por que nós mulheres agüentamos tantos anos de violência no lar e não abandonamos o companheiro. Perguntamos por que nós negros e negras toleramos tanta humilhação e tanto sofrimento. Os agressores acham que são absolutos em sua maneira de pensar. Que temos menos-valia porque somos negros, somos mulheres, somos gays e lésbicas, somos trabalhadores/as e pobres.


Ainda há timidez em nossas respostas. Temos que derrubar essas muralhas do conformismo, pular todas essas barreiras, externas e introjetadas e desatar os nós. Enquanto profissional de saúde, acredito que muito pouco foi feito para amenizar a dor da rejeição que marca profundamente a nossa afetividade, as nossas respostas à vida, enquanto raça negra e enquanto mulheres.


Trata-se de uma violência diária que não pode ser vista apenas como um caso de polícia, ou de justiça. Racismo e violência contra a mulher, não se trata só com medicamentos, com denúncias, com a punição da lei, com indenizações. Os/as profissionais precisam oferecer escuta para essa coisa azeda que faz mal para o estômago, o fígado, os rins. Que sufoca.


. Entendemos que qualquer caso de racismo provoca danos físicos e psíquicos sim, na infância, na segunda, na terceira idade. Os resultados disso podem se manifestar como falta de motivação, acomodação, falta de perspectivas, sentimento de inferioridade, desarranjos físicos e emocionais, ou negação da sua identidade racial. Na mulher vítima de violência doméstica ou sexual surge o sentimento de desvalorização, a culpa, desamparo, desespero, o círculo vicioso de repetidos relacionamentos violentos.


 Um século após a abolição, nós negros e negras, ainda vivemos em liberdade vigiada. Há que desmontar a condução dos fatos onde passamos de vítimas a réus. Desmontar as cópias embranquecidas dos nossos gestos, diluindo nossa alma, nossa força, nossa fé. Que expectativas as escolas têm em relação à criança e ao adolescente negro? A mensagem, quase sempre nas entrelinhas, é, se as coisas ficarem difíceis, desistam. E aumentamos a evasão escolar.


Se estamos passando um legado para a nova geração, precisamos pensar que planeta vamos deixar para essa nova geração negra e para essa nova geração de meninas. O nosso papel hoje não é apenas tamponar as feridas que ainda sangram. É trabalhar novas químicas, novas fórmulas, para que essas feridas não infeccionem e não envenenem nosso sangue, nossos músculos e nos imobilizem. A violência contra a mulher é invisível e silenciada. O hematoma interno do racismo não se cura na sua superfície. Precisamos reforçar o lado de dentro dos/as sobreviventes, o lado mais sensível, mais magoado. As pessoas e as instituições terão que ser responsabilizadas pela somatização do dano psíquico ou moral em nosso corpo e mente.


Este tratamento, estes cuidados, devem ser estendidos não só às vítimas evidentes, mas aos profissionais que trabalham esse atendimento na saúde mental, nas escolas e na mídia, na elaboração e no cumprimento das leis, nas políticas afirmativas e nos orçamentos para tornar viáveis essas ações.


*Alzira Rufino é escritora e profissional de saúde. Diretora da Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos/SP.






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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