Autor original: Graciela Baroni Selaimen
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Em um dia de 1975, Filomena Carreira dormiu e, quando acordou, não tinha mais o que comer. Depois desse dia, ela viu seus amigos morrerem, apanhou, levou coronhada, sofreu assédio sexual por parte dos camaradas. Explodia, então, a segunda grande guerra de Angola. Por iniciativa dos pais, Filomena veio para Salvador, no Brasil, mas estabeleceu-se em São Paulo. Hoje, Filomena Carreira é a presidente da ONG FICAR, uma organização humanitária que trabalha para ajudar o povo angolano. Com a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA, e a promessa por parte dos guerrilheiros de cumprir o último Acordo de Luzaka, Filomena está certa de que Angola tem todas as condições de recuperar 40 anos de guerra e se desenvolver social, política e economicamente. A partir da experiência de guerra que viveu e do sentimento que nutre pelo seu país, Filomena escreveu o livro "Angola: entre o amor e o ódio". Por que você olha para esse passado com amor? "Eu não olho para o passado. Eu olho para um país, que é o meu país. Eu olho para um povo, que é o meu povo. E quando vejo uma criança mutilada, eu penso: ela é neto de um daqueles guerrilheiros, que na época apontou-me uma arma. Mas que culpa ela tem disso? Nenhuma."
Rets - É difícil encontrar informações sobre Angola que não sejam referentes à tragédia da guerra ou ao lado folclórico do país. O que é a verdade de Angola?
Filomena Carreira - Existem dois extremos completamente terríveis. Primeiro, Angola é o segundo país mais rico da África e, no entanto, é muito pobre. Angola vive 40 anos de guerra e está há 20 anos com o mesmo presidente. Neste ano iria realizar eleições, mas o pleito foi adiado depois da morte de Jonas Savimbi. Por que só sabemos dos dois extremos? De certa forma, o governo angolano não faz muita questão de divulgar a situação real da população. Não é interessante ficar mostrando sangue, falar que o nosso povo ainda é pobre, que nós ainda estamos em situação de calamidade total. Então o governo evita divulgar essas informações.
Rets - Mas os dados divulgados são assustadores...
Filomena Carreira - São assustadores porque a guerra começou em 58. Angola era uma colônia portuguesa. Nessa época, os jovens Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi lutavam juntos e tinham a idéia de liderar Angola. Depois de 1960, essas lideranças entraram em conflito e se separaram. Daí, Agostinho Neto formou o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Holden Roberto formou a FNLA (Frente de Libertação de Angola) e a UNITA foi formada por Jonas Savimbi, que era considerado o segundo maior criminoso de guerra do mundo.
Rets - Ele não era um guerrilheiro que queria libertar Angola?
Filomena Carreira - Não. Ele não era um guerrilheiro. Era um criminoso. Angola é muito rica em diamantes e o Sr. Jonas Savimbi dominava 60% do território angolano. Só que esse domínio era exercido justamente onde existem as minas de diamantes. Essas minas davam a ele um faturamento anual de mais de US$ 500 milhões de dólares. Ele não controlava somente os diamantes, mas outros minérios e também petróleo, que é outra riqueza de Angola. O Sr. Jonas Savimbi era um homem extremamente rico e até hoje, após a morte dele, não se descobriu onde está esse dinheiro. Esse senhor era extremamente carismático, à primeira vista muito simples e envolvente. Mas ele conversava com você, e depois se fosse preciso o matava. Você era um arquivo morto.
Rets - Como começou o estado de guerra em Angola que conhecemos?
Filomena Carreira - Em 75, esses grupos queriam guerrear e não tinham armamento bélico. Infelizmente, Portugal nos entregou de bandeja para esses três grupos. Foi instalado um governo provisório, depois de uma colonização que não foi bem sucedida. Quando isso aconteceu, somente Jonas Savimbi estava em território angolano, então, os outros líderes entraram em Angola para guerrear. Mas o povo não estava preparado para a guerra. Foi ai que todos os países começaram a apoiar a guerra. Os apoiadores principais eram Rússia, Tchecoslováquia, Bulgária, Romênia e Cuba. Jonas Savimbi, até 88, teve o apoio dos Estados Unidos. Ronald Regan apoiou muito Jonas Savimbi. O presidente norte-americano gostava muito desse senhor.
Então, em 1975 começou a guerra que eu vivi. Eram três movimentos negros que lutavam entre si e o povo não entendia nada. Não sabiamos em quem acreditar, qual era a filosofia dos grupos e, principalmente, não sabiamos qual era o melhor caminho. Daí, o país entrou em uma miséria rápida: fome, desespero, aeroportos fechados, fronteiras fechadas. As pessoas queriam fugir, mas não tinham dinheiro para pagar um avião e sair por via aérea. Então, o povo ia a pé para as fronteiras tentar fugir para a Naníbia, por exemplo. Nessa tentativa acabavam mortos. O que acontece hoje no Afeganistão me comove. Eu vi tudo isso na minha terra, com uma diferença.
Rets - Qual?
Filomena Carreira - Angola tem hoje 15 milhões de minas terrestres. Talvez seja o segundo país mais minado do mundo. Então se você não morre de tiros, fica mutilado ou morre por explosão de mina.
Rets - No livro "Angola: entre o amor e o ódio" você declara o seu amor pelo país e agora está levando uma organização humanitária para ajudar o povo angolano. Não existe dor depois de tanto sofrimento?
Filomena Carreira - Para mim não existe ódio nem mágoa com o meu país. Existe um trabalho humanitário que eu vou realizar em Angola, em Israel, no Afeganistão e em qualquer lugar do mundo que precise do meu trabalho, da minha ajuda humanitária.
Quando eu começei a ter contato com o governo, eu conheci o embaixador de Angola no Brasil. Ele era um general e, portanto, meu inimigo no passado. Quando eu o vi, eu tremi. Ele veio na minha direção e eu senti medo, pavor, pela primeira vez na vida. Quando ele percebeu o meu medo, perguntou se podia me abraçar e, naquele momento, eu lembrei do horror do meu passado. Ele começou a lacrimejar, olhou para mim e perguntou se podia me abraçar. Quando me abraçou, pediu-me perdão. Naquele momento, com aquela palavra, acabou tudo. Não em relação ao que eu passei, mas acabou o medo. Aquela palavra era tudo que eu queria ouvir. Perdão, só. Hoje, estamos juntos lutando para salvar o povo angolano.
Rets - Quais são as diretrizes da FICAR, organização que você vai levar para Angola?
O Instituto FICAR é um organização humanitária. A bandeira é Angola, mas pretendemos ajudar outros países, como Uganda e Moçambique, que solicitam o nosso trabalho. O primeiro objetivo é criar um instituto dentro de Angola, especificamente humanitário, que dará completa cobertura ao povo angolano.
Rets - O que o instituto vai realizar?
Filomena Carreira - O instituto vai oferecer cursos para o povo angolano. Nós vamos montar toda estrutura para dar cursos técnicos e profissionalizantes para o angolano. O povo vai entrar lá e não vai pagar nada por isso. Vamos trabalhar com a educação no país. Existem em Angola mais de 1 milhão de pessoas mutiladas. Elas não podem fazer determinados trabalhos, mas não são inválidas. Essas pessoas, independentemente de ter uma perna ou uma prótese, podem trabalhar com informática. Portanto, vamos dar aulas de informática. A maioria deles é alfaiate, os angolanos gostam de costura. Então nós vamos especializá-los nessa área.
Rets - O mercado de trabalho vai absorver a mão-de-obra?
Filomena Carreira - Em Angola, o domínio estrangeiro é muito grande. A Coca-Cola está em Angola e outras multinacionais também estão lá, mas a mão-de-obra é estrangeira. E eu pergunto: por quê? O angolano é inteligente, é culto. É uma infelicidade entrar em um campo de refugiados e encontrar desde pessoas com pouquissíma cultura até professores universitários. Então, estou levando para Angola uma organização séria, que quer fazer um trabalho bonito e preparar essas pessoas para ingressarem no mercado de trabalho. Meu Deus, é isso que o povo angolano precisa.
Rets - Existem muitas ONGs trabalhando em Angola. Como é a atuação dessas organizações?
Filomena Carreira - Hoje existem mais de mil ONGs em Luanda. Se 30 ou 40 estiverem fazendo trabalhos bonitos é muito. Isso entristece. Existe uma organização, a FESA, que tem sede aqui no Rio de Janeiro também e é capitaneada por Ismael Diogo, Cônsul Geral de Angola no Brasil. A FESA faz um trabalho muito bonito por Angola. Nós temos uma parceria com essa organização, nós trabalhamos juntos. Não existem acordos financeiros entre a FESA e a FICAR. Existem parcerias. Ele é um angolano e eu sou uma angolana. Nós trabalhamos juntos por Angola.
Rets - Qual é o principal desafio da sua instituição?
Filomena Carreira - Em Angola, há um milhão de mutilados e eu quero colocar um milhão de pessoas para andar. É um desafio e muita gente acredita que eu não vou conseguir. E eu não gosto de ser desafiada - normalmente eu vou atrás e consigo.
A primeira vez que eu retornei a Angola foi em 99. Eu levei sozinha, ou seja, sem ter uma organização formada, 20 toneladas de mercadorias. Eu recebi doações de um hospital inteiro, em São José do Rio Preto. Eu também levei, com apoio de uma empresa de Sorocaba, trinta próteses, que custam US$ 80 mil dólares, pois são de alta qualidade e pesam menos de 1 quilo. Eu acho que isso aí, para quem estava praticamente sozinha, é algo que não é tão fácil de conseguir. Eu sei que tudo que eu estou mandando é nada, dá só para trinta pessoas. Mas eu agradeço ao povo brasileiro que me ajudou com tudo isso.
A nossa escola em Angola vai entrar até na área do fabrico de próteses. Hoje nós temos o apoio de uma organização não-governamental e com essa ajuda vamos levar 10 mil próteses para Angola. Elas são consideradas as melhores do mundo, são de alta qualidade.
Aqui no Brasil, nós ajudamos o Lar do Ancião, na cidade de Diadema, em São Paulo. Nós fazemos doações para a organização e estamos apoiando também com próteses para pessoas mutiladas lá dentro. Agora, a minha própria ONG está precisando de muito apoio, de mais patrocínios. Nós temos alguns patrocinadores, são poucos ainda, mas precisamos de mais. Nós estamos buscando apoio tanto nacional quanto internacional, principalmente na área de próteses e medicamentos para doenças típicas da África.
Rets - O que representa a morte de Jonas Savimbi para os angolanos?
Filomena Carreira - O Sr. Jonas Savimbi morreu e sem dúvida houve uma mudança muito grande em Angola. O povo está com muito mais esperança de que Angola possa mudar. As pessoas estão acreditando que mudanças possam ocorrer. E o mundo, por uma série de fatores, principalmente econômicos, quer que isso aconteça.
Rets - Então hoje o processo de paz anda impulsionado pela morte de Savimbi? Como o povo angolano reagiu a essa morte?
Filomena Carreira - O processo de paz está andando. Quando morre um criminoso de guerra como este, você quer paz, você luta pela paz. No entanto, existem resquícios. Existem pessoas que têm a linha savimbista e que no futuro podem se tornar líderes. Mas Angola está na maior esperança. Todos os governantes estão na maior esperança. E o povo, mais do que nunca, também está na maior esperança de paz. Porque, infelizmente, era uma morte muito esperada. Era um abre-portas. A esperança de Angola era prender Savimbi; infelizmente, ele veio a falecer em uma emboscada.
Rets - O que vai acontecer com as pessoas que lutavam ao lado de Savimbi?
Filomena Carreira - Os aliados de Savimbi se entregaram. Eles estão dando a palavra de que vão cumprir o último acordo de paz firmado, o chamado Acordo de Luzaka. Essas pessoas entraram num acordo com o presidente de Angola, aceitando as regras do Acordo de Luzaka. Os "soldadinhos de Savimbi" estão sendo aquartelados, ou seja, estão sendo levados e mantidos em quartéis. Estes não têm mais famílias, não têm mais onde ficar e o governo está dando uma reestruturação a essa equipe que foi do Savimbi. Angola está aceitando, de coração, os soldados - para ver se cria essa reestrutura do ser humano, ou melhor, do pouco que sobrou desse ser humano.
Rets - Quais são as principais ações que Angola precisa realizar para se recuperar de 40 anos de guerra?
Filomena Carreira - Angola tem 12 milhões de pessoas, equivale à população da cidade de São Paulo. Tem mais de 1 milhão de mutilados. De 75 até hoje, mais de 2 milhões de pessoas morreram. Angola tem mais de 15 milhões de minas terrestres e morrem por dia mais de mil pessoas, principalmente de fome e de doenças típicas da África. Não existe nenhum tipo de infra-estrutura, principalmente hospitalar. Angola, hoje, está com uma estrutura caótica, uma miséria tremenda dentro do país e ainda morrem mil pessoas por dia. Hoje, a principal preocupação do governo é desminar Angola.
Rets - Depois da morte de Savimbi a desminagem se tornou uma tarefa menos penosa? Os guerrilheiros continuam reinstalando minas no território?
Filomena Carreira - Sim, hoje não está existindo mais isso. Hoje, sabe-se do risco que é a recolocação das minas. As "melhores" minas do mundo estão dentro de Angola. Existem minas anti-tanques, minas anti-pessoais. A média de uma mina anti-pessoal é uma morte e duas mutilações, ou então, três mortes, e ainda duas mortes e uma mutilação. Ninguém escapa ileso. Além disso, as minas têm um raio de ação de quase 50 metros. Então a principal meta de Angola é fazer a desminagem do território para limpar Luanda.
Rets - Limpar Luanda?
Filomena Carreira - Sim. Em Luanda vivem mais de 5 milhões de pessoas. Quando aconteceu a guerra, muitas pessoas saíram da sua terra natal e foram para Luanda. A capital era protegida pelo governo e por isso os guerrilheiros savimbistas não entravam lá. Os campos de refugiados estão em Luanda. Então, é preciso limpar Luanda, redistribuir a população. Quem é do Bié volta para o Bié, quem é de Huambo volta para Huambo. As pessoas querem voltar para suas terras, mas para que isso aconteça as províncias têm que estar limpas, desminadas. O território não pode mais oferecer riscos à população.
Rets - Como vai acontecer a desminagem?
Filomena Carreira - Hoje, acontece uma série de acordos com os governantes de cada província angolana. O objetivo é se fazer uma pesquisa para saber qual é a situação das minas em Angola. Sabemos que existem 15 milhões de minas, mas falta mapear 5% do território, então o número pode ser bem maior. A escola de desminagem de Angola, que tem o apoio da ONU, está emprenhada em saber, por exemplo, quantas minas existem em Malange. Angola parou para fazer essa pesquisa. O passo seguinte é ir desminando e devolvendo o território à população. O passo seguinte é oferecer escolas, hospitais, postos de trabalho para que o povo possa voltar a ser ativo na sociedade e possa se reerguer.
Rets - Quais são as perspectivas sociais, políticas e econômicas para Angola, depois do adiamento das eleições, se o presidente tinha planejado sair em outubro? O país será governado por alguma comissão que vai preparar as próximas eleições?
Filomena Carreira - A preparação já está existindo e a eleição será realizada em 2003. O que impediu a realização da eleição este ano foi a morte de Savimbi, que só criou vantagens. Mesmo a eleição tendo sido adiada, foi para favorecer Angola e o processo democrático. Atualmente, a eleição ocorreria em uma casa tumultuada. Hoje, os angolanos estão colocando a casa em ordem. Mas o presidente fica até o último dia. Ele pretende entregar Angola ao próximo governante minimamente estruturada, depois de 20 anos de governo. Não existe nenhuma comissão, nem alguém que vá governar Angola. O que está havendo é uma abertura total, diplomática - de opção de escolha do novo presidente.
Rets - Quem vai escolher o próximo presidente?
Filomena Carreira - Quem vai escolher o próximo governante é o povo. Pela primeira vez, o povo angolano vai escolher o seu presidente. Agostinho Neto também foi escolhido pelo povo, mas em época de guerra. Não foi uma eleição totalmente livre.
Rets - Então Angola terá eleições livres, com todos os direitos do cidadão respeitados? Haverá garantia do acesso às informações sobre os candidatos, divulgação de dados pela imprensa, liberdade de manifestação, de opinião?
Filomena Carreira - Exatamente. A informação que tenho é que José Eduardo dos Santos, presidente de Angola, fica até o último dia. Vai haver uma eleição aberta. Existem alguns nomes que estão sendo questionados, são três, mas prefiro esperar pela definição do quadro.
Rets - O que o povo espera de Angola?
Filomena Carreira - O povo espera que as riquezas de Angola tragam frutos para o povo angolano. Esse é o principal intuito que eu vejo no governo angolano: todos querem reerguer Angola. Além disso, existe uma preocupação muito grande com a regularização das multinacionais que estão em Angola. Outra grande preocupação é com a questão de medicamentos para doenças típicas da África. São questões que o povo espera que este ou o próximo governo vá que resolver. O povo precisa de casas bem construídas, com saneamento, com água, com luz. Mas a principal preocupação é com a questão das minas.
Rets - O que o governo angolano vai fazer para melhorar a vida população?
Filomena Carreira - Recentemente, eu dei uma entrevista a um canal de televisão brasileiro e deixei uma pergunta no ar. Depois da morte de Jonas Savimbi, qual vai ser a desculpa para nós, do povo, daqui para frente. A desculpa dada pelo governo angolano era de que o país estava em guerra, e portanto, todos os recursos eram voltados para a defesa contra Savimbi, todo o dinheiro ia para a compra de armamento bélico. Agora, qual vai ser a desculpa? Não sou só eu quem estou questionando. O povo angolano e o mundo inteiro vão cobrar essa resposta.
Para entrar em contato com o Instituto Social e Cultural Filomena Carreira, basta telefonar para (11) 6238-8347 ou escrever para fcangola@bol.com.br.
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