Autor original: Fausto Rêgo
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A Constituição Federal assegura o direito de ir e vir, mas na prática podem existir alguns problemas. Portadores de deficiência muitas vezes se vêem em má situação, até mesmo impedidos de realizar tarefas simples, por falta de adaptação e planejamento – nas cidades, no transporte, no comércio. Atividades corriqueiras como atravessar uma rua e andar de ônibus ou metrô podem ser um suplício para quem usa cadeira de rodas, por exemplo. Superar esses obstáculos pode ser um desafio heróico. Denunciar essas dificuldades é um trabalho para o Repórter Saci.
Há quase dois anos, Renato Laurenti dá vida a esse personagem, que sai pelas ruas de São Paulo para analisar como a cidade trata o portador de deficiência. Tetraplégico há 18 anos, em conseqüência de um acidente de automóvel, ele foi convidado pela Rede Saci, para escrever crônicas sobre sua experiência em situações do dia-a-dia – de um almoço com amigos em um restaurante a uma ida à Zona Eleitoral mais próxima para transferir o título de eleitor. “Minha idéia é mostrar a dificuldade de se sair de casa, mesmo que seja para ir à esquina. Portanto uma ida à padaria pode se transformar numa matéria”, explica.
O projeto cresceu e aceita contribuições de correspondentes voluntários de vários municípios. Nesta entrevista, Renato fala sobre o trabalho do Repórter Saci e lamenta o preconceito e a desinformação que fazem com que o país ainda não garanta a todos um direito constitucional fundamental. “É duro querer sair de casa, mas não conseguir por falta de acesso”, queixa-se.
Rets – Há quanto tempo iniciou esse trabalho e como começou? Você tem de fato formação de jornalista?
Renato Laurenti – O projeto do Repórter Saci vai completar dois anos em setembro e começou por acaso.Trabalhava na empresa chamada Imagens Educação, para a qual fui levado por uma das sócias, que era minha amiga. Lá eu fazia um banco de dados para o projeto Estadão na Escola. Um certo dia, Marta Gil, gerente da Rede Saci, que eu já conhecia, foi lá para uma reunião. Antes da reunião Elisa Campos, Isís de Palma e Rachel Trajber – sócias da empresa –, Marta e eu ficamos conversando sobre as dificuldades encontradas pelos deficientes para sair de casa. Eu comecei a contar a aventura que é para sair em São Paulo, onde praticamente nada é adaptado. E assim cada um tinha uma história para contar sobre esse tema, e eram várias histórias.
Desse bate-papo começou a surgir a idéia do Repórter Saci. Por que não contar as minhas aventuras por São Paulo? Contando como eu me virava para sair e como fazia para burlar a falta de acessibilidade e, ao mesmo tempo, incentivando deficientes a saírem de casa, mesmo com a falta de acessibilidade. Quanto mais deficientes na rua, mais força teremos para exigir nossos direitos.
Na realidade, não sou jornalista, era estudante de Educação Física quando sofri o acidente.
Rets – Há quanto tempo você ficou tetraplégico e como foi sua adaptação a essa nova realidade e às suas dificuldades?
Renato Laurenti – Sofri um acidente de carro em 1984, portanto sou tetraplégico há 18 anos. Fiquei internado por seis meses e aí começou o trabalho de recuperação. Na época as coisas eram bem mais difíceis, pois tínhamos menos informações e para se adquirir produtos também era mais complicado.
No começo a adaptação foi bem complicada, a ajuda da família e dos amigos foi fundamental. Depois tudo foi se acertando e a vida continua. Sempre digo que todo mundo tem seus problemas, uns maiores e outros menores. Para não fugir à regra, tive meus problemas. A pior dificuldade é o preconceito da sociedade e de um país sem estrutura para a maior parte da população. É duro querer sair de casa, mas não conseguir por falta de acesso.
Rets – Existe uma periodicidade fixa para as reportagens? O que determina uma saída do Repórter Saci?
Renato Laurenti – Não existe uma data fixa para as reportagens, mas está saindo, em média, uma reportagem por semana neste ano. Costumo dizer que tudo vira matéria para o Repórter Saci, pois minha idéia é mostrar a dificuldade de se sair de casa, mesmo que seja para ir à esquina. Portanto uma ida à padaria pode se transformar numa matéria. Sempre troco idéias com o pessoal da Rede Saci sobre lugares a serem visitados.
Rets – Voluntários de todo o país também podem tornar-se Repórteres Saci. Como se dá essa participação e qual tem sido o nível das contribuições enviadas?
Renato Laurenti – Todo mundo pode ser Repórter Saci Voluntário, mesmo não sendo deficiente. Na página do Repórter Saci tem todas as explicações e dicas de como fazê-lo. As pessoas interessadas entram em contato conosco, normalmente via e-mail, pedindo esclarecimentos. As pessoas que já nos escreveram muito contribuem para mapearmos não só São Paulo como o Brasil, e as matérias estão interessantíssimas, pois cada um tem seu ponto de vista. A procura tem sido grande mas, infelizmente, ainda são poucos os que realmente contribuem. A idéia é: quanto mais Repórteres Saci tivermos, melhor.
Rets – O que você tem constatado quanto à adequação dos eventos e da cidade às necessidades do portador de deficiência?
Renato Laurenti – Infelizmente as adaptações que vejo são, na sua maioria, feitas de qualquer jeito – rampas muito inclinadas, banheiros mal-feitos etc. Creio que eles adaptam os espaços certos de que deficientes não existem ou não gostam de sair de casa. Temos que mudar essa idéia lamentável. Não vemos mais deficientes na rua exatamente por falta de acesso. Costumo dizer que essas adaptações não são só para deficientes, mas sim para toda a sociedade: para gestantes, idosos, cardíacos, obesos, pessoas com dificuldades temporárias de locomoção, mães empurrando carrinhos de bebê.Temos que alertar a sociedade em geral para esse grave problema: a falta ou dificuldade de acesso na maioria dos locais.
Sou deficiente há 18 anos e notei que já melhoramos, mas ainda falta muito.
Rets – É norma que o Repórter Saci se identifique? Isso não teria uma influência significativa no comportamento das pessoas com quem você se relaciona nesses eventos? O tratamento dado a você poderia não ser o mesmo concedido a uma pessoa comum.
Renato Laurenti – Não costumo avisar sobre as minhas visitas exatamente para não ter um tratamento diferenciado. Só raramente aviso. Depois que a matéria está no site é que comunico a visita feita e falo onde a matéria pode ser lida.
Rets – Como você observa o tratamento que é concedido ao portador de deficiência? O Repórter Saci já presenciou ou foi vítima de algum tipo de discriminação? Há algum caso curioso ou desagradável que tenha acontecido com você?
Renato Laurenti – O tratamento que eu tenho recebido, na sua grande maioria, é satisfatório, pois todos se propõem a ajudar, mesmo – às vezes – não sabendo como. Antes de ser Repórter Saci, estava num shopping quando uma senhora veio me dar dinheiro. Numa matéria que estou para entregar, fui a uma boate de strip-tease e uma pessoa se aproximou e disse que ainda bem que pelo menos meus olhos ainda eram de homem. Mal sabe ele que tenho uma vida sexual ativa. Veja a idéia ou o preconceito que as pessoas fazem do deficiente. Elas acham que a vida acabou e não é por ai.
Mas temos casos mais graves, como o ocorrido em Belo Horizonte, onde não queriam deixar deficientes visuais abrirem contas sem um responsável. Ou o ocorrido numa cachaçaria em Santo André (SP), quando o gerente disse a um deficiente: “Gente como você não deveria sair de casa”.
Rets – Qual tem sido a repercussão dessas reportagens? Urbanistas, arquitetos e autoridades costumam se manifestar sobre os problemas apontados pelo Repórter Saci?
Renato Laurenti – As reportagens obtiveram uma boa repercussão na mídia, que fez diversas solicitações de entrevista ao Repórter Saci. Destacamos sua participação nos programas “Note e Anote”, da TV Record; “Vitrine”, exibido pela TV Cultura; SP-TV, da Rede Globo; e "Espaço Informal", na Rádio Eldorado AM . Entre suas contribuições para a imprensa escrita, é de especial interesse a matéria publicada na Folha de São Paulo abordando as dificuldades de circulação nas calçadas de São Paulo. A atuação do Repórter Saci também sensibilizou os responsáveis pelos locais visitados, assim como diversas pessoas que leram os textos e escreveram para a equipe da Rede fazendo perguntas e sugestões.
Clara Ant, quando administradora regional da Sé, convidou o Repórter Saci para dar uma palestra para o projeto “Reconstruir o Centro” e avaliar as condições de acessibilidade de uma importante área no centro velho de São Paulo: o quadrilátero formado pelas avenidas São João e Ipiranga e as ruas 7 de Abril e Conselheiro Crispiniano.
As instalações da Estação Ciência receberam as alterações recomendadas pelo Repórter Saci em sua crônica.
A direção da Faculdade de Saúde Pública da USP chamou o Repórter Saci para participar do I Seminário Internacional “Acessibilidade, tecnologia da informação e inclusão digital”. Na ocasião, os comentários do repórter contribuíram para que um dos banheiros do edifício fosse adaptado.
O Repórter Saci foi convidado também a participar do projeto USP Legal, que pretende adaptar o campus da universidade, aumentando suas condições de acesso.
Já a visita ao SESC Vila Mariana, uma das mais satisfatórias em condições de acessibilidade, resultou em uma matéria publicada no boletim eletrônico do SESC, estimulando outros responsáveis por edificações a contribuir para a locomoção dos portadores de necessidades especiais.
A campanha “Seja um Repórter SACI voluntário” foi apresentada a integrantes de diversas ONGs e dirigentes da Suécia durante a premiação do Portal do Voluntário no Nobel da Internet, em Estocolmo. O site do Portal estabeleceu uma parceria com a Rede Saci para divulgação da campanha e indicação de voluntários para as reportagens.
Neste período, o Repórter Saci ganhou credibilidade e pode tornar-se um verdadeiro porta-voz na luta pela inclusão social dos deficientes.
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