Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original:
Sejamos solidários com os povos indígenas, Aprendamos com seus sonhos
E nos inspiremos em sua caminhada
Rumo à terra sem males.
Os versos acima fazem parte da oração da Campanha da Fraternidade da Congregação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) deste ano, cujo tema é “fraternidade e os povos indígenas” e o lema, “por uma terra sem males”. Parte das comemorações dos 50 anos da entidade religiosa, a campanha tem como objetivo estimular a solidariedade aos problemas dos indígenas brasileiros e à sua luta pelos direitos, que, apesar de assegurados pela Constituição, ainda não foram postos em prática.
A Campanha da Fraternidade surgiu durante o renovador Concílio Vaticano II, realizado na década de 60. O projeto nacional foi lançado inicialmente no final de 1963 e realizado pela primeira vez na quaresma –época de desenvolvimento e lançamento das campanhas que vai da quarta-feira de cinzas até a páscoa católica - de 64. Inicialmente, os temas abordavam a vida interna da Igreja, mas a partir de 71 foram se politizando. A escolha dos temas é feita por meio de sugestões das 16 regionais da CNBB, que recolhem sugestões das dioceses e estas, das paróquias e comunidades. Entre os aspectos a serem considerados na escolha estão a vida da Igreja e da sociedade, política, economia, cultura e seus desafios atuais, as diretrizes gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil e documentos do Magistério da Igreja Universal.
Este ano, o tema recaiu sobre os povos indígenas e procura responder a questões relevantes como a posse da terra, o estatuto próprio dos índios, a necessidade de políticas públicas mais eficientes e os preconceitos e imagens folclorizadas. A idéia de realizar uma campanha sobre a questão indígena é antiga – bispos ligados a comunidades como Dom Erwin Kräutler, da Pastoral do Xingu, já insistem desde a década de 80 sobre a necessidade de rever a história da colonização portuguesa e o papel da Igreja nesse processo. Foi criado então, um espaço anual para discutir o assunto – a Semana dos Povos Indígenas, realizada sempre em abril.
Apesar do atraso de dois anos em relação aos 500 anos, os acontecimentos durante a comemoração dos cinco séculos de descobrimento, quando índios foram agredidos pela polícia em Porto Seguro, motivaram as bases da Igreja a escolher a temática e levantar importantes discussões.
Garantidas pela Constituição de 1988, a posse e demarcação das terras ocupadas ainda não foram concluídas, apesar do documento dar um prazo de cinco anos para o término do processo. Hoje, das 771 terras indígenas, 68% ainda não estão oficialmente demarcadas e 85% já foram invadidas (dados CNBB).
A solidariedade proposta pelo projeto resultou num movimento de abaixo-assinados por todo o país exigindo a defesa dos direitos garantidos e pela aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, que inclui a demarcação. Apesar das previsões iniciais do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) de conseguir no máximo 100 mil assinaturas, já foram recolhidas por volta de 700 mil. No dia 19 de junho, o documento será entregue ao presidente da Câmara dos Deputados numa sessão em homenagem aos 50 anos da CNBB. É esperada para a mesma data a ratificação pelo governo da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dá garantias trabalhistas às populações diferenciadas. “São vitórias alcançadas pelas populações indígenas com dificuldades”, diz o secretário-executivo do CIMI Egon Dionísio Heck.
A questão cultural também é importante. Das 3 mil línguas faladas em 1500, apenas 180 continuam vivas e pouco tem sido feito para ao menos manter esse número. Outro problema é o retrato feito pelos livros escolares sobre os índios – sempre folclorizados ou tomados como passivos ou agressivos demais. A Constituição – novamente ela - afirma, em seu artigo 210, que está “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” no ensino fundamental. Mas são pouquíssimas as escolas que o fazem. A campanha propõe “repensar os valores, as concepções e estereótipos que fomos levados a assumir como naturais”. Para tanto, a Pastoral da Educação tem estimulado a divulgação da cultura indígena e a adoção de livros escritos por eles em escolas de todo o país.
A Igreja também procurou revisar sua história. “A mudança do papel foi grande, não há mais preocupação de batizar e catequisar os índios. A visão hoje é bem diferente da evangelização pura e simples de antes. É mais importante assegurar a cultura, os direitos e ajudar os indígenas que vivem nas grandes cidades. O Cimi, por exemplo, exerce bem esse papel”, explica o professor Luís Antônio de Sousa Amaral, coordenador da regional Sul da Campanha. O Concílio Vaticano II foi o marco dessa mudança, apesar de ela ser um processo. “Até as missões não estão mais interessadas em levar índios para a escola e sim em conviver com eles. Muitos missionários se identificam com tribos e passam a viver com elas –cada um com sua religião”, completa Amaral.
Entre as outras ações propostas está a construção de 1 milhão de cisternas na região do semi-árido para que os índios da região tenham acesso à água. Os recursos virão da arrecadação das dioceses. Apesar das ações serem decisão de cada diocese, há uma ajuda mútua, que fortalece o trabalho. De forma geral, todas têm procurado realizar um trabalho de conscientização, com o objetivo de mudar a perspectiva que se tem dos índios.
A dificuldade de se colocar a questão indígena como tema da Campanha da Fraternidade se deve ao fato de ela não abranger todas as Dioceses. Das 260, menos de 100 possuem comunidades indígenas. Por isso a repercussão foi surpreendente. “Apesar de ser um tema restrito, o envolvimento foi grande, inclusive em meios acadêmicos, políticos e comunitários. Surpreendeu e isso é ótimo para articular nacionalmente e abrir um espaço de discussão para algo que merece atenção de todos”, lembra Egon Heck.
De acordo com os organizadores, a Campanha da Fraternidade se igualou a outros episódios recentes da caminhada dos índios por seus direitos como a luta pela emancipação de 78, a constituinte de 88 e as Marcha e Conferência Índigenas de 2000 – e está sendo uma das campanhas de maior sucesso nos últimos anos.
É uma esperança a mais, nessa longa caminhada das populações indígenas - rumo à sua terra sem males.
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